Como diz Alain Bergala, em introdução publicada em vídeo na edição DVD da )intermedio(, provavelmente não haverá filme mais importante sobre o acto criador no cinema que este. "Scénario..." é um filme-ensaio sobre a concepção do argumento para um filme, "Passion". Godard fala, na primeira pessoa, sobre a construção conceptual que acompanha cada imagem deste seu filme sobre o trabalho e o amor, o trabalho do amor, o amor do trabalho... o cinema e a fábrica, uma mulher e um homem.
Godard começa na tela branca, como numa "praia branca sem mar", e nela vai projectando as imagens desse guião, um guião que quer "não escrito": ele quer saber se é possível ver um guião antes de o escrever; se isso é possível "fora do ecrã", antes de se "inscrever" no real pelo cinema; ele quer saber se é possível o filme existir em imagem antes de ser escrito e filmado - o cinema de Godard surge como uma espécie de poética do real, que preenche, em linhas sucessivas, o branco da tela, o branco da página, o branco da praia sem mar. Disse linhas sucessivas? Sim, mas, mais precisamente, em "Scénario...", usando uma expressão cara em Godard, o invisível (entre as imagens de) de "Passion" torna-se visível aos nossos olhos de espectador-voyeur que espreita, sedento de VER mais longe, por entre cortinas de imagens... Imagens sobreimpressas que se geram a partir do real e real que se baseia em pensamentos e conceitos (como trabalho e amor). Godard ilumina-nos ao nos dar a sensação mais imediata de que estamos, com ele, a criar - é um gesto, diria, pedagógico de rara beleza e de uma humildade (de uma nudez...) comovente.
A grande pergunta de "Scénario..." é: como é que as imagens geram imagens, como é que do branco se gera o mar, uma fábrica, um estúdio de cinema e vidas lá dentro? Godard, numa montagem em directo - demonstração de uma habilidade extraordinária! -, vai-se "fazendo imagem" entre as imagens do seu filme e as imagens do seu "argumento imaginado" - ele recua, vai à origem das imagens que fabricou, desordenando assim a lógica típica do making of de DVD. Ele é uma imagem como os outros são imagens nos seus filmes; como Jerzy é realizador e patrão, como Isabelle é musa e operária. Godard é a imagem que faz as outras imagens pensarem entre si - e daí a miríade de sobreimpressões, de cortes sucessivos quase que puramente "intelectuais". O que "Scénario..." desvela é o que está entre os saltos de uma imagem para a outra; ele põe a nu a constelação de conceitos* que as pare como um filho - a analogia é dele, o que só comprova o imenso amor que Godard tem pelo cinema, a sua fábrica (mas também já tínhamos percebido bem isso no longo monólogo que abre o brilhante "Numéro deux"). Mas, dizíamos, o que aqui fica "à vista" - pronto a ser visto, a ser revisto, pronto a se dar a ver e a receVer - é a imagem de Godard a ligar os planos de "Passion" entre si, e, ao mesmo tempo, a criar OUTRO filme durante esse processo que, quase imediatamente, quase não mediatamente, se despe à nossa frente.
A criação é um acto de intimidade sem igual em Godard - outra constatação, verdadeira epifania para quem considera que o cineasta francês é "frio e excessivamente intelectual ou literário ou filosófio...". Não, não há cinema com mais sentimentos do que este - e isto fica, definitivamente, "inscrito" em qualquer um que veja e receVeja este genial guião imagiário, que, repito, não se pode confundir com um making of, ou que, enfim, talvez se possa confundir com um making IN. Este é um cinema que vem de dentro e que se testa na realidade e nessa realidade há fábricas e pessoas, e nesse "de dentro" há quadros de Goya, há Tintorettos, há Mozart... há conceitos de fábricas e conceitos de pessoas misturados com Goya, com Tintorettos, com Mozart... O cinema de Godard é Godard - Godard, apetece dizer, ontologiza-o. A certa altura, como a mãe que abraça o filho, Godard estende os branços à imagem - finalmente! - do mar e à imagem de Jerzy, actor que interpreta um realizador de cinema em "Passion" - nem de propósito! Como o faz? Godard impõe a "Scénario..." a sua própria imagem sobreimpressa nesse plano de "Passion" e, com isso, no mais belo e comovente dos agenciamentos, reconcilia-se de braços estendidos, prontos a abraçar - e a proteger - um filho que aí vem, com as imagens do seu cinema, na realidade, esta parece ser a imagem da conciliação eterna do cinema com a vida. História de amor sem precedentes, de facto.
* - De facto, Deleuze tem muita razão quando diz que Godard é diferente por ser um cineasta que estrutura o seu cinema a partir de conceitos, pela ordem em que estes se "interligam" - o rizo-cinema, o rizo-cineasta par excellence?
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