domingo, 30 de novembro de 2008

Dra. Estranhoamor


"Dr. Strangelove" (1964) de Stanley Kubrick tem um Peter Sellers em papel triplo: faz de Presidente dos EUA, de oficial da RAF e incarna o catatónico dr. Estranhoamor, homem tetraplégico, de corpo semi-mecânico, especialista em coisas de guerra. Na chamada war room, o dr. Estranhoamor exorta sobre a possibilidade de uma ofensiva contra a URSS, depois de um cowboy lunático ter "montado", sem pedir autorização, uma bomba que caiu directamente em território inimigo. O sistema de defesa norte-americano fica em polvorosa quando dá conta da sua própria desarticulação. Estranhoamor é o espelho antropomórfico disso mesmo. Nos momentos mais inoportunos, o seu braço direito deixa-se domar por uma espécie de tique que o revela mais do que o diminui. O desconcerto é total quando dele irrompem as mais firmes saudações nazis.

Em tempos, o cavaquismo era sinónimo de uma estratégia política baseada no silêncio (aquele que fala...), num calculismo levado ao extremo (levar à boca, quando melhor convier, o santo bolo rei) e num sentido de responsabilidade e rigor insofismáveis. A melhor amiga de Cavaco Silva seguiu todos estes preceitos quando esteve à frente do Ministério das Finanças. Dela ficou essa imagem (pouco feminina?) de frieza e de uma inabalável irredutibilidade. Na campanha eleitoral para a liderança de um partido em cacos, essa senhora fez da exigência de "falar verdade" um dogma; por isso, não falou... E nesse silêncio o mesmo partido viu a miragem de um lugar remoto chamado Cavaquistão. Imediatamente, a mesma senhora tornou-se presidente desse partido esfrangalhado.

O silêncio prolongou-se, mas, de súbito, vozes (vindas de dentro e, sobretudo, de fora) vieram dizer que ele já não falava como antigamente. Então a senhora falou "de facto" e ouviram-se coisas como "não à imigração", "acabe-se com o jornalismo feito pelos jornalistas" e, a última, "suspenda-se a democracia para resolver a crise". Dizem que são gaffes, mas nós desconfiamos: fazendo jus àquela imagem de rigor e exactidão, pensamos que os "deslizes" da dra. Manuela Ferreira são, acima de tudo, tiques reveladores de um estranho amor à democracia... sem braços mecânicos.

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