O cineasta húngaro Béla Tarr ocupa um lugar muito particular na história do cinema: transformou o plano-sequência num autêntico "programa visual" para o seu cinema e, ao longo dos seus mais de 30 anos de carreira, pode-se dizer que o tem seguido militantemente. "The Man From London" mostra-nos, de novo, a singularidade da sua estética: planos longuíssimos criados a partir de suaves movimentos de câmara, que alternam, sem qualquer corte, planos gerais com grandes planos.
A recusa do campo-contra-campo na filmagem dos diálogos é uma das suas assinaturas visuais mais espantosas, na medida em que por norma Tarr coloca "fora de campo" quem fala e "dentro de campo", em bergmanianas incursões pela geografia triste e profunda dos rostos, o ouvinte que sofre, na mudez, o efeito interior e solitário das palavras. Veja-se o plano final deste filme: o rosto inerte que olha no vazio é transparente na transmissão de uma dor e uma revolta profundas que atormentam a alma. O rosto humano é a grande paisagem do cinema de Tarr; o ecrã onde a plasticidade exuberante da sua técnica é aspirada pela tempestuosa psicologia das personagens.
Pensamos que é aqui que a arte de Tarr nos convence verdadeiramente, na medida em que esta não se resume à fabricação em série de imagens estonteantes; ela sabe, de quando em vez, como expor os sentimentos e angústias do ser humano. Pensamos que Tarr consegue contornar a catalogação de "cineasta formalista", esvaziado de qualquer humanidade, graças à fixação da sua câmara no tempo e à sua graciosa mobilidade no espaço. É no intervalo, poético e difuso, entre o tempo e o espaço que os rostos iluminam, como uma projecção da alma, o preto-e-branco brumoso que atravessa a maior parte deste filme como, diga-se, da restante obra de Tarr.
Todavia, não discordamos com quem diga que a iconoclastia de Tarr nem sempre consegue evitar os exercícios de vaidade, muito pouco generosos para com o espectador. Isto porque o facto da sua câmara ser livre e contínua não se traduz obrigatoriamente na liberdade e constância do nosso olhar. Por vezes, os movimentos de câmara destroem mais do que constroem, desfocam mais do que focam aquilo que é filmado; a forma torna-se supérflua face a um conteúdo menos rico e, no limite, desumanizado.
Com efeito, a ânsia de sacar imagens impressionantes de cada cena faz com que esse "virar de costas" ao espectador (convencional) seja, por vezes, um ponto de desconforto no seu cinema: o peso de tanto virtuosismo técnico pode aprisionar em vez de libertar. E à custa disto sacrifica-se na construção das personagens. Veja-se o protagonista deste filme, que é sempre estático, insondável, distante, e permanece assim mesmo no contexto de um desinteressante subplot familiar (no qual vemos uma Tilda Swinton perdida na sua personagem).
Apesar disso, das debilidades do seu cinema, como da liberdade "aprisionante" da sua câmara, nascem muitas vezes os seus pontos mais fortes: falámos dos rostos, mas gostávamos também de referir a personagem do detective solitário, que parece saído de um noir clássico. Voz hipnótica, presença omnisciente e calma, esta figura adensa dramaticamente o filme, centra-o mais no que a câmara filma e menos no que a câmara faz. István Lénárt, o actor húngaro que dá corpo à personagem, é de uma solidez, de um carisma, apetece dizer, fundamental à humanização de uma relativamente banal história de crime.
Em suma, "The Man From London" não será um "Sátántangó" (1994), mas o seu significativo valor estético e os seus finos recortes de humanidade (naqueles grandes planos) exigiam um visionamento em sala. Ou seja, temos aqui mais um exemplo do absurdo a que chegou uma certa política de distribuição do cinema em Portugal.
Ler mais aqui: IMDB.
1 comentário:
Parabéns pela excelente crítica. Tenho o DVD do Tarr na mesinha de cabeceira para ver com avidez logo que possa!
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