Publico aqui a primeira parte do artigo que escrevi para a Red Carpet de Julho.
Anthony Mann não foi, e continua a não ser, tão tido em conta como um John Ford ou um Howard Hawks. Mas o seu brilhantismo, polvilhado ao longo de uma carreira riquíssima, marcada sobretudo pelo género western, mereceu o devido reconhecimento por grandes nomes do cinema mundial: desde Jean-Luc Godard, que um dia posicionou Mann como um dos mais modernos realizadores de western, a Martin Scorsese, que já afirmou ter sido uma das suas maiores influências, passando por John Carpenter, que apenas adivinhamos não dizer o contrário. Este “The Naked Spur” (1953), western naturalista com apenas cinco personagens, é, para muitos – como Jonathan Rosenbaum, célebre crítico norte-americano, agora, retirado –, o mais elementar filme de Anthony Mann. Descubramo-lo.
Howard Kemp (James Stewart) cavalga pelo oeste à procura de um homem: Ben Vandergroat (Robert Ryan), um criminoso que, uma vez capturado – dead or alive –, dá direito a uma recompensa monetária significativa. Nessa viagem persecutória, Kemp cruza-se com dois estranhos, a quem se vê forçado a pedir ajuda na captura do fugitivo: um velho prospector (Millard Mitchell), que tem visto frustradas todas as suas tentativas para encontrar ouro, e um ex-soldado (Ralph Meeker), recentemente expulso do exército.
A história é contada a ritmo galopante. Logo nos primeiros vinte minutos, parece que o filme chega precocemente ao fim: Ben é apanhado. Mas a acompanhá-lo está uma rapariga chamada Lila Patch (Janet Leigh) – não “a sua rapariga”, mas apenas "uma rapariga"… –, que se juntou a Ben, na promessa de que este a levaria à Califórnia. Para os três, está encontrada a solução para as suas vidas: o dinheiro. Com ele, o velho prospector abandonaria essa actividade em que sempre malograra; o ex-soldado, que também é um playboy incurável, ganharia finalmente alguma boa reputação e Kemp poderia recuperar a propriedade que perdera, depois da sua ex-mulher a ter vendido, sem o consultar, para fugir com outro homem. Mas, antes, é preciso entregar Ben a um xerife. E a viagem ainda nem sequer começou…
Apesar das aparências, o filme começa precisamente a partir deste momento: “Pura aritmética. O dinheiro divide-se melhor em dois do que em três”, assevera cinicamente o criminoso. Ben está pronto a explorar, num jogo de manipulação mental, as fraquezas de cada um dos seus três captures. O seu jogo retórico “sujo”, mas assaz persuasivo, cedo causa estragos nas morais instáveis dos três protagonistas, que, sugestionados pelas palavras de Ben, começam a fazer contas à vida. A equação é simples, mesmo para um rude westerner: quanto menos se divide, mais fica. Dinheiro, claro.
Com tão poderosa premissa lançada, Mann começa a urdir uma atmosfera mortificante em que todos suspeitam de todos: interessa-lhe tanto a consumação da traição fratricida como a paranóia, febril e degenerativa, que a precipita. Por exemplo, em filmes como “Winchester ´73” (1950) e “The Man From Laramie” (1955), Mann radicaliza (ainda mais) essa visão, filmando histórias de ódio e vingança entre irmãos.
Às personagens de “The Naked Spur” impõe-se, desse modo, um jogo de resistência quase cerebral: quem melhor conseguirá domar a ganância que lhes corre nas veias? Fatalmente, sabemos que nem todos poderão sobreviver à viagem: o dinheiro dividido por três não é suficiente para preencher os seus “sonhos de uma vida”.
Entretanto, Kemp é ferido na perna, na sequência de um ataque índio. A febre e as dores excruciantes sensibilizam a jovem rapariga, loira e delicada como uma virgem, que sonha com a Califórnia. Quando, numa alucinação febril, Kemp a confunde com a sua ex-mulher, Lila Patch não se importa de ficar com o papel. De súbito, nasce um amor que o feminiza – afinal, ele é “a personagem que sangra”. O coração amolece, relativizando os vícios que o moviam: Kemp dá um passo atrás na disputa pelo dinheiro, mas um passo em frente na conquista do amor – que, não sabe, também busca.
Para os seus adversários directos – o prospector, o soldado e o criminoso frustrados – este é um sinal de fraqueza “a explorar”. Cada um começa a congeminar esquemas para afastar Kemp da liderança do grupo, mas todos eles se vão guiar por um pressuposto errado: o amor não fragilizou Kemp; pelo contrário, funcionou como a injecção de força de que necessitava para superar a dor física – a mesma que, no cinema de Mann, funciona, muitas vezes, como “ponto de ebulição” da narrativa.
No fim, temos a confirmação disso mesmo num momento de estranho romantismo, em que Kemp, cedendo às preces de Lila, aceita dar um “funeral condigno” ao último cadáver…
Ler mais aqui: IMDB, DVDbeaver e Senses of Cinema.
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