sexta-feira, 15 de julho de 2011

Russian Ark (2002) de Aleksandr Sokurov


É verdade que "Russian Ark" parece estar reduzido a um dado técnico: o de ser filmado num único plano, um infindável e virtuosíssimo travelling levitante pelos corredores e salas do museu-cidade/arca Hermitage.

Um travelling levitante é um triunfo notável, isto porque nem todos os travellings levitam e nos fazem levitar; quanto muito, fazem a câmara deslizar sobre o espaço e, nos melhores casos sublinhamos, nos fazem deslizar com ela. Mas "Russian Ark" é uma fantasia histórica; há um bailado feérico proporcionado pelo seu dispositivo formal, que, como já insinuei, não é tudo neste filme de Sokurov, mas mesmo se fosse era muito. Travelling levitante, o que é isso aqui? É, quanto a mim, um travelling que levita e que nos levita, isto é, um plano que avança sobre o espaço - temporaliza-o - e que nos arranca do chão; enfim, um "voo de câmara" pela história e pela História. O "h" minúsculo assinala que "Russian Ark" também é o mais longo plano subjectivo da história do cinema (AVISO: não vi o último de Gaspar Noé) - e quão notável é! - e o "h" maiúsculo assinala aqui a tentativa da câmara não só temporalizar o espaço como, ao mesmo tempo, espacializar o tempo - em cada sala, há uma "cena" da História russa para contar, sem que a cronologia dite o que quer que seja, quem dita é a história que o narrador-câmara nos faz "passear", ou seja, espacializa-se o tempo para temporalizar o espaço e vice-versa... Ou, pelo menos, a câmara insinua, entre a história individual do narrador participante, que "sonha" esta fantasia..., e a História do seu país um bailado onde tempo e espaço fazem alternar os seus "tempos narrativos" - os tempos da imagem, do plano, do cinema é que ditam este bailado que Ophuls não filmou.

Depois falámos do plano em contínuo que é o filme. Ora, parece que é possível falar de "Russian Ark" sem pronunciar por uma vez que seja a palavra "montagem". Nada mais errado. E é aí que "Russian Ark" sabe interrogar os próprios limites do seu dispositivo formal, inédito na história do cinema (desculpa, querido Hitchcock... sem ofensa, Tarr e amigos...); isto é, sabe não se "conformar" a ele. É que esta obra-prima de Sokurov é um filme repleto de quadros, quadros dentro de quadros e histórias/cenas que se colam entre si. O "raccord" está aqui na própria imagem; no próprio plano. A montagem, muito modernamente, auto-gera-se no plano contínuo. Seja entre um quadro de El Greco e de Van Dyke (dois quadros dentro de "o quadro" de uma hora e quarenta minutos que é o filme...), seja entre uma porta que se abre e outra que fecha; um grande plano de mãos ou pés que se transforma num plano geral de corpos graciosos que se movimentam... Há raccord, claro, mas é um raccord puramente visual, coisa que só nos apercebemos ser possível numa experiência tão radical quanto esta. E isto não é reduzi-la a aspectos técnicos; é amplificá-la até ao infinito através de aspectos técnicos ou formais - mise en abyme autenticamente DO cinema.

(Obrigado Midas, obrigado Público. Graças a vós pude ver finalmente este filme, que já sonhara ter visto... e que filme perfeito para "já se ter sonhado ter visto"!)

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