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A determinação do protagonista em ir para à frente com plano tão insensato leva a melhor: de súbito, "Shock Corridor" transforma-se numa espécie de reportagem filmada sobre a viagem que Johnny Barrett faz pelo corredor (sem fim...) onde param algumas das mentes mais desequilibradas da América. E uma delas bem que podia ser vista como a metáfora perfeita para o temperamento crítico de Fuller: o negro racista, supremacista, segregacionista, que sonha a cores (!). "America for americans", grita ele em plano contra-picado, instantes antes de colocar na cabeça um capuz do Ku Klux Klan. Onde foi Sam Fuller buscar os balls para filmar esta cena em 1963? A ironia sulfurosa com que tratava os temas mais incandescentes da sociedade perturbou muita gente e provavelmente impediu que Fuller fosse considerado em vida justamente como um dos maiores cineastas norte-americanos.
O negro nazi - ou a forma como a cor interrompe violentamente o preto-e-branco - simboliza de algum modo a absoluta rejeição - era quase uma alergia... - à crítica unidimensional e maniqueísta (estilo preto no branco) que Hollywood fazia da realidade norte-americana. Ao mesmo tempo, os espaços de cor em "Shock Corridor" são mais opressivos que o preto-e-branco do asilo de loucos, que, por sua vez, se vai tornando lentamente não numa prisão mas num lugar de libertação para a catatonia (o verdadeiro "eu"?) de que Barrett desconhecia padecer.
Afinal, quem está louco aqui: os que passam os dias a apodrecer naquele corredor, sem fazer nada, ou os que lá fora estão prontos a abdicar da sua integridade (moral e física) por causa de um Pulitzer? O público de 1963 terá ficado chocado com o pessimismo impiedoso de Fuller e a forma como este filmou a passagem de um homem (pretensamente) são para um estado de total apatia (pretensamente insana).
O público de hoje não se sentirá melhor: a construção dramática de "Shock Corridor", a truculência intemporal da sua mensagem, a montagem alucinante de som e imagem, tal como a forma animal e crua como Fuller pega na câmara (exemplo da cena da luta entre Barrett e Wilkes) fazem com que este filme se mantenha mais fresco hoje do que a maioria das sátiras jornalísticas que o sucederam. Nem mais: corajoso e brutal, ontem como hoje.
Ler mais aqui: IMDB.
2 comentários:
Não há edição nacional em DVD deste seminal Fuller, que vi uma única vez na televisão. Por isso vou comprar a edição espanhola que está à venda no dvdgo.
Há uma edição da The Criterion Collection e ainda aquela que eu tenho e que é EXCELENTE. Comprei em França, deves poder encontrar na Amazon francesa, e é da editora Wild Side Video. Tem um documentário muito interessante dirigido pelo Tim Robbins, em que ele entrevista o Sam Fuller em Paris (onde o realizador viveu, depois do fracasso e polémica de "White Dog"). O documentário tem intervenções do Jarmusch, Tarantino e do próprio Robbins que valem muito a pena.
Abraço,
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