segunda-feira, 20 de abril de 2009

The Strangers (2008) de Bryan Bertino

Enquanto os filmes de terror continuarem a encarar o mal como produto de uma série de circunstâncias socialmente identificáveis, dificilmente nos aproximaremos da sua essência. Essa força terrível que vive dentro de todos nós e que, por vezes, é puxada à superfície, sob a forma de um pesadelo ou de uma qualquer manifestação física ou verbal de violência, nem sempre se pauta por relações simples de causalidade. Pois o cinema de terror norte-americano, treslendo em toda a linha as suas bases, tem perdido muito do seu e, sobretudo, do nosso tempo a tentar racionalizar as causas do mal nas nossas sociedades. E, por isso, Columbine superou o cinema. E, por isso, o 11 de Setembro superou o cinema. Também por isso continuamos sem respostas para a pergunta que todos os filmes de terror nos colocam: porquê isto?

Erro primário, quase ingénuo, por exemplo, comete Rob Zombie no seu sofrível "Halloween" quando nos tenta convencer, bem para lá das intenções de Carpenter, que Mike Myers é o resultado de um lar destroçado; logo, Mike Myers podia ser qualquer um de nós - atenção pais deste mundo, nas vossas mãos poderá estar um assassino carniceiro em potência! Mas nada disto explica, de facto, o seu talento para as artes do esquartejamento de teens inanes que consomem drogas ou fazem sexo enquanto os pais não estão em casa - o que é quase sempre.

No filme de Carpenter, obra-prima maior do cinema (não esperem pelo qualificativo "de terror", pois este só vem estreitar a importância de um dos mais impressionantes exercícios de câmara da Sétima Arte, onde a forma implica directamente com o conteúdo e vice-versa), o mal é Mike Myers, vilão sem face visível que corporiza um mal maior: a hipócrita sociedade norte-americana, que com os seus bairros doentiamente simétricos, com os seus relvados impecavelmente aparados, que só são pisados pelas famílias mais castas do planeta, não consegue evitar que, por trás da fachada, quando a figura paterna não está a vigiar, seja tão igual ou pior que as outras. Não estão os pais, está Mike Myers a cumprir, em jeito de ama-seca, uma função institucionalizante de segundo grau. Ele é a prova de que o mal é uma fabricação cultural profundamente enraizada nos nossos espíritos, algo cuja origem transcende a lógica escapista do "2+2=4".

"The Strangers", do estreante Bryan Bertino, chega-nos como uma reinterpretação da lição dos mestres (Romero, Carpenter, Hitchcock, De Palma e, por que não?, o Shyamalan de "Signs" e "The Village"): o mal existe, não se explica, mas poderá ser traduzido em imagens e sons. Por que atormentam os "estranhos" do título um casal que não fez mal a ninguém, a não ser, quanto muito, a si mesmo? Se calhar foi mesmo porque a personagem de Liv Tyler rejeitou o pedido de casamento da personagem de Scott Speedman, o que não é lá muito cristão, mas não vamos por aí: como um dos "estranhos" chega a dizer, nós fazemos isto porque vocês "estavam em casa".

E aqui entra a ideia de ocupação de um espaço, a que, entre todas, mais se aproxima ao "Halloween" de Carpenter. Neste, o mal tem um corpo que se confunde no espaço com o corpo da câmara (daí a proliferação de planos subjectivos), mas por vezes estes dois corpos desencontram-se, produzindo uma tensão: o plano que parecia subjectivo revela-se objectivo, mas rapidamente passa de novo a subjectivo, uma indecisão que poderá desaguar numa espécie de objectivização do sujeito do mal ou, por outras palavras, numa absolutização da ideia de mal. É aqui que entra a coreografia terrificante de Carpenter que "The Strangers" tão inteligentemente absorve: a imobilidade, terrível, perscrutadora, vigilante, total, do mal, coisa abstracta em ameaçadora simetria com a condição - também ela, imóvel - do espectador, em choque com a mobilidade vertiginosa da câmara (do cinema).

Numa palavra, tudo é uma profanação do real, uma assunção do impossível no cinema e contra o cinema: por exemplo, veja-se a sequência de imagens e sons em que o protagonista regressa ao carro para recuperar o telemóvel e é tocado nas costas por uma mão que seria, julgávamos nós, espectadores exaustos de slashers, mais um susto em falso sacado de um equívoco entre os protagonistas, mas não, não é isso, nem o contrário: a mão feminina que toca nas suas costas não existe, simplesmente, irrompe do vazio. A relação entre a câmara e o objecto converte-se numa esquizofrenia dialógica de feição incerta (afinal, quem são e onde estão, ou de onde vêm, os "estranhos"? Quem é e onde está, ou de onde vem, a câmara?). Eis uma mise en scène convulsa que teoriza sobre si mesma.

Bertino está na mui exclusiva linhagem de cineastas que trabalham o espaço com a precisão de um bisturi e que entendem o mal como coisa que se move entre e, sublinhamos, dentro de nós. A sequência em que Liv Tyler observa um "estranho" pelas costas é uma inversão/perversão inteligentíssima - e, novamente, teórica - dos papéis do bom e do mau na narrativa.

A mesma ideia é explorada na menos subtil, ainda que igualmente tensa, sequência em que estamos lado-a-lado com os protagonistas, ele com caçadeira em riste, num dos quartos da casa e só vemos, à sua/nossa frente, um corredor por onde, a qualquer segundo, poderá passar a personificação impossível de todos os seus/nossos medos. O resultado desta equação é o primeiro homicídio de todo o filme - e, ao pé de Eli Roth e amigos, podemos dizer que poucos acontecerão. Contudo, este não é perpetrado por um "estranho", mas sim por outro "killer" que, ironicamente ou não, merecerá o castigo pelos seus pecados num final aterrador, de montagem quase expressionista - o quintal, uma facada, uma árvore, outra facada -, atravessado, imagine-se, pela luz mais incandescente e fulminante da manhã. Não vamos mais longe que isto: "The Strangers", um exercício vivo de mise en scène onde a verdadeira noite começa de dia.

Ler mais aqui: IMDB.

2 comentários:

Tiago Ramos disse...

The Strangers está mais perto das origens do terror, mas peca pelo vazio...

Luís Mendonça disse...

É nesse Vazio, absoluto, inatingível, que se constroem os grandes filmes de terror - ou não gostas do "Halloween"?

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