segunda-feira, 12 de março de 2012

Iko shashvi mgalobeli (1970) de Otar Iosseliani


Acho que não há imagem, ao mesmo tempo, mais exacta e mais inexacta que podia terminar "Era uma vez um melro cantor", obra-prima maior de Otar Iosseliani datada de 1970: o interior do mecanismo intrincado que faz um relógio dar horas.

Comecemos pelo fim: porque é que esta imagem, profundamente metafórica, é inexacta? Porque o cinema de Iosseliani funciona, muito anti-mecanicamente, não seguindo a lógica artificial, exacta, do relógio, mas seguindo a cadência que é própria à fluidez intempestiva, sempre-movediça, da vida, na sua abertura constante para todo o lado. Uma fluidez líquida, diria pensando em Jean Vigo, herói número 2 (o 1 é Tati - era preciso dizer? -) de Otar Iosseliani; líquida e sem sentido, ou melhor, sempre aberta a todos os sentidos possíveis - e digo-o agora pensando no tal herói número 1 do realizador georgiano e de todos aqueles que amam o cinema como expressão de vida ou que celebram, em embriaguez baudelariana, isto é, redentora e harmoniosamente desarmoniosa (como o cantar de um pássaro!), a con-fusão gerada pelo "moderno" entre os fluxos das imagens, aquelas que são do imaginário (do cinema) e aquelas que são postas no imaginário (pela vida). Enfim, a imagem do relógio é a metáfora perfeita do cinema de Iosseliani na medida em que, como dita a etimologia da palavra - meta-fora, pôr fora -, é justamente inexacta a captar o espírito caótico, sem "horas" - e o protagonista aqui bem luta com o tempo, ou melhor, bem dança com ele! -, do cinema de Iosseliani.

Agora voltemos ao princípio: porque é que a imagem do relógio é, pelo contrário, profundamente exacta? Já respondi em parte a esta questão: de facto, enquanto metáfora de todo um cinema, é inexacta na medida em que é totalmente exacta, mas, atenção, na orgânica viva do filme é exacta na medida em que é inexacta. O relógio, como símbolo do tempo (ou como instrumento de medição do tempo), é o amigo mais inconstante do protagonista: ele tenta chegar a horas a todo o lado, ajudando amigos, familiares, vizinhos, visitantes, colegas de profissão. Umas vezes consegue chegar "a horas", outras vezes - nem tantas quanto isso - aparece atrasado. Não podia haver, portanto, imagem que selasse, de forma mais finamente irónica, o destino de um filme, que, no caso, se confunde necessariamente com o destino do seu protagonista - o flâneur par excellence da Obra de Iosseliani!

Por outro lado, o relógio é incorporado no filme como coisa orgânica. Com efeito, quando o corpo do protagonista - AVISO: SPOILER - é atirado ao chão, na sequência do embate com uma viatura aparecida como que do nada, pressentimos o pior. O título em inglês (que varia) fala-nos de um "era uma vez..." (Once Upon a Time There Was a Blackbird) ou de um "em tempos houve..." (There Once Was a Blackbird), como se esta história tivesse uma qualquer estrutura parabólica que implicasse o sacrifício de alguém que amamos - no caso, o protagonista. Iosseliani não nos revela nada do estado do nosso herói, mas é aqui que sabe introduzir o elemento perturbador, docemente perturbador: o tal plano do relógio. Ele está a ser consertado por uma personagem que vimos antes, na travessia que o protagonista faz entre amigos e conhecidos. E ele, o relógio, é-nos dado pela imagem do seu mecanismo interno (muito secreto) e pela audição do seu som (que, citando Bresson, diríamos, é tão ou mais poderosamente ícone de si que essa imagem!).

O som do silêncio (a morte como avaria) é, de súbito, por um toque "mágico" no interior do relógio, interrompido pelo som que é soberanamente deste (a vida como resolução da avaria). A operação bem sucedida encerra este filme sobre um homem anónimo, igual a tantos outros, que nos conquistou o coração durante a hora e meia de filme de que ele se serviu para deambulação livre oferecida pelos amigos e a cidade (nesta ou noutra ordem). O som do relógio torna-se signo acústico de vida orgânica, mais concretamente, sinal de que o coração do herói, que de máquina tinha zero, já terá recuperado da avaria. O tempo - amigo menos amigo do protagonista - redime-se, assim, na imagem e no som desse plano. É ele que anuncia a salvação do melro cantor!

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