segunda-feira, 18 de julho de 2011

O Pagador de Promessas (1962) de Anselmo Duarte


"Mas acredite senhor Padre o burro tem alma de gente", diz a certa altura Zé do Burro ao padre da Igreja de Santa Bárbara, numa tentativa - já desesperada? - de convencê-lo a abrir as portas à cruz que vem carregando às costas desde a sua terra, para pagar uma promessa à santa milagreira que lhe salvou Nicolau, o seu melhor amigo... um burro, mas não um burro qualquer...

"O Pagador de Promessas" é uma sátira religiosa que faz uma síntese inusitada entre o neo-realismo "místico" de Rossellini (um "São Francisco, Arauto de Deus"), o neo-realismo social e político de De Sica (sobretudo, "Ladrão de Bicicletas") e a truculência herética de Buñuel ("Viridiana"). Faz a síntese, mas também antecipa; antecipa a "peregrinação exemplar" do burro com alma de gente, ou melhor, que carrega a cruz de Jesus até ao seu sacrifício final, na obra-prima de Bresson, "Au hasard Balthazar"; e, em boa verdade, inaugura internacionalmente a nova vaga do cinema brasileiro, estando já impregnado de algumas das temáticas que encontramos em cineastas como Glauber Rocha - a colonização do território, a cristianização do povo versus a resistência, uma resistência revolucionária..., do passado da terra e das crenças ancestrais dos nativos con(tra-)vertidos.

Entre o chamamento da terra e a imposição da vontade do homem branco - de uma Ordem religiosa, normativa e totalizadora da experiência... - está o nosso herói, o camponês humilde e ignorante que ama o seu burro e que ama a santa que o curou, a santa que ele acredita que o terá curado. Mas será o burro um "bode-expiatório" - ok, o jogo de palavras deve ficar por aqui... - do Diabo, da macumba maldita que resiste, como um vírus, nas zonas onde a civilização - leia-se, a Igreja e o dinheiro do homem branco - ainda não se instalou em definitivo? O padre diz que sim, que o pobre Zé do Burro "investiu" a sua fé numa feitiçaria demoníaca, pagã, herética e, por isso, a sua entrada na Igreja será um atentado à imagem de Deus. Zé do Burro, com a cruz aos ombros, tem agora de perseverar, até o senhor padre mudar de opinião. Enquanto Zé do Burro se "cristifica", a sua mulher titubeia... entre o seu pio marido e um pérfido "gigolô", "bonitão" de alcunha e de aparência. O filme vai-se coser entre estas duas histórias: a santidade (crescente) de Zé do Burro e a profanação (crescente) da sua mulher, que, como a Virgem, acompanhou o malogrado marido na sua peregrinação de sete léguas.

Ora, o que é interessante neste filme de Anselmo Duarte, vencedor da Palma de Ouro em 1962, é o modo como estas duas narrativas se vão deixar infiltrar por uma série de micronarrativas que traçam, com muita ironia, o choque entre a tradição mais enraizada do Brasil (a capoeira, a feitiçaria "negra", etc.) e uma modernidade cínica tomada pelo dinheiro e a fama fáceis (veja-se o jornalista que monta um autêntico "Big Carnaval" em torno do nosso herói, para, com isso, vender mais uns jornais; veja-se o galego da tasca, que vê no grande "sacrifício" oportunidade de negócio ou veja-se, por fim, o "gigolô", que apenas quer ficar com a mulher do pobre camponês...).

Para além da urdidura mordaz da história, "O Pagador de Promessas" é também hábil quando põe em diálogo, um diálogo visual, todos estes "ícones" contraditórios da cultura brasileira; no fundo, quando se encara como uma espécie de auto iconoclasta da tropicalidade brasileira, do seu eclectismo religioso contra o nivelamento cego do capital e da política, contra a demagogia da "religião dos media" e a intolerância da Igreja Católica... Numa palavra, eis um filme religioso "de esquerda", sobre uma espécie de "resistência franciscana" à doutrina/ideologia oficial, que se auto-sacrifica para expor o mundo e o homem na sua real dimensão - talvez uma dimensão, na sua essência, "anti-religiosa".

2 comentários:

Álvaro Martins disse...

Tenho de ver isto ;)

Luís Mendonça disse...

Na próxima newsletter vou destacar este filme nas "rarides", numa edição disponível no mercado português em importação - e cuja qualidade da cópia me surpreendeu pela positiva.

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