domingo, 25 de dezembro de 2011

RR (2007) de James Benning


Vamos lá fixar esta ideia: o comboio é a figura-síntese da experiência cinematográfica. Em "O Olho Interminável", Jacques Aumont traça um interessante paralelismo entre a experiência pioneira das viagens de comboio e os relatos dos primeiros espectadores de cinema, que viam no novo medium uma forma de “transporte”- para viagens - mais do que um meio expressivo de comunicação. Deste modo, de corpo imóvel e olho móvel, o espectador cinematográfico e o viajante da locomotiva se equiparavam.

Este comboio, o comboio de transporte de pessoas, é aquele que McLuhaniza a mítica "A Chegada de um Comboio" dos Lumière: afinal, a experiência do cinema era, enfim, uma extensão fenomenológica da experiência das grandes viagens de comboio - mais até, arrisco afirmar, do que um desenvolvimento natural da fotografia. O cinema nasce com a imagem do comboio, que, por sua vez, é o símbolo cimeiro da modernidade tecnológica e da política de ocupação territorial - os westerns americanos encarregaram-se de traçar a genealogia da locomotiva a vapor, na disputa e conquista do território ao inimigo índio. Não espanta por isso que entendamos o comboio como sendo algo mais do que apenas "mais um" meio de transporte - de sight seeing. Cedo se percebeu que este é, também e acima de tudo, um dispositivo de poder e não espanta por isso que também vejamos no cinema - ou nos media fotográficos - um igual mecanismo de "ocupação do espaço, não-terrestre, do imaginário", bem assente sobre os trilhos infindáveis do inconsciente (Penso que é Morin que diz que o inconsciente, esse conceito forjado pela psicanálise, que por sua vez, é uma desmontagem quase mecânica dos processos da mente, funciona como uma espécie de cinema em miniatura que temos na cabeça).


"A Chegada de um Comboio" (1895) de Auguste & Louis Lumière

Posto isto, e dando sentido à máxima de Marshall McLuhan, no "A Chegada de um Comboio" temos um bom exemplo de como o "meio é a mensagem": o cinema auto-reflecte-se na sua imagem primordial - o comboio - para celebrar o seu próprio nascimento. Como bom produto da modernidade, o cinema nasce olhando-se ao espelho, fazendo desse gesto auto-referencial uma espécie de crítica para-psicanalítica da modernidade. Só temos consciência disso hoje, ultrapassado que está o trauma da imagem realista que pôs em movimento aquele cenário comum do dia-a-dia - a monstruosidade do quotidiano é, contudo, assunto que ainda não está inteiramente dissecado e daí talvez o retorno de muitos cineastas contemporâneos às coordenadas do cinema primitivo.

Assim sendo, "A Chegada de um Comboio" é talvez mais do que o seu título aparentemente inocente possa dar a entender; o primeiro filme do cinematógrafo é a chegada de um novo medium e a partida de um outro. O comboio não acabava, mas o cinema irrompia como meio de transporte ainda mais expressivo, um rival de peso, porquanto tinha a capacidade de engolir todos os outros - um pouco como o que acontece hoje com a convergência multimediática propiciada pelo digital, o cinema vinha "totalizar a nossa experiência". Um novo meio de transporte, um novo meio de comunicação, um novo instrumento de poder.

O que é que Benning e "RR" têm a ver com todo este paleio? Tudo. O filme é uma colagem de planos-sequência, uns mais longos do que outros, que começam com a entrada em cena de um comboio e acabam com a sua saída do "quadro". Os comboios têm, contudo, uma dimensão (ainda) mais fantasmática que o comboio dos Lumière, visto que Benning privilegia os comboios que transportam mercadorias em contentores "anónimos", formas de diversas cores que desfilam, ordeiramente, rasgando (e interrompendo) a beleza das mais (extra)ordinárias paisagens naturais. Não há sinal de vida humana. Este comboio desumanizado, "automático", infinito, põe em confronto a querela Lumière-Méliès e o novo mundo fantasmático do digital.


"Viagem Impossível" (1905) de Georges Méliès

No seu "Theory of Film", Siegfried Kracauer sai em defesa da tendência realista em contraponto com a tendência formativa, pondo em confronto dois planos que têm como denominador comum a imagem do comboio. Diz Kracauer que “(…) o comboio em "A Chegada de um Comboio" é a coisa verdadeira, ao passo que o seu correspondente em "A Viagem Impossível" de Méliès é um comboio de brincar tão pouco realista quanto o cenário que este atravessa” . O comboio de brincar de Méliès não era considerado "the real thing", logo, seria uma mentira que não caberia ao cinema perpetuar; porque o cinema servia para "iluminar" o nosso caminho em direcção ao real-absoluto (a verdade) e não encobri-lo de fantasias e ilusões humanas (a ficção).

A maturidade da linguagem cinematográfica parecia depender do material de que eram feitas as locomotivas "imagi(n)árias", mas olhando para os comboios de Benning parece que encontramos a síntese destas duas tendências: sim, os comboios estiveram ali e, sim, não são feitos de plástico ou papier maché; por outras palavras, são "the real thing", mas, por outro lado, o que é que estes comboios têm a ver com o comboio dos Lumière, o comboio do século XIX, que transportava famílias para longe, espalhando a população pelo território, ou que muito romanticamente separavam para sempre casais de namorados - ele ia para a guerra e ela despedia-se dele, na Gare, dizendo adeus com um lenço branco, ensopado em lágrimas, na mão? Os comboios de Benning são pesados, duros, "the real thing", mas também se pareceram com brinquedos tal como são "mostrados" pela sua câmara. A pergunta "haverá alguém a conduzir esta máquina já totalmente desumanizada e indiferente à beleza natural que a envolve?" acentua a sua dimensão perturbante e fantasmática, ao mesmo tempo que comenta, "desnaturalizando", a envolvência - e até aqui vai a subtileza crítica de Benning.



"RR" (2007) de James Benning

Estes objectos-espaços sem vida lembram as salas de cinema em que centenas de cadeiras vazias, por levantar, assistem - sem magia que as anime... - à projecção do filme... O comboio e a sala de cinema apresentam-se, hoje, cada vez mais como "não-lugares" remetidos ao esquecimento pela sobrelotação virtual do ciberespaço e pela reinante cultura ultra-sedentária do on demand - do sofá e das batatas fritas. Contudo, os bens - por exemplo, as coisas de que são feitos os sofás e as batatas fritas -, esses, têm* de ser transportados de um sítio para outro tal como, defendem os "resistentes" que se alimentam ainda de uma certa "ilusão romântica", as salas têm de continuar a projectar viagens para cadeiras vazias. É desolador assistir a este suicídio da paisagem moderna, onde o papier maché de Méliès nunca se pareceu tanto - ou parece-se mais, pela primeira vez! - com o concreto "the real thing". "RR" põe-nos a pensar sobre onde estão, onde param..., os objectos de desejo e de "disputa" filosófica caros aos cineastas/teóricos primitivos e como podemos caracterizar a condição da imagem cinematográfica num mundo onde a ideia de "lugar" está cada vez mais abstractizada pelo fenómeno do digital.

*- Para mais informações...

Sem comentários:

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...