domingo, 24 de fevereiro de 2013

Tenham medo, eles são perigosos, eles são...os Óscares!

Óscar Tacuara Cardozo ou, como lhe chama Jesus, "o Óscar"

Como seguir a cerimónia? À pala de Walsh, está claro!

A cobertura do evento será intensiva, em três plataformas: Facebook, Twitter e, mais importante, no próprio site do À pala de Walsh, com podcasts gravados "na hora" comentando as principais incidências.

A deliciosa (ou nem tanto!) antevisão é feita aqui.

Juntem-se a nós, é mais fácil passarmos por esta noite "perigosa" bem acompanhados. Não é verdade?

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Carmelo Bene contra o cinema: excertos de uma entrevista "inaceitável"


Os excertos que publico abaixo - traduzidos muito livremente por mim - dizem respeito a uma entrevista televisiva realizada por Sandro Veronesi em 1995 ao cineasta, actor, encenador, dramaturgo e pensador Carmelo Bene. O seu título, "C.B. versus CINEMA", resume muito bem o espírito desta entrevista que é muito mais um monólogo ou uma ininterrupta deambulação teórica de Bene que o tradicional "frente-a-frente" televisivo.

Por favor, tenham esta publicação não tanto como uma provocação aos leitores do CINEdrio, mas antes disso como uma provocação ao próprio CINEdrio.

Para consultar na íntegra esta entrevista - ou se pretende citá-la num trabalho científico -, recomendo ao leitor a aquisição da edição Raro Video de "Nostra signora dei turchi", a fonte usada para esta transcrição/tradução.

Há cinema que nunca teve cinema... Sempre foi um plebiscito contra o bom gosto, o que era como Nietzsche descrevia o teatro, mas cabia melhor ao cinema, onde as pessoas estão sentadas numa sala escura ou semi-escurecida, durante muito tempo e, incompreensivelmente, um "quadrado" subitamente se ilumina! Se deixassem na escuridão também esse "quadrado"... 

O cinema (...) é uma celebração dos irmãos Lumière. O que resultou do período dos Lumière? (...) Eu penso que a sua comemoração dura desde o século XIX, a mesma que se tem perpetuado. É uma celebração na qual as pessoas vivem falsos encontros, organizados numa espécie de turismo de massas. (...)

(...) Porventura, a única não-história do cinema é aquela de Gilles Deleuze: "Imagem-Tempo" (...), que cita aqui este C.B., daqui em diante ausente, e Antonioni com referência ao corpo. Para dizer que nós "somos" um corpo ao invés de "termos" um corpo. (...) Deleuze pode pôr Carmelo Bene e Antonioni na mesma frase como completos opostos, mas sempre focando no corpo. As personagens, as figuras... Sim, eu chamo-as "figuras", personagens implica sempre uma certa psicologia, não é verdade? (...) Antonioni é um mestre da ironia, talvez... os seus filmes são os únicos filmes cómicos, na minha opinião. Por cómico, não quero dizer "bufo". Schopenhauer distinguiu "bufo" de "cómico". O "bufo" são essas pessoas que vemos na TV. O "cómico" é qualquer coisa muito afiada, como uma espada. É frio e surge subitamente como um veneno (...). Não quero exagerar com estas frases de bolso mas este é o conceito básico.

Para mim, o autor está separado da obra. Ele "é" a obra-prima, ele não pode "produzir" a obra-prima. Esta é a minha atitude no confronto com a imagem (...). Não suporto a representação. Toda a representação é uma representação de Estado. Não suporto a arte, nem mesmo as grandes obras de artistas, como Rafaello... (...) O cinema não é a sétima arte. O cinema não é nada. Com efeito, os festivias de cinema são festivais de entidades híbridas (...). O cinema sempre foi tributário da literatura, da música. Havia um músico que acompanhava os filmes, agora a música está nos filmes. O cinema nunca se "filmou a si". Eu nunca vi um filme na minha vida! Eu digo que para se ver um filme, temos de mergulhar no "Ulisses" de Joyce, talvez. Logo, não é uma questão de ver material filmado, mas ao invés do que se está a passar agora, do imediato. No entanto, está escrito. (...) Depois há a dobragem. A dobragem é uma enésima cópia, isso torna-se numa espécie de pequena masturbação do set pelo set. A obra inteira do Fellini não é mais que uma desastrosa auto-gratificação do set.

Ele não é um grande acrobata nem um grande bombeiro. Para mim, é um cineasta. Assim sendo, não se pode fazer literatura da literatura, música da música, cinema do cinema...  (...) É preciso olhar para fora. Onde está este "fora" no cinema? Onde está a diferença? (...) [O cinema] está demasiado organizado, trabalhado, com guarda-roupa que vence prémios... Existem sempre os prémios. É um cinema "de Óscar": quanto mais ganha, mais cretino é. Mas não cretino em sentido nobre. É um cretino esperto, que quer agir com esperteza. É quase analfabeto. 

O cinema é vulgar, tem códigos muito precisos. Não existe um cinema americano ou italiano. Nos últimos 20 anos, os americanos abusaram de efeitos especiais. O cinema italiano, o realismo com ou sem bicicletas (...), a música, a dobragem, a paisagem... é completamente diferente. 

[O cinema] é um nado morto, com os Lumière. (...) Podemos distinguir um cinema emergente, terceiro-mundista (...), um cinema decadente, um cinema balbuciante, a extravagância. Tudo está ligado a uma linguagem. "O cinema do Burundi é um cinema do Burundi", mas depois não tem nada a ver com o Burundi. Os filmes americanos não têm nada a ver com a América! Alguns dizem: "A arte não deve ter nada a ver com a vida". (...) A vida não tem nada a ver, porque na nossa rotina temo-la compreensível, nós encontramos equilíbrio em qualquer coisa. Eu nunca vi um filme desequilibrado. A primeira coisa que as pessoas dizem é "bem filmado!" O que quer isso dizer: "bem filmado"? Artaud queria adicionar odores aos filmes no cinema. Todo o tipo de cheiros, até os mais fétidos. (...)

Ao cinema é atribuída uma função social. Quando se fala de social estamos sempre numa fossa séptica enorme. Era Schopenhauer que falava em "excremento humano". 

(...) O cinema nasce como uma tentativa imbecil de um restauro... pedido por ninguém. (...) Não se pode restaurar "Ulisses" de Joyce. Tentaram! Mas não se pode; não se pode transferir... Henry James... O charme, a grandeza, o feeling... Para mim, o cinema é uma demolição de imagens, dada a montagem frenética, a repetição. (...) O cinema precisa de ser inaceitável e incompreensível. (...) 

Ninguém trabalha sobre a película. (...) 

Ninguém pensou na importância da "pele" do filme, o verdadeiro corpo, esse corpo que se filma a si, o desmembramento do corpo. Não é preciso nenhuma nostalgia artaudiana pela origem. (...) Em qualquer caso, é preciso trabalhar nos dois lados da câmara, não apenas num dos lados. (...) Se o teatro é um plebiscito contra o bom gosto nietzschiano, o cinema é três vezes pior. (...)

(...) O cinema não tem nada a ver com nada, mas pensa que pode agrupar tudo. Para mais, é plano, com o ecrã ali especado. Não é uma questão de definição... melhor ou pior posta. Nunca fui um cinéfilo, excepto quando era miúdo. Eu fiz filmes para me livrar do cinema. "Nostra signora dei turchi", 1968, no ano mais estúpido na história do excremento humano, enterrava o cinema. 

No cinema, nunca vi nada, sem ser fastio. (...) O cinema nunca questionou o seu valor. (...) Não documenta nada. O século XX foi muito interessante. Ao nível patológico, por exemplo. (...) Eu vi os grandes campos de concentração. Isto é patologia, para lá do conceito de bem e mal. Mas também produziu Joyce, Kafka... (...) Mas onde está a graça no cinema? Onde está a beleza que é mais bela que a beleza, como dizia Schopenhauer sobre a música de Bellini? Não vejo.

Eu não vejo nenhuma lição schopenhaueriana [no cinema]. Não vejo no teatro, na música, no cinema do século XX. Ainda menos no cinema. Que propósito serve? Não existem factos. O próprio Aristóteles nos ensinou isso. O facto existe se é contado. Ou seja, vive... mas só porque aconteceu. (...) A História não existe. É só uma narração desconexa de factos que nunca aconteceram. De qualquer modo, presta demasiada atenção aos tormentos das massas. (...) 

O cinema é este estranho inquilino: sempre se obstinou em ocupar uma casa que não lhe pertence. 

O cinema é sempre dialéctico, como um péssimo teatro de prosa. Não tem a graça do melodrama, por exemplo. Ou a folia do melodrama. Nunca há um assunto que é... em pornografia, precisamente, que é visualmente pornográfico, ou auditivamente pornográfico. Eu digo isto no sentido de ob-sceno, ob skene (fora de cena), a origem do termo. (...) Eu estou a falar quando o objecto e o assunto são complementares, se tornam o númeno kantiano. Há sempre representação e vontade. Nunca abandono, nunca vi abandono no cinema, nem no teatro, nem na música do século XX, nem mesmo na música do grande Stravinsky. Temos de recuar ao século XIX, a Rossini, a Bellini, a Pergolesi, ou a Cimarosa. (...) É o libertar-se da língua, é o libertar-se da linguagem o que importa; ocupar-se dos buracos [da linguagem]. É o conceito que Lacan percebeu e usou em pleno. 

O pior inimigo do cinema é o autor. Acho que não há um único italiano hoje que não tenha usado uma câmara de vídeo para filmar alguma coisa. Nós precisamos de organizar um festival para pessoas que verdadeiramente nunca estiveram no cinema... e nunca filmaram nada - nem mesmo em Super 8. Para eles, vale a pena um festival! Ou um festival para pessoas cegas... (...)

O filme consiste sempre em acções filmadas. Quase uma história, uma narração histórica da acção, mas a história foi sempre a não-história do acto. O acto nunca é a acção. O acto é o esquecimento que nos domina, como dominou Lorenzo de Medici... e todos os tiranicidas, quando trespassam o tirano com uma espada. Aí, eles não podem pensar se concordam, na ideologia, na ética, na deontologia, na moral - devem agir! Eles não existem mais. (...) Nunca vi nada espontâneo no cinema. [No set pode-se] tropeçar, cair. No cinema, refilma-se a cena. "Stop! Isso não está bem! Vamos fazer outra vez!". Muito se refilma! 

[Nos filmes, as personagens] são ou milionárias ou pobres desempregadas, com ou sem a proverbial bicicleta neo-realista. Em filmes com Cary Grant, etc. as personagens, estão, na realidade, sempre desocupadas. Elas não fazem nada. Elas chateiam os vizinhos e por aí fora, mas depois quando é que trabalham? Eu quero dizer o posto de trabalho, correctamente considerado uma forma de escravidão.  Onde está a sua linha de montagem? (...) 

Quando a música supera a música na sua musicalidade, há uma força energética. O cinema ainda existe unicamente na percepção, na ideologia. (...) Nunca acede, porque é uma mediação ao inconsciente. Não podemos aceder ao que é incompreensível. (...) 

(...) Eu nunca vi um filme que mostrasse a vista. Ele mostrou-me especificamente isto ou aquilo... (...) Os realizadores não têm um emprego. Eles não têm nada para fazer, porque é suposto eles fazerem aquele filme e nada mais. 

"E Tudo o Vento Levou"? Qual "E Tudo o Vento Levou"? Nem uma folha se mexe! E não há absolutamente vento! É uma coisa de efeitos especiais, vê-se logo! (...) Quando vemos uma coisa um pouco diferente, mesmo o diferente [acaba por ser] homologado. Qualquer Estado, sobretudo democrático ou republicano, contempla o que é diferente. Não o negligencia, muito longe disso! Ele quer subvencioná-lo, se puder. Como um rebanho. Nós encontramos sempre uma ovelha negra, mas será sempre uma ovelha. (...)

O Festival de Veneza é um acontecimento onde milhares de filmes são destruídos. (...) Temos de destruir a informação como um inimigo da cultura e a cultura como uma inimiga da iliteracia que deve ser restaurada. Cultura no sentido de Derrida, com uma raiz no "colo", colonização. Mas se a cultura é colonização, o que raio é a informação, que nunca nos informa dos factos, mas antes in-forma os factos? (...) 

Não digo que não devia haver jornalistas. Não é por serem seguidos por tanta gente! (...) Os jornalistas tendem a poluir a linguagem, eles misturam qualquer coisa do inglês com expressões alemãs, numa maneira... Eles buscam qualquer coisa excêntrica. (...) Como se pode ler em profundidade qualquer coisa escrita no Panorama, Expresso, Repubblica? Ou, para mais, no telejornal? Eles sabem subconscientemente, num sentido freudiano, que o desconhecido comum pertence às massas, mas também a eles [jornalistas]. Quando eles nos mostram uma catástrofe, não confiam na consciência do espectador. "Olhem para esta catástrofe!", "Vejam como é terrível isto!", "Vejam quanto é o sangue!". É a palavra falada que deforma factos e desinforma, quando deveria informar. (...) Desconfiam da imagem. (...) Não há necessidade de comentar. (...) Não está na orelha, está nos olhos! Esta desconfiança é sintomática do que disse sobre o cinema. Nem mesmo os jornalistas se fiam nas imagens! 

Está morto, é coisa asséptica. Não está nas sensações, como Bacon existe nas sensações. Bacon não fazia pintura. Não tem nada de visual. Aqui, voltamos ao brilhante ensaio de Gilles Deleuze. Não deixa escapar nada, Gilles. Ele sim é uma máquina. Não posso ir ao cinema, porque a certa altura é como quando uma mosca pousa no ecrã do televisor. [Depois perguntam:] "O que viu ontem?". [Resposta:] "uma mosca". 

A imagem é exangue. Mas não tem sequer a graça de uma certa convalescença. Como todos os problemas, este é um falso-problema. É por isso que o cinema continuará a ser um problema para pessoas preguiçosas, comentado por comissões republicanas e democráticas de cultura. 

Não há nada a celebrar. (...) Como um necrófilo gosta de ir a cemitérios, outros maníacos vão ao cinema. Mas já não precisa de ir para aí, porque agora há a televisão. Não é um verdadeiro substituto, mas tanto melhor! Porque o cinema não tem um telecomando. A invenção da televisão destruiu o entretenimento. Também destruiu a sala de estar, mesmo num sentido positivo. Destruiu a palavra e destruiu a conversa; destruiu a análise da linguagem e da contra-linguagem... [No cinema] quando a película se rompe - lembro-me disso - toda a gente protesta com o projeccionista: "Despacha-te!" O que raio estavam as pessoas a ver? Eu não sei. O único acontecimento que teve lugar foi o rompimento da película. Sei que também é uma coisa subconsciente o facto de terem implicado com o projeccionista. Porque ele é o verdadeiro autor, lá atrás. 

Para saber mais sobre Bene...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Newsletter #19: Bene


Quando Carmelo Bene advoga que, antes da obra, é ou deve ser o autor "a" obra-prima parece estar - ou, pelo menos, aos meus olhos está - a desenhar o auto-retrato perfeito. Personalidade complexa, de uma densidade e de um saber que já não pertencem a este tempo, Bene foi actor de teatro, encenador, dramaturgo, cineasta e, não menos importante, um pensador ou, no sentido mais totalizador, um crítico. Na realidade, o que faz efervescer as suas imagens é essa convicção de que estas partem de uma postura crítica - louca e lúcida, quase ao mesmo tempo -, já que "salta à vista" que o seu cinema enforma de um pensamento recalcitrante, terrorista, terrivelmente obstinado no combate aos lugares-comuns, às soluções fáceis, ao embasbacamento infantil que sustenta uma certa ideia dominante de cinema. Bene assume-se como um violento descrente no cinema - ele faz cinema CONTRA o cinema -  e é com base nessa premissa que, presentificado na imagem pelo seu próprio corpo, baralha as habituais coordenadas da linguagem fílmica, tornando-a, em certos momentos, difícil de situar ou compreender (de Pasolini a Jerry Lewis, passando por Anger ou Markopoulos, as referências podem ser tão diversas e "incongruentes" como estas).

O cinema precisa de ser inaceitável e incompreensível. É o próprio Bene que o diz numa entrevista notável (que, em breve, deverei reproduzir neste blogue, pelo menos, nas suas partes mais significativas) - na qual cita Schopenhauer, Nietzsche, Derrida, os seus amigos, mas amigos sem "cedências", Pasolini e, com quem escreveu o livro Superpositions, Deleuze. Ainda que tenha merecido a maior admiração por parte de boa parte (ou da parte boa...) da elite intelectual europeia dos anos 60 e 70, Bene é hoje, no campo do pensamento cinematográfico ou das imagens - posto em prática, posto em teoria -, um universo a descobrir urgentemente e sem medos, preferencialmente nesta ordem: ele - a obra-prima - e, depois, a sua obra (quase) impenetrável. Com este intuito, de relançar a curiosidade e o fascínio em torno desta figura única, a Newsletter do CINEdrio faz de Carmelo Bene o herói de Março.

Para além da figura do mês, importa destacar alguns importantes lançamentos recentes, futuros e oportunidades no mercado livreiro e home cinema. Entre os filmes, prometemos dar a ver, entre muitas outras, obras dos irmãos Safdie, de Richard Fleischer, de L'Herbier, de Pagnol, de Frankenheimer, de Rossellini, de Rouch, de Anthony Mann... Quanto aos livros, prometemos temas tão diversos como o passado e o futuro do cinema português, as memórias de Friedkin, as visões do cinema pelo cineasta experimental Nathaniel Dorsky, os escritos sobre cinema de Maya Deren, o olhar crítico de J. Hoberman, David Thomson e o tão badalo por estes dias Alfred Hitchcock, os não-lugares de Augé, etc.

Para o inquérito do mês, convidámos o investigador de cinema e um dos principais dinamizadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento (AIM): Paulo Cunha.

Se gosta do que (ante)vê, não se esqueça: subscreva, de modo totalmente gratuito, a nossa Newsletter (cujo último número está acessível, para amostra, aqui) e, para o garante da nossa continuidade, partilhe esta informação.

Até já!



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Confirmadíssimo: "5 Noites, 5 Filmes" veio para ficar

Agora, caros amigos, é de vez: "5 Noites, 5 Filmes" está de volta à grelha da RTP2.

Depois de uns tantos falsos alarmes - ainda no tempo da direcção anterior -, a RTP2, no anúncio de hoje da sua nova grelha, relança, e passo a citar, uma rubrica "que já faz parte da história do canal".

A nossa causa Pelo regresso da exibição regular de cinema à RTP2, gerada espontaneamente entre bloggers e cinéfilos há cerca de dois anos, chega assim ao seu ponto culminante.



A partir daqui, conquistado que está o espaço que era devido à Sétima Arte na televisão pública, cabe-nos apenas acompanhar criticamente a forma e o conteúdo da "nova velha" rubrica "5 Noites, 5 Filmes". Contudo, penso que o passo maior já foi dado: é que agora temos, de facto, um espaço - com um nome que a responsabiliza directamente aos olhos dos espectadores com memória - onde se veja, se dê a ver, onde se pense e se dê a pensar os grandes filmes da história do cinema ou cinematografias menos vistas ou - pode ser o bastante - "apenas" Cinema.

***


Jorge Mourinha (jornal Público): Esta insistência cívica de um grupo de pessoas que vêem algo de errado na política cultural da televisão e acham que vale a pena continuar a pugnar pelo seu objectivo explica muito bem que é este o público-alvo da RTP-2 que o canal teima em não servir como deve ser: atento, activo, interessado, fiel Jorge Campos: o óbvio dispensa o comentário. Eduardo Paulo Rodriguês Ferreira: É um Canal do Estado. O Estado somos nós. Portanto nós exigimos uma programação. E mais, é caso para dizer: Eu pago para ver! João Mário Grilo (em entrevista ao JN): Foi na televisão que aprendi a ver cinema, com programas como "as noites de cinema". A televisão tem um papel muito importante num país onde os cinemas não estão a abrir, mas a fechar. É um direito das pessoas e um dever da televisão. Manuel Mozos (em entrevista): Há actualmente alguma programação de Cinema da RTP2? Inês de Medeiros (em entrevista ao JN): A uma petição que diz 'gostaríamos de mais' não se pode responder com contratos de concessão e tabelas mínimas. Concordo com mais cinema e penso que é importante terem atenção ao pedido, o que não quer dizer que a RTP2 não passe cinema. Paulo Ferrero (em entrevista): QUE HAJA CINEMA, do Mudo ao Digital. Vasco Baptista Marques (em entrevista): diria que a programação de cinema do segundo canal do Estado se destaca, sobretudo, pela sua inexistência.Alice Vieira (em entrevista ao JN): Para mim, cinema é no cinema, mas temos de pensar nas pessoas que estão longe do cinema por várias razões. E muitas vezes vejo-me a ir ao canal Memória para ver filmes e que aguentariam perfeitamente na Dois. A RTP2 deveria insistir mais no cinema e aí estaria a cumprir o seu papel. João Paulo Costa (em entrevista): Adoraria assistir ao regresso de uma rubrica do género "Cinco Noites, Cinco Filmes" que, há uns anos, me fez descobrir realizadores como Bergman ou Truffaut e crescer enquanto apreciador de cinema. João Milagre (em entrevista): é preciso aprender a amar. Eduardo Condorcet (em entrevista): Numa altura de crise é difícil compreender que a RTP2 não cumpra a sua função de serviço público, nomeadamente no que toca à produção audiovisual.Fernando Cabral Martins (em entrevista): [A programação de cinema da RTP2] parece-me errática e é raro dar por ela.Daniel Sampaio (em entrevista): A programação [de cinema da RTP2] caracteriza-se pela escassez e por não ter uma linha editorial, referente à escolha de filmes. Não se percebem os critérios de escolha. Maria Armanda Fernandes de Carvalho: e que o cinema mostrado seja do mundo e não só o chamado cinema comercial ou dos chamados autores consagrados. Deana Assunção Barroqueiro Pires Ribeiro: Cinema de qualidade é inprescindível em televisão José Perfeito Lopes: Como director do Cine Clube de Viseu, nos anos 73 a 77, vejo com mágoa o que estes senhoritos fizeram ao "canal 2". Manuel António Castro de Sousa Nogueira: Há muito e bom cinema à espera de ser exibido na RTP2, assim queiram os seus responsáveis que este canal seja efectivamente uma alternativa real à pobreza franciscana da programação dos restantes canais generalistas portugueses (incluindo, infelizmente, a RTP1). LUIS PEDRO ROLIM RIBEIRO: JÁ ERA SEM TEMPO António Manuel Valente Lopes Vieira: A televisão é o cinema daqueles que não podem ir ao cinema. Que o cinema volte à televisão. Miguel Barata Pereira: Aprendi muito do que sei de cinema a ver a saudosa rubrica "5 noites, 5 filmes". Marta Sofia Ribeiro de Morais Nunes: Como cresci a poder ter acesso ao melhor do cinema através da RTP2, quero continuar a poder crescer com ele. Maria do Carmo Mendes Carrapato Rosado Fernandes: As pessoas estão a "desaprender" de ver cinema, e isso não é bom...que regressem os ciclos de cinema, que regressem os bons filmes nos anos 30/40/50 do seculo passado, que regresse o cinema americano, japonês, europeu, que regres, se faz favor. Obrigada. JORGE MANUEL DOS SANTOS PEREIRA MARQUÊS: Só neste paraíso político à beira-mar plantado é que se tem de pedir e justificar o óbvio,o justo,os direitos e o razoável...Amadeu José Teixeira da Costa: Foi na RTP2 que vi cinema como nunca mais vi na minha vida. TODOS ESTES E OUTROS COMENTÁRIOS DOS NOSSOS SIGNATÁRIOS AQUI

Durante todo este tempo, fiz desta "animada" galeria de subscritores da nossa petição, postada na barra lateral do blogue, uma janela sempre aberta para que o leitor, no confronto com a realidade, pudesse aferir o que mudou e produzir a crítica... Durante demasiado tempo, essa crítica nascia do vazio de uma das partes. A partir de hoje, com toda a segurança, podemos passar a criticar a televisão pública, especificamenta a RTP2, não "na ausência" mas "na presença" de uma programação de cinema. Fecho, por isso, a janela, para que, enfim, se abra aquela porta - que nunca perdemos de vista - chamada serviço público.

Extinção da imagem-matéria = vivificação da memória

"Hapax Legomena I: Nostalgia" (1971) de Hollis Frampton

"Decasia" (2002) de Bill Morrison

(O conceptualismo teórico de Frampton contra o conceptualismo poético de Morrison. Nos dois é a matéria que se vai e a memória que se acende.)

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Newsletter de Fevereiro agora acessível a não subscritores


Caros leitores,

A Newsletter do CINEdrio vem transmitir a todos os interessados a boa notícia do seu relançamento, neste número 18 dedicado ao cineasta Raoul Walsh. Esta edição pode ser consultada na íntegra pelos leitores que já subscreveram a publicação, a versão que agora tornamos pública como amostra serve de aperitivo a todos aqueles que ainda não deixaram o seu endereço mail, primeiro e último nome aqui. Recordamos que a subscrição é totalmente gratuita e que nestas versões públicas, para além de poder vir a chegar tarde às promoções, apenas tem acesso a um número limitado de conteúdos.

Esta reactivação só foi possível graças à boa vontade dos nossos colaboradores e ao estímulo que as várias subscrições que temos recebido significaram e significam para cada um de nós. Temos um novo colaborador, o Samuel Andrade, que irá alargar e diversificar o escopo de análise da Newsletter. A sua presença, por convite, não encerra a nossa abertura a outras participações - nem que esporádicas - por parte de quem esteja interessado. Se se quiser candidatar a novo colaborador da Newsletter, por favor, faça-o seguindo estas indicações.

Até já,

Luís Mendonça e Francesco Giarrusso



The Naked and the Dead (1958) de Raoul Walsh


Dir-me-ão que é a adaptação da obra homónima de Norman Mailer ao cinema por um dos menos literários realizadores da história do cinema clássico. Poder-me-ão dizer isso, mas, para mim, este é um daqueles casos em que a obra literária é adaptada ao universo de um realizador para produzir nada mais nada menos que um remake. Com efeito, é a primeira vez que eu sinto uma repetição nítida no cinema de Walsh, cineasta que procura sempre transformar-se de filme para filme, mantendo apenas as coordenadas essenciais do "modo de acção" das personagens. Num filme de guerra, num melodrama romântico, num gangster movie ou num western noir, todas as personagens de Walsh "heroicizam-se" numa luta, primeiro consigo mesmas, depois com o meio que as envolve e que se dá a mostrar, na maioria das vezes, como um "mapa vivo" de emoções: do ponto A ao ponto B, um filme de Walsh revela-se, mas sempre a partir de uma luta interior que massacra o protagonista e à qual o espectador é lançado, tantas vezes, in media res - também ele, não só a personagem no espaço, reclama por uma bússola!

"The Naked and the Dead" reedita tudo isto, decalcando - como raras vezes Walsh fez (excepção feita a "Colorado Territory"?), como tantas vezes Ford e Hawks fizeram - o esquema narrativo, temático e dramático de outro filme seu: "Objective, Burma!". Dito de outro modo: aqui, Walsh parece fazer uma coisa impensável, que é "citar-se", "repetir-se" no conteúdo. Salvo pequenas nuances (como os flashbacks, em si pouco walshianos), estamos em território já batido pela câmara de Walsh, nada se acrescenta, apenas se sente uma reserva maior no retrato do inimigo e uma tentativa de pensar mais solenemente sobre as relações de poder no palco da guerra. Mas a solenidade discursiva não combina bem com um cinema não só "de" acção mas "sobre" a acção ou a sua impossibilidade. Eis um Walsh mais político, mais maduro, mas algo irreconhecível ante a pouca atenção dada à construção das (quase anónimas) personagens e à proporcional colagem à "formulação narrativa" de "Objective, Burma!". As mesmas questões filosóficas - sobre o lugar do Homem no conflito bélico - ou políticas - sobre o Poder e a hierarquia militar - sofrem actualizações ou rectificações de postura que não justificam - como deveriam - a realização deste filme.

Apesar de o conseguirmos detectar no ADN de grandes filmes de guerra contemporâneos como "The Thin Red Line", "The Naked and the Dead" parece ser apenas uma versão "actualizada" - não forçosamente "melhorada" - de um filme de grande sucesso de Walsh, algo que ficaria bem a um auteur clássico - como nos esboços de esboços de Hawks ou nas obsessivas repinturas de Ford - mas que acaba por convencer pouco vindo de um puro metteur en scène, isto é, de um realizador que constrói a identidade do seu cinema a partir da relação dinâmica estabelecida entre personagem/actor, câmara/realizador e meio/cenário e não de um esquema conceptual ou molde narrativo prévio. Walsh não esboça ou repinta, Walsh conta sempre da mesma maneira - com as mesmas qualidades, púnhamos assim - histórias diferentes. A sua dimensão autoral estará, quanto muito, na forma como "emoldura" os movimentos das suas personagens. Contudo, nem sempre as suas acções as fazem trilhar caminhos idênticos. Em suma, modos de agir semelhantes, em meios diferentes, podem ter efeitos dissonantes na acção.

Já vimos em análises anteriores como as personagens trocam de pele ou como Walsh nos mostra o percurso da sua ascensão na sociedade ou como lutam com ou se sacrificam por um passado que as persegue, na mente e no espaço... Numa palavra, vimos como estas agem assim, analogamente. Já vimos também como estas ideias se repetem enquadradas por diferentes géneros fílmicos ou até atravessadas por fórmulas narrativas pouco estáveis. A constância em Walsh está na forma pragmática (uma mise en scène mínima, no-nonsense) como revela indivíduos diferentes a interpretarem eticamente da mesma maneira situações sociais, políticas, históricas, dramáticas diferenciadas.

Mas atenção: isto não quer dizer que a partir da dinâmica enunciada, Walsh não acabe por dar de caras com moldes narrativos ou esquemas conceptuais já presentes em outras obras suas... O problema em "The Naked and the Dead" é sentir-se demasiado que o ponto de partida foi invertido: primeiro, mesmo que buscando "de fora", concretamente à prosa de Mailer, duplica-se a base narrativa de "Objective, Burma!" e, depois, procura-se encontrar essa dinâmica... que, lamentavelmente, nunca se vislumbrará em pleno. Para Walsh, a mise en scène é a base da pizza, não os seus ingredientes - aliás, aventuro-me a dizer o contrário de um Hawks ou de um Ford, onde, em regra, a repetição é mais substancial que formal ou, se o leitor não gostar de pizza, tão substancial quanto formal.

Por outro lado, como aponta muito bem Dave Kehr, ao contrário de um Ford ou Hawks, o cinema de Walsh nasce do - e morre no, apetece escrever - individual, não de uma - ou numa - consciência do todo. Constata-se facilmente isso pela relativa repetição de "paisagens" em Ford e Hawks e a permanente rotatividade, indecibilidade, destas nos filmes de Walsh - acontecerá isto porque tudo depende da forma como a acção das personagens vai mexer com o destino que lhes estava, social, politica, historica e dramaticamente, traçado. Walsh, cineasta do impulso e das personagens, muito mais horizontal que qualquer outro cineasta clássico, não convive bem com o eterno retorno às mesmas paisagens ou às mesmas situações. Nele, o remake está nos modos de agir, não nos modos da acção.

PS: Contrariando a referência feita a esta edição italiana (única, no mercado) de "The Naked and the Dead" na última Newsletter do CINEdrio, tenho de assinalar aqui, pondo em risco o grau de rigor desta análise, a péssima qualidade da cópia visionada. Fuja a sete pés deste DVD. Se não viu "The Naked and the Dead", espere por uma outra edição.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Band of Angels (1957) de Raoul Walsh


"Band of Angels", porventura o filme mais desmesuradamente romântico e melodramático de Walsh, é também uma das suas obras mais ambiciosas, ao elevar bem alto - mais alto do que em qualquer outro filme que vi do realizador norte-americano - a dimensão épica da sua narrativa, sendo esta impulsionada  por três actores/personagens com uma força dramática imparável: Yvonne de Carlo, Clark Gable e Sidney Poitier. Se para as personagens masculinas, basta a presença carismática desses dois poços de viralidade máscula - e, no caso, basta o sorriso característico ou a gestualidade aristocrática de Gable para transmitir toda a mensagem do que é, foi e se tornará "a força" da sua personagem -, na personagem feminina, Yvonne de Carlo, na pele de Amanda Starr, a "escrava livre" do oximórico título francês do filme, introduz na narrativa a determinação feminina que, ao contrário do que acontece em boa parte do cinema de Walsh, não nos surge atravessada por um traço neurótico moralmente "desorientador".

Nesse aspecto, de Carlo é "mais mulher" que qualquer outra mulher num filme que tenha visto de Walsh, mesmo comparando-a com Jane Russell em "The Revolt of Mamie Stover". Apesar disso, Starr, como Stover, vive as angústias típicas do herói - ou da heróina, enfim - de Walsh: "é aquilo que não é", uma mulher com a educação de uma rapariga branca, administrada por um fazendeiro muito rico, mas com "sangue negro" a correr-lhe nas veias, que a tornará numa "escrava livre" nas mãos de outro homem (Gable), a segunda figura paterna, desta feita, um homem que lhe conquistará o coração, depois de arrebatar, num leilão, o seu corpo-mercadoria.

Gable vive perseguido (pursued) pelo seu passado - que não revelarei aqui, para não estragar a surpresa - tal como Starr luta em permanência com a sua condição de mulher branca (livre), filha de uma mãe negra (escrava). Ele diz-lhe, antes de a beijar, que não podemos fugir do nosso passado ou pensar que o que fomos é separável de o que somos. O escravo culto (tão negro quanto branco?), Rau-Ru, magnificamente interpretado pelo sempre-genial Sidney Poitier, também lida diariamente com a indefinição da sua identidade: acarinhado e cultivado por Gable, mas, ao mesmo tempo ou por causa disso, preso, ainda mais preso a ele do que por norma está um escravo ao seu senhor - é o carinho (kindness) que tanto o revolta, ao mesmo tempo que o subordina mais e mais ainda ao seu amo.

Walsh não vai pelo caminho mais fácil, não mostra um fazendeiro terrível, que maltrata os seus escravos, nem torna Starr numa mulher negra sujeita a todas as desumanidades do sistema esclavagista, que imperava com violência nas vésperas da guerra civil norte-americana. Quem estiver a ler este meu comentário agora, decerto estará a pensar no recente "Django Unchained". De facto, como o próprio Vasco Câmara aponta na sua análise ao filme de Tarantino, "Band of Angels" apresenta vários pontos de contacto com esse filme, nem que seja por ambos situarem a sua acção no mesmo período histórico ou por também complexificarem a definição identitárias das suas personagens, mostrando (ou caricaturando, no caso de Tarantino) figuras como o "traficante de escravos negro" ou o empregado negro mais racista que qualquer homem branco... A própria sequência em que a personagem de Gable abre uma caixa onde estão dois revólveres e, com toda a serenidade e coolness do mundo, convida o seu principal rival a um duelo mortal em nome da sua amada parece prefigurar o que veio a ser o típico "set piece" tarantinesco - a diferença aqui é que só nessa sequência "Band of Angels" dá uma tareia de todo o tamanho a "Django Unchained".

Olhando para trás, para filmes como "Desperate Journey", parece que se fecha um círculo aqui, nomeadamente porque aquilo que eu definia como uma tendência em Walsh para os jogos de papéis, ou melhor, "as trocas de pele" atinge neste filme a sua literalidade histórica, política e psicológica máxima. "Band of Angels", para além de conter toda a potência heróica e épica de Walsh, é também um filme formalmente perfeito, com cores e cenários "intoxicantes" para o espírito e situações dramáticas - magnificamente rendilhadas - de grande intensidade, a começar pela tempestade que empurra Gable até aos lábios de Yvonne (eis o novo "anjo da história" benjaminiano!) e acabando na despedida final entre Poitier e o seu mestre - um duelo com pistolas? Não, um duelo pulverizado pelos sentimentos de dois homens igualmente bigger than life.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Along the Great Divide (1951) de Raoul Walsh


Direcção de fotografia. É preciso falar dela quando se toca nalguns dos filmes mais extraordinários de Walsh e é nela que se encontra uma estética que lhe é devida por inteiro - e que, dessa forma, afirma uma muito bem definida noção de mise en scène. "Along the Great Divide" é um western fotogramaticamente irmão de "Pursued", apesar de "valer por si" o seu preto-e-branco brumoso, rasgado por um jogo psicologizante de sombras projectadas nos corpos, sobre a paisagem, no caso, o deserto que, de novo, se ecraniza para exorcizar os demónios do protagonista e das outras personagens que o acompanham na sua travessia fatídica de um ponto A a um ponto B - viagem "desesperada", de novo, num filme de Walsh. "Pursued" é "fotografado" pelo chinês James Wong Howe, já "Along the Great Divide" é pintado a negro e cinza pela mão de Sidney Hickox. O primeiro trabalhou - e continuaria a trabalhar - com Walsh numa série de filmes, como "Uncertain Glory" e "Gentleman Jim", já o segundo contou com algumas colaborações valiosas, como "Objective, Burma!", apesar de nitidamente "Pursued" ser a sua magnum opus fotográfica ao serviço de Walsh. Acredito que a experiência de James Wong neste filme terá tido um impacto duradouro na estética walsheana, porque, quanto a mim, "Along the Great Divide" continua, porventura mais plástica que tematicamente, o que fora iniciado brilhantemente em "Pursued".

As "noites americanas" destes westerns expressionistas são densas tal como, indiferente à hora, o céu é negro, tão negro quanto a roupa de Kirk Douglas, ou os cavalos, ou a espiral que puxa - sem retirar o filme da sua linearidade classicamente walsheana - a narrativa do presente para o passado "massacrado" pelo fantasma da morte do pai. O herói, um marshall que se decide sempre pela obediência à lei - nem sempre em Walsh é assim, como sabemos -, sente-se responsável pela morte do próprio pai. Ao se aperceber disso, a personagem de Walter Brennan, acusada do homicídio do filho de um grande fazendeiro, procura de imediato mexer e remexer nessa ferida, ocupando o vazio traumático que congela ou desorienta o marshall na sua acção (não é a primeira vez que, num filme de Walsh, uma personagem se faz passar por uma outra já perecida, reconvocando ou ressuscitando a sua presença impossível). Essa acção é, na realidade, uma missão encarada com a determinação e o zelo de quem professa uma religião - uma crença - chamada "lei" ou mais concretamente levar do ponto A ao ponto B o velho Brennan, para que este tenha o julgamento que merece. Kirk Douglas terá de lidar com inúmeras hesitações ao longo do percurso, nomeadamente de um dos seus colegas que não tem a mesma visão irredutível sobre a verdade e justeza da Lei. Em certa medida, Walsh não elimina mas contraria a posição anti-sistémica que os seus heróis costumam assumir: Kirk resiste a ela, estoicamente, fazendo da luta contra a desobediência uma forma de estar na vida - uma moral, onde assentarão as bases do Estado moderno norte-americano.

"Along the Great Divide", antecipando em muito o que foram alguns dos melhores westerns dos anos 50, de Boetticher e Mann, é um drama construído sobre uma travessia no deserto, onde fantasmas do passado (o complexo de Édipo de Kirk), as miragens do presente (que a paisagem oferece em forma de ratoeira mortífera) e as convicções do futuro (um Estado de Direito nascido sobre as cinzas do faroeste mais selvagem) se projectam em simultâneo, sob a sombra espessa da dúvida ou da incerteza. A relação que Kirk vai estabelecer com a lindíssima Virginia Mayo é mais um brilhante "jogo de massacres" walshiano que, enquanto subplot, vem lançar sobre todo este percurso físico e interior a dose de erotismo e tensão sexual que tanto nos provoca os sentidos. Viagem apaixonante!

Gentleman Jim (1942) de Raoul Walsh


Se pensarmos que Raoul Walsh termina a sua biografia com a frase, tirada de Shakespeare, "Each man in his time plays many parts...". Se nos lembrarmos ainda de "I am not what I am" de Othello, e face ao que neste espaços já se escreveu, nomeadamente em análises a filmes como "Desperate Journey", "Uncertain Glory" e "You are in the Army Now", penso que já podemos passar, pelo menos com um suficiente menos, no teste que um dia deixou (quase) sem palavras a dupla de colegas de carteira Serge Daney e Louis Skorecki. O "incidente" é narrado pelo primeiro no magnífico «Travelling de Kapo» e pelo segundo, numa mesma "crónica" sobre precisamente "Desperate Journey", em Walsh et moi e Dialogues avec Daney: o professor da cadeira de literatura (!)  era Henri Agel, profundo conhecedor e amante do cinema, e o desafio que este colocou aos jovens estudantes passava por tirarem o nó a esta questão: "A relação do cinema de Walsh com o sentido de sagrado, visto sob o ângulo da tragédia shakespereana e a noção de potlatch". Henri Agel montou esta armadilha, assaz perversa, a jovens a rondar os 15 anos, ciente que não iria conseguir outra coisa que não semear o pânico na sala de aula. Acertou, mas - como sempre nestas histórias... - havia entre os comuns mortais um adolescente temerário que, de peito feito, aceitou o repto: Serge Daney. Já Skorecki, conta o próprio, ficou a perceber que tudo, mesmo tudo!, pode ser dito a propósito do cinema - não apesar dele, necessariamente, mas, lição mais útil para os dois, por causa dele!

O sentido de sagrado e o sistema do "potlatch" talvez convirjam facilmente pegando num texto de Agamben, nomeadamente a aproximação que propõe da gestão do lar (oikonomia) ao "dispositivo" sagrado (da tríade pai-filho-espírito santo) em «O que é um dispositivo?» ou do sagrado ao sacrifício em Homo sacer. Talvez aí encontremos pistas interessantes para descortinar aquela que, por exemplo, o mac-mahoniano Rabourdin diz ser uma das pedras de toque do seu cinema: o dinheiro. Ou então simplesmente podemos pegar nessa dialéctica de "dar e receber", matriz do sistema teorizado por Marcel Mauss, para encontrar a grande moral escondida no cinema de Walsh - o seu sentido de sagrado como alternância entre sacrifício (dar) e redenção (receber). Já deixei algumas pistas nesse sentido em leituras rápidas de filmes como "The Revolt of Mamie Stover" ou "Silver River". A questão da ascensão social, da obtenção da felicidade por via do dinheiro, mais do que por via do amor, é eventualmente o tema que aproxima os dois desafios de Agel, ou dito de outro modo, as tais duas frases-mundo de Shakespeare citadas acima e a dimensão re-ligiosa e moral da economia walsheana.

"Gentleman Jim" é, nesse sentido, uma espécie de filme-síntese e não me espantava que na cabeça - de cinéfilo - de Agel não fosse este o título que daria, de imediato, aos seus alunos - desconhecedores do universo de Walsh, mas talvez não desse filme!, como admite Skorecki - a chave da "charada". Nele, encontramos Jim (o "papel da vida" de Errol Flynn?), homem que "renega sem renegar" as suas origens sociais; que pertence, e não tem vergonha disso, a um meio pobre - o pai é cocheiro - mas que gosta de ostentar, na pose como no discurso, "modos" de gente rica. Uma espécie de "dandy" pobretanas, amante de facto de Shakespeare, que só na aparência renega as suas raízes, já que acalenta no coração - a cada batida - o amor ao seu pai, à sua mãe e aos dois irmãos - ambos brutos, selvagens, sem ponta de finesse! Por outro lado, Jim torna-se também naquilo que um "gentleman" nunca poderia ser, se não hoje, muito menos no século XIX: pugilista.

Estamos em 1887 e aquilo que é hoje um bailado do corpo e da mente - atlético e estratégico como poucas modalidades desportivas - era então o mero pretexto para pôr numa arena, "jogando a dinheiro", dois trogloditas de luvas calçadas prontos a amassar vigorosamente os rostos um do outro. Jim corporiza a mudança que, nesta altura, vai converter, mediante a aplicação de todas as regras que conhecemos hoje, o pugilismo em desporto. Também aqui, ou em primeiro lugar aqui, o nosso protagonista é o que não é: um pobretanas disfarçado de gentleman da alta-sociedade ("I am not what I am"), mas também um boxeur moderno a impor, no ringue, toda uma nova "maneira" de se estar no e à volta daquele jogo ("I am not what I am"). Esta mudança ou este desenraizamento também é operado para lá do ringue, com a súbita ascensão social da família, que lentamente se vai equivalendo - pelo menos na aparência - ao orgulhosamente imutável Jim. No entanto, como percebemos pela sua conclusão irónica, tudo se joga na aparência, pois, no fundo, Jim, os pais e os irmãos continuam exactamente na mesma - as mesmas confusões, as mesmas paixões, as mesmas brigas infantis.

Como já tinha observado em "Pursued", "They Drive By Night", "High Sierra" e "Manpower", a mulher volta a ser um elemento de desequilíbrio moral da acção. A personagem interpreta pela magnífica Alexis Smith, em parte antecipando os "golpes baixos" de Teresa Wright em "Pursued", vai oferecer ao nosso herói uma prenda (a tal dádiva...) com veneno lá dentro: ela, bem abonada financeiramente, viabiliza a realização do combate "dos sonhos" de Jim, alimentada não pela expectativa de uma vitória mas de uma derrota que lhe sirva de lição - para ela, desde o início, o que separa o amor a Jim do ódio a Jim é o seu ego desmesurado. Na outra obra-prima de Walsh, Teresa Wright investia num casamento fictício para "encurralar" o amor da sua vida, "até que a morte os separasse", ao passo que Alexis Smith financia o grande sonho "do momento" de Jim para poder assistir, de poltrona, à sua ingloriosa queda (= ao colapso do seu "man power"). As duas acabarão por ceder à sedução e ao sucesso, mas pouca ou nenhuma culpa é assumida em todo o percurso - o lado diabólico, imprevisível, imoral, da acção feminina não é sanado com o beijo final, nisso Walsh é, em certa medida, implacável.

Justamente considerado por Mourlet e Lourcelles como uma das obras mais perfeitas de Walsh, "Gentleman Jim" é um verdadeiro compêndio do seu cinema, mimetizando na sua própria dinâmica formal/narrativa os passos rápidos do protagonista no ringue e fazendo deste último o palco "trágico" onde, elegante e soberbo, Jim acumula o papel (algo reaccionário, diria) de gentleman plebeu com o papel (quase revolucionário, contra-diria) de boxeur bailarino. Retroactivamente, "Gentleman Jim" surge-nos como um "Raging Bull" ou um "Somebody Up There Likes Me" virado do avesso, atirado ao chão com estrondo e panache, logo no primeiro round, nas suas aspirações político-sociais. Imperdível.

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...