Se pensarmos que Raoul Walsh termina a sua biografia com a frase, tirada de Shakespeare, "Each man in his time plays many parts...". Se nos lembrarmos ainda de "I am not what I am" de
Othello, e face ao que neste espaços já se escreveu, nomeadamente em análises a filmes como "Desperate Journey", "Uncertain Glory" e "You are in the Army Now", penso que já podemos passar, pelo menos com um suficiente menos, no teste que um dia deixou (quase) sem palavras a dupla de colegas de carteira Serge Daney e Louis Skorecki. O "incidente" é narrado pelo primeiro no magnífico «Travelling de Kapo» e pelo segundo, numa mesma "crónica" sobre precisamente "Desperate Journey", em
Walsh et moi e
Dialogues avec Daney: o professor da cadeira de literatura (!) era Henri Agel, profundo conhecedor e amante do cinema, e o desafio que este colocou aos jovens estudantes passava por tirarem o nó a esta questão: "A relação do cinema de Walsh com o sentido de sagrado, visto sob o ângulo da tragédia shakespereana e a noção de potlatch". Henri Agel montou esta armadilha, assaz perversa, a jovens a rondar os 15 anos, ciente que não iria conseguir outra coisa que não semear o pânico na sala de aula. Acertou, mas - como sempre nestas histórias... - havia entre os comuns mortais um adolescente temerário que, de peito feito, aceitou o repto: Serge Daney. Já Skorecki, conta o próprio, ficou a perceber que tudo, mesmo tudo!, pode ser dito a propósito do cinema - não
apesar dele, necessariamente, mas, lição mais útil para os dois,
por causa dele!
O sentido de sagrado e o sistema do "potlatch" talvez convirjam facilmente pegando num texto de Agamben, nomeadamente a aproximação que propõe da gestão do lar (
oikonomia) ao "dispositivo" sagrado (da tríade pai-filho-espírito santo) em «O que é um dispositivo?» ou do sagrado ao sacrifício em
Homo sacer. Talvez aí encontremos pistas interessantes para descortinar aquela que, por exemplo, o mac-mahoniano Rabourdin diz ser uma das pedras de toque do seu cinema: o dinheiro. Ou então simplesmente podemos pegar nessa dialéctica de "dar e receber", matriz do sistema teorizado por Marcel Mauss, para encontrar a grande moral escondida no cinema de Walsh - o seu sentido de sagrado como alternância entre sacrifício (dar) e redenção (receber). Já deixei algumas pistas nesse sentido em leituras rápidas de filmes como "The Revolt of Mamie Stover" ou "Silver River". A questão da ascensão social, da obtenção da felicidade por via do dinheiro, mais do que por via do amor, é eventualmente o tema que aproxima os dois desafios de Agel, ou dito de outro modo, as tais duas frases-mundo de Shakespeare citadas acima e a dimensão re-ligiosa e moral da economia walsheana.
"Gentleman Jim" é, nesse sentido, uma espécie de filme-síntese e não me espantava que na cabeça - de cinéfilo - de Agel não fosse este o título que daria, de imediato, aos seus alunos - desconhecedores do universo de Walsh, mas talvez não desse filme!, como admite Skorecki - a chave da "charada". Nele, encontramos Jim (o "papel da vida" de Errol Flynn?), homem que "renega sem renegar" as suas origens sociais; que pertence, e não tem vergonha disso, a um meio pobre - o pai é cocheiro - mas que gosta de ostentar, na pose como no discurso, "modos" de gente rica. Uma espécie de "dandy" pobretanas, amante
de facto de Shakespeare, que só na aparência renega as suas raízes, já que acalenta no coração - a cada batida - o amor ao seu pai, à sua mãe e aos dois irmãos - ambos brutos, selvagens, sem ponta de finesse! Por outro lado, Jim torna-se também naquilo que um "gentleman" nunca poderia ser, se não hoje, muito menos no século XIX: pugilista.
Estamos em 1887 e aquilo que é hoje um bailado do corpo e da mente - atlético e estratégico como poucas modalidades desportivas - era então o mero pretexto para pôr numa arena, "jogando a dinheiro", dois trogloditas de luvas calçadas prontos a amassar vigorosamente os rostos um do outro. Jim corporiza a mudança que, nesta altura, vai converter, mediante a aplicação de todas as regras que conhecemos hoje, o pugilismo em desporto. Também aqui, ou em primeiro lugar aqui, o nosso protagonista é o que não é: um pobretanas disfarçado de
gentleman da alta-sociedade ("I am not what I am"), mas também um
boxeur moderno a impor, no ringue, toda uma nova "maneira" de se estar no e à volta daquele jogo ("I am not what I am"). Esta mudança ou este desenraizamento também é operado para lá do ringue, com a súbita ascensão social da família, que lentamente se vai equivalendo - pelo menos na aparência - ao orgulhosamente imutável Jim. No entanto, como percebemos pela sua conclusão irónica, tudo se joga na aparência, pois, no fundo, Jim, os pais e os irmãos continuam exactamente na mesma - as mesmas confusões, as mesmas paixões, as mesmas brigas infantis.
Como já tinha observado em "Pursued", "They Drive By Night", "High Sierra" e "Manpower", a mulher volta a ser um elemento de desequilíbrio moral da acção. A personagem interpreta pela magnífica Alexis Smith, em parte antecipando os "golpes baixos" de Teresa Wright em "Pursued", vai oferecer ao nosso herói uma prenda (a tal dádiva...) com veneno lá dentro: ela, bem abonada financeiramente, viabiliza a realização do combate "dos sonhos" de Jim, alimentada não pela expectativa de uma vitória mas de uma derrota que lhe sirva de lição - para ela, desde o início, o que separa o amor a Jim do ódio a Jim é o seu ego desmesurado. Na outra obra-prima de Walsh, Teresa Wright investia num casamento fictício para "encurralar" o amor da sua vida, "até que a morte os separasse", ao passo que Alexis Smith financia o grande sonho "do momento" de Jim para poder assistir, de poltrona, à sua ingloriosa queda (= ao colapso do seu "man power"). As duas acabarão por ceder à sedução e ao sucesso, mas pouca ou nenhuma culpa é assumida em todo o percurso - o lado diabólico, imprevisível, imoral, da acção feminina não é sanado com o beijo final, nisso Walsh é, em certa medida, implacável.
Justamente considerado por Mourlet e Lourcelles como uma das obras mais perfeitas de Walsh, "Gentleman Jim" é um verdadeiro compêndio do seu cinema, mimetizando na sua própria dinâmica formal/narrativa os passos rápidos do protagonista no ringue e fazendo deste último o palco "trágico" onde, elegante e soberbo, Jim acumula o papel (algo reaccionário, diria) de
gentleman plebeu
com o papel (quase revolucionário, contra-diria) de
boxeur bailarino. Retroactivamente, "Gentleman Jim" surge-nos como um "Raging Bull" ou um "Somebody Up There Likes Me" virado do avesso, atirado ao chão com estrondo e
panache, logo no primeiro
round, nas suas aspirações político-sociais. Imperdível.