quarta-feira, 30 de maio de 2012

O trabalho animal mata e a morte redime o animal

"Accattone" (1961) de Pier Paolo Pasolini

"Au hasard Balthazar" (1966) de Robert Bresson


(Vittorio "Accattone" Cataldi diz que o trabalho é para os animais. Por um arranjo do destino, acaba por tentar a vida "normal". O facto de deixar de ser chamado, como gosta, pelo nome Accattone e passar a ser referido como Vittorio, a sequência do funeral sonhado do primeiro, o chulo, o homem da boa vida, da "vida fácil" mas cada vez mais miserável, são símbolos de que, não resistindo ao trabalho animal, só a morte redimirá o "caminho de perdição" que foi a sua vida. Com a cabeça rachada, às portas da morte, Accattone diz "estou muito bem". Se pudesse falar, não sei se Balthazar não teria dito o mesmo, antes de cair morto na relva. E não interessa que Balthazar seja inocente e Accattone um escroque. O desejo pela morte torna-os iguais.)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sim, também queremos jogar! Mas... quem nos treina a devolução?*

Jacques Tati, "Les vacances de Mr. Hulot" (1953)

During Sunday brunch my mother would tell my grandmother the film she and I had seen that week. I thought she told it sublimely. The pleasure of listening to her was as great as seeing the film for a second time. (...) 
Cinema isn't a technique of displaying images, it's an art of showing, and showing is a gesture, a gesture that demands looking and watching. Without this gesture there is just imagery. But if something is shown, someone must acknowledge its receipt. (...) It's very tennis-like, this idea that it would be scandalous not to return a serve. I was never a great server, but I believe that, like Jimmy Connors, I was good at returning.

Serge Daney, Postcards from the Cinema (Persévérance, 1994), Berg, 2007, pp. 65-66

O cinema na RTP2: estrada para nenhures (sem destino)


Para onde nos leva a estrada de "Road to Nowhere" ("Sem Destino", em português)? Que estrada é essa? Que "nowhere" é esse que não, talvez, o "now here" da produção de um filme dentro de outro? O filme de Monte Hellman é um enigma sobre o cinema, que aponta num sentido - indefinido - que parece levar a lado nenhum para lá do que as suas imagens e encenações/associações "en abîme" nos oferecem. Mas e se esta "road" nos levasse a 1959, ao filme que terá lançado, oficialmente, as bases da Nouvelle Vague? A RTP2 diz-nos que o caminho de Hellman tem como destino "Os 400 Golpes", pelo menos, deixa isso implícito no seu double bill agendado para a "Sessão Dupla" do próximo sábado, dia 2 de Junho.

A surpresa não é grande, porque nas suas noites de cinema têm-se celebrado os mais inusitados casamentos cinematográficos sem que se preste a mínima explicação - bem, de facto, o amor verdadeiro é incomunicável e, se calhar, estes casamentos são arrebatadores acessos de paixão que confirmam o popular adágio "os opostos atraem-se". O que muda desta vez? Bem, talvez, o facto de o título do primeiro filme parecer comentar, com grande astúcia, a estrada que esta RTP2 tem percorrido, uma estrada para lado nenhum, a começar pela programação de cinema, que surge aqui, transparente, na sua política de ataque a tudo o que implica critério, reflexão e pedagogia.

Se não soubéssemos já que o programador "força" casamentos entre filmes por motivos puramente comerciais ou por expressa falta de cultura cinéfila, socorrendo-se do mais automático método randômico que há no mercado para "lançar ao ar" (antes de "pôr no ar") as suas sessões de cinema..., diríamos que este double bill, "Road to Nowhere" e "Os 400 Golpes", tinha o potencial para provocar o lançamento de, pelo menos, dois livros com algumas das mais espantosas revelações sobre a história do cinema e um punhado de reflexões inovadoras sobre a ontologia da imagem. O problema é que, nesta altura, já sabemos o que sabemos.

A confiança em quem programa é nula. E, por isso, este double bill não passa de um disparate completo a somar-se a tantos outros. Contudo, a autoria é dos mesmos de sempre, de uma pequena elite, que trabalha sem regulação, indiferente à crítica, ou melhor, que inclusivamente faz carreira a desprezar a opinião de quem dela não faz parte, de quem "não vê" o que eles "querem ver": um canal de serviço público naquele lugar que separa a RTP1 da SIC. Um lugar de poucos (para poucos) e, enfim, uma estação que não quer ir muito mais longe do que o lado nenhum onde que está. Elitismo no, já nu e pelo vazio.

sábado, 19 de maio de 2012

Por uma contra-crítica

Still de "Kapò" (1960) de Gillo Pontecorvo

Admito que já tinha tirado a ideia deste post de um texto do Rancière ("O Espectador Emancipado"), mas leio agora outra obra sua, "O Mestre Ignorante", e apanho exactamente aquilo em que acredito, nomeadamente, no âmbito da crítica de cinema. "A inteligência não é potência de compreensão, que se encarregaria ela própria de comparar o seu saber em relação aos seus objectos. A inteligência é potência de se fazer compreender, que passa pela verificação do outro".

Penso que este é o papel essencial da crítica: não o de nos dizer o que devemos ou não ver, o que ela compreende ou não no embate com a obra, o que ela considera boa ou má obra, mas o de nos iluminar a capacidade que temos de nos fazermos compreender, isto é, iluminar a capacidade que temos de articular as formas da nossa incompreensão.  É que nunca se compreende o cinema, ele é sempre indiscutivelmente incompreensível - João Salaviza transmitia um pouco isto recentemente, em entrevista muito interessante que deu no programa Bairro Alto. Por tudo isto é que é perfeitamente possível haver uma instrutiva conversa de cinema sobre um filme que não gostámos ou, no limite, que nem vimos... (Daney fez isso em "Travelling de Kapo", numa espécie de diálogo com um texto de Rivette.) E daqui até à ideia de que todos os filmes são bons, ou inocentes, como diz Mekas; de que todo o cinema está em todos os filmes, "tudo em tudo", como diz Rancière, vai necessariamente um passo.

Mas esse passo pouca crítica o tem querido dar, não por ignorância, mas talvez, bem pelo contrário, por excesso de "mestria", tique de uma função tornada métier que dita coisas definitivas (os "thumbs up" ou os "thumbs down" ou as manifestações de "políticas de gosto" elitistas*) mas que produz pouca ou nenhuma fantasia verdadeiramente livre (já ninguém viaja, linhas atrás de linhas, por planos imaginados, na sala escura, que estavam, ou não, no filme... lembram-se dos "acrescentos" deliciosos nas folhas de Bénard da Costa? Dir-se-iam plenos desta ignorância fértil, magistral, mas não "mestra", que falta a demasiados críticos e que é desprezada por muita gente que faz cinema).

De qualquer modo, não é coisa pouca esta função da, perdão, esta função que é a crítica de cinema: nas suas mãos parece estar "o mote" para a emancipação do pensamento fílmico, na presença ou na ausência do objecto: os filmes, que, vistos ou não vistos, bem vistos ou mal vistos, são sempre os primeiros a ganhar com tudo isto.

* - Lamento desiludi-lo, mas não precisa de Godard para pensar o cinema. Não precisa de Godard tanto quanto não precisa de Michael Bay... Um pode-me ajudar a pensar mais do que outro, mas o que interessa é a minha vontade de o ver, ou melhor, o exercício de liberdade intrínseco à escolha de o ver. Pergunto: será que nesse exercício poderei, como que por acidente, des-cobrir os "ensinamentos" de um num filme de outro? Caro crítico e, já agora, caro académico, tente responder seriamente a esta questão.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Newsletter #15: Dovzhenko


Alexander Dovzhenko é o rosto (revolucionário) de um mês de Junho que se prenuncia quente. Cineasta pouco alinhado com a nomenklatura vigente, isto é, pouco conformado com a tutela russa, Dovzhenko é um dos mais notáveis cineastas soviéticos do seu tempo, alguém que tem sido objecto de uma entusiástica redescoberta ao longo dos últimos anos. Notável e extremamente influente, se pensarmos que Larisa Shepitko e Serguei Paradjanov o tiveram como principal mentor.

Em Junho, com a temperatura bem alta, recomendamos que esteja atento, por exemplo, a lançamentos de filmes de Paul Féjos, Carlos Saura, Claude Chabrol, Nicholas Ray, Alfred Hitchcock e Ti West. Ou que aproveite pechinchas de obras magníficas de Charles Burnett, Mikhail Kalatozov, Serguei Paradjanov, Eugène Green, Johnnie To, entre muitos outros nomes.

Para ler, entre muita coisa, damos o devido destaque às recentes edições da ymago, nomeadamente, de um conhecido livro de Georges Didi-Huberman. Também não deixaremos de passar os olhos por livros de Raymond Bellour, um (finalmente) lançado e o outro a preço convidativo, ou pelas muito promissoras antologias de análises fílmicas da autoria de Susan Sontag e, noutro livro, de Gyorgy Lukács. Sublinharemos ainda, em lançamentos recentes, a obra "Ermanno Olmi. Uma excêntrica normalidade", editado e, numa pequena parcela, também redigido pelos organizadores desta publicação - vá, um pouco de auto-promoção nunca fez mal a ninguém!

Renovo, nestas linhas, o apelo que já dirigi aos nossos subscritores: por favor, responda a este inquérito de opinião, onde a reserva do seu nome é total. Será de resposta rápida e particularmente útil para nós, que queremos melhorar, isto é, caminhar no sentido do que quer o leitor.

Aviso também que duas rubricas da newsletter, a Loja do Mês e o Sugestões de..., passam a ser rotativas. Este mês, dedicamos o nosso tempo a mais uma visita livreira. Também vamos reduzir, logo, melhor sistematizar, o espaço dedicado ao Cinema em Casa. Um pouco à imagem do que já acontece nos livros, as subsecções Pechinchas e Raridades serão transformadas numa: Pechinchas/Descobertas.

Estas mudanças, em parte inspiradas por algumas das respostas que os nossos subscritores deram em inquérito, visam concentrar e filtrar mais a informação desta nossa publicação. Pensamos que os nossos subscritores concordarão que, no caso, definitivamente, less is more.

A frase feita não resulta é para o número de subscrições, em que, definitivamente, more is more. A propósito, já subscreveu a newsletter do CINEdrio?

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ERRATA Newsletter #14

Por lapso, pusemos a referência à mega promoção em cinema italiano que a FNAC portuguesa tem estado a fazer na secção de Leia mais < Lançamentos Recentes, quando deveria estar, obviamente, na secção das pechinchas.

As caixas espanholas, Blu-Ray, de Bergman e Woody Allen não deviam também estar nos lançamentos futuros, mas já em lançamentos recentes.

Por estes lapsos, apresentamos as nossas desculpas.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Balanço IndieLisboa 2012 (II): os melhores filmes do CINEdrio e da blogosfera cinéfila


Antes de mais, e pondo numa média a qualidade cinematográfica deste IndieLisboa 2012, devo dizer que faço um balanço positivo do festival. (Olhando para aqui, constato que a classificação geral que atribuiria, estilo Professor Marcelo, a esta edição do Indie, mesmo incluindo as reposições, seria 2,5 em 5.)

Apesar de alguns filmes estarem claramente abaixo da média, como o aberrante "Dark Horse" (que, sabe-se lá por quê, teve honras de abertura do festival!) ou o estereotipado "The Color Wheel" ou ainda o desnorteado "Em Segunda Mão", apesar das desilusões que foram "Alpeis" e "Rua Aperana 52", reconciliei-me com Werner Herzog, o documentarista, após a decepção do seu fracassado "The Cave of Forgotten Dreams", e com Ursula Meier, que não me tinha convencido por aí além com "Home" (mas que também acabou por não me extasiar com o seu último, "L'enfant d'en haut"), bem como confirmei o valor de João Salaviza ou, com uma ponta de decepção, de Jeff Nichols. Por outro lado, Ferrara voltou à forma de "Mary" - outro filme IndieLisboa -, Markus Schleinzer enregelou-nos com "Michael" e Radu Jude deixou-me quase sem palavras por causa de "Everybody in Our Family".

Nas reposições, Rainer Werner Fassbinder, cineasta com o qual não tenho uma relação pacífica, trouxe cinema ao cinema, com o bom "Cuidado com Essa Puta Sagrada", e Thom Andersen trouxe uma lição de cinema ao cinema, com "Los Angeles Plays Itself". Foram dois momentos interessantes no festival.

Por tudo isto, escolhi, para Top 5 do CINEdrio, os seguintes filmes:

1. "Everybody in Our Family" de Radu Jude
2. "4:44 Last Day on Earth" de Abel Ferrara
3. "Rafa" de João Salaviza
4. "Michael" de Markus Schleinzer
5. "Tous à table" de Ursula Meier

Para enriquecer este balanço, convidei os bloggers Carlos Natálio (Ordet.), Miguel Domingues (In a Lonely Place), Ricardo Lisboa (Breath Away) e João Lameira (Numa paragem do 28), os mesmos que participaram na célebre copa A Angústia do Blogger Cinéfilo..., para tornarem públicas as suas 5 escolhas e contribuírem para a formação de um Top 5 colectivo, representativo da blogosfera cinéfila que acompanhou bem de perto esta edição do IndieLisboa.

Deste contributo, que agradeço, resulta a seguinte lista Top 5 da blogosfera cinéfila:

1. "Everybody in Our Family" de Radu Jude
2. "4:44 Last Day on Earth" de Abel Ferrara
3. "Vivan Las Antipodas!" de Victor Kossakovsky
4. "Michael" de Markus Schleinzer
5. "De jueves a domingo" de Dominga Sotomayor Castillo ex aequo com "L'estate di Giacomo" de Alessandro Comodin

Assim encerro a cobertura do CINEdrio ao IndieLisboa 2012. Bons filmes!

Balanço IndieLisboa 2012 (I): organização


Pelo que pude assistir, esta edição do Indie teve um bom volume de público e, que eu saiba, as sessões terão ocorrido, na sua esmagadora maioria, como estava calendarizado.

Sente-se que este é um festival com uma dinâmica organizativa bastante bem montada, envolvendo várias pessoas que, invisivelmente, vão tornando o IndieLisboa num festival de sucesso há já 10 anos.

Fora os elogios mais do que merecidos a todos os que fizeram parte deste grande evento, deixo apenas uma ou outra crítica, isto é, coisas a afinar para futuras (e muito bem-vindas!) edições.

Primeiro, nesta edição, deparei-me com alguns cancelamentos de exibições, nomeadamente, de dois filmes que tinha planeado ver: "A Simple Life" de Ann Hui e "36 témoins" de Lucas Belvaux. Sei que outros filmes foram cancelados por razões, pelo que me apercebi, técnicas e, portanto, lá vem a frase da praxe, "alheias à organização". Apesar de perceber que deva ser complicadíssimo gerir e aferir a qualidade de todas as projecções - são centenas! - não quero perder esta oportunidade para deixar uma nota de lamento por este facto. A verdade é que, mesmo que, pelo menos, aqueles dois filmes em particular tenham sido reprogramados para outros dias, por razões de gestão do meu próprio calendário, não pude estar presente. Com estes cancelamentos - alguns anunciados no próprio dia da exibição -, tive de recorrer a planos B, antecipar certos visionamentos que já tinha nos meus planos ou ver filmes que tinha posto de lado. Acidentalmente, acabei por descobrir filmes interessantes como "Bestiário", mas, de qualquer modo, Ann Hui e Belvaux ficaram para outras núpcias.

Segundo, constatei que a acreditação de imprensa, ao contrário do que pensava, tem uma limitação incómoda: só posso levantar bilhetes até ao número de lugares disponíveis, não de toda a gente, mas especificamente ao número de lugares disponíveis que estão reservados à imprensa. Ou seja, nalguns casos vi-me forçado a comprar bilhete para assistir a filmes numa sala longe de estar cheia ou que apenas estaria cheia de acreditados da imprensa... Penso que, no futuro, seria melhor - para o bem da cobertura que fazemos do evento - não limitarem o número de bilhetes para jornalistas ou bloggers, isto é, só limitarem os bilhetes de imprensa ao número de lugares disponíveis. Ponto.

Terceiro, porque o CINEdrio acompanhou todas as sessões comemorativas da Viennale, menos a de "Daisies", tenho duas críticas a fazer. Se na segunda projecção desta secção, o público mereceu umas palavras prévias à exibição do filme (no caso, "Cuidado com Essa Puta Sagrada"), palavras aliás que apreciei bastante vindas de um dos programadores da Viennale, nas sessões seguintes não houve qualquer tipo de contextualização da sessão. Aliás, estranho esta situação, já que, na sessão de "The Last of England", me cruzei com o dito programador - ou parecia ele... - minutos antes do filme ter sido projectado. Parece-me que a organização do Indie falhou aqui.

Por outro lado, constatei que os trailers de um minuto (feitos para a Viennale) que eram mostrados antes de cada filme não batiam certo com o que estava programado no catálogo do festival, de tal modo que na sessão final (de Rithy Panh) vi pela segunda vez os mini-trailers de realizadores como Varda, Carax e Ken Jacobs. Ou seja, para além dos trailers não corresponderem com o anunciado, alguns foram repetidos, sem que houvesse, que me tenha apercebido, um aviso ou sinal de qualquer contratempo.

Quarto, uma ponderação que gostava de endereçar à organização: eu sou um fã absolutíssimo do cinema S. Jorge, aliás, penso que a primeira edição do Indie foi maravilhosa também por ter arrancado na sua sala grande, contudo, actualmente, estando o quartel-general do Indie sediado na Culturgest, pedia que reponderassem o mapa das salas e procurassem concentrar o Indie numa zona da cidade (Culturgest, Londres e Fórum Lisboa ou King seria a solução possível, aliás, não totalmente inédita). O risco de o S. Jorge cair, de novo, numa situação de abandono felizmente já não é tão grande, pelo que peço à organização que agilize esta situação, pensando exclusivamente no conforto dos seus seguidores. Só razões burocrático-administrativas ou até sentimentais podem, aliás, justificar esta dispersão do Indie pela cidade - para quem saltita de sessão em sessão, acredite, caro leitor, que não é fácil (nem barato)...

Posto isto, quero deixar uma palavra de grande agradecimento ao IndieLisboa, pela oportunidade que me deu para ficar a par de algum do melhor cinema independente - conceito difícil, que se estava a desfiar em edições anteriores, mas que nesta se reconsolidou - e transmitir as minhas impressões (em primeira mão) aos prezados leitores do CINEdrio. Um bem-haja pelo bom trabalho!

Take Shelter (2011) de Jeff Nichols


Não posso esconder aqui que as expectativas eram altas, altíssimas. "Take Shelter" tinha tudo para ser aquela segunda obra que faz voar um cineasta que logo na sua primeira longa, "Shotgun Stories", revelava "mão" sobre os tempos fílmicos, uma apurada cadência dramática e uma certa visão cosmológica sobre os "laços de sangue". Faço esta introdução e, o leitor já sabe, antecipo um "mas" - onde cairá esse "mas" aqui? Cairá não já, porque preciso de dizer que esta segunda obra de Jeff Nichols - a terceira, "Mud", será mostrada em competição no festival de Cannes que se avizinha - fez-me divagar, uma boa divagação, por sinal: pensei em Shyamalan e na forma como este se livrou da "marca" Spielberg nos seus dramas familiares cósmicos/metafísicos, sobre a finitude da fé contra a infinitude do universo, sobre o homem na sua situação e Deus acima ou abaixo de todos os homens e de todas as situações. Jeff Nichols avança por territórios já desbravados, e bem desbravados, aliás, em filmes como "Signs" ou (menos bem...) "The Happening".

No entanto, Nichols sabe também ele demarcar o seu território e rapidamente se desenvencilhar de qualquer "marca" Shyamalan, pois, por muito que esta seja única e maravilhosa, dificilmente se "delega" ou endossa a outrem - o pastiche shyamaliano é uma fórmula demasiado complexa para isso, parece-me. Enfim, Nichols se calhar nem (re)viu os filmes de Shyamalan para conceber este seu drama, que, de um modo surpreendente, consegue fazer uma curiosa ponte com o seu filme anterior. As imagens da caçadeira ou do cão são símbolos fortíssimos nos respectivos filmes, se a primeira indica uma arma de defesa ou de ataque, o segundo sinaliza "a tempestade" ou, então, quase que se confunde com a origem da mesma.

Tanto "Shotgun Stories" como "Take Shelter" são filmes sobre um homem a tentar demarcar um território, um espaço que tanto é físico (a casa onde Shannon vive com os irmãos no primeiro, ou com a família no segundo) como mental (o "espaço afectivo" dos irmãos presentes versus o dos irmãos ausentes ou a realidade produzida além-sonho e a tempestade alucinatório que atinge o protagonista). Há, portanto, em ambos, uma tensão, condicionada por um muito clássico deadline, que se traduzirá na resposta à questão: até onde vai Shannon, o calado e intempestivo Shannon, movido pela sua incontrolável e imparável obsessão? Conseguirá ele "isolá-la" do mundo? Será ele colhido pela "tempestade" ou produtor da "tempestade"?

A presença de Shannon em "Mud" leva-me a pensar que Jeff Nichols prepara um tríptico, mas até lá temos de lidar com este díptico em forma de drama tempestuoso e obsessivo centrado num homem e a linha imaginária que este traça - nesta espécie de monólogo interior constante, de si para si - para separar o seu domínio do domínio dos outros. Preparem-se, portanto, para questionar também os vossos próprios "limites" nos dois filmes e, neste particular, não se deixem seduzir demasiado pela cadência rumorejante de tudo ou pelos pesadelos delirantes de "Take Shelter", porque o que activa aqui o modo defensivo é a loucura, ao passo que em "Shotgun Stories" é a ira - dois sentimentos, dois "estados de alma" que andam pacificamente de mãos dadas, não é assim?

Então onde cai o "mas", que tarda, neste texto? Talvez no facto de Nichols não se conseguir conter tanto quanto deveria na dissecação de uma cabeça perturbada e procurar, perto do fim, encontrar uma razão mais ou menos esotérica para todas aquelas visões. Não estou aqui a dizer que ele nos dá "a resposta" - isso seria demasiado básico -, mas que, no limite, não fugisse ao rumo daquele que já é o seu cinema - sente-se que há um cinema plenamente constituído e só lá vão dois filmes, algo muito meritório. E que rumo é esse? O rumo down to earth, calado, mas inquieto, contudo, sem "grandes perguntas" vindas dos céus, mas apenas interrogações suscitadas sempre com os pés assentes na terra, a partir de onde o céu e as nuvens só servem, por norma, para confirmar ou desmentir a meteorologia.

"Take Shelter" naufraga um pouco perto do fim nos delírios do protagonista, ou melhor, cai na tentação de "exteriorizar" esses delírios, passando estes a suscitar uma grande interrogação que se confunde (e quebra) com o tecido frágil do filme - mata de vez o rumor instável e lança uma tempestade "cabeça fora" de dimensões bíblicas. Portanto, prefiro escrever aqui que "Take Shelter" é um filme de "mas" adiado até que se torne mais claro, e se defina melhor, o caminho deste talentoso jovem realizador. Até lá, passamos bem na companhia destas boas interrogações.

("Take Shelter" ante-estrou-se hoje no IndieLisboa. Será exibido comercialmente a partir do dia 17 de Maio. A não perder.)

domingo, 6 de maio de 2012

La Terre des âmes errantes (2000) de Rithy Panh


Rithy Panh é um dos cineastas mais "quentes" da actualidade. Cambojano que fugiu do terrível regime de Pol Pot para se instalar em Paris, onde estudou cinema, Panh tem-se notabilizado por mexer na ferida - ainda aberta -  da ditadura dos Khmer Rouge e da guerra civil que se lhe seguiu; tem levado os seus filmes aos maiores festivais europeus como quem carrega todo um país às costas, um país que sofre ainda os efeitos da mais absoluta destruição humana. Este filme, com o sugestivo título "A terra das almas errantes", mostra, sem histerismos, mas com dureza, a ironia trágica de um país que força a entrada na modernidade, instalando cabos Alcatel, para fazer chegar as notícias do mundo e a Internet a todo o lado, quando a maioria dos seus trabalhadores quase não tem dinheiro para comer, alguns não têm casa, muito menos electricidade ou, ainda, instrução para mexer num computador.

Panh é extremamente irónico quando põe um dos homens que escava o buraco por onde o fio de fibra irá passar, "iluminando" todo um país, a explicar a outro, que se diz vítima das lavagens cerebrais do antigo regime, para que servem aqueles fios, qual o seu significado. O homem descreve singelamente o fio que dá a imagem e o fio que dá o som, e os outros..., usando metáforas do corpo: a boca, os lábios, o bigode, a pele, etc. Mas este homem ressalva sempre: "Sou ignorante. Não sei nada, por isso, se estiver errado, não me culpes..." É arrepiante assistirmos à pobreza mais extrema - e Panh mostra-a sem filtros - de mãos dadas com esta estranha "lucidez na ignorância". "La terre des âmes errantes", o meu primeiro Rithy Panh, não será a obra mais relevante da sua já bastante significativa filmografia, mas serve perfeitamente de cartão de visita à realidade social, económica e política do seu país, aquele que é o objecto número 1 da sua inquisitiva câmara documental.

(Este filme foi exibido hoje no IndieLisboa, no quadro da celebração dos 50 anos da Viennale. Poderá visioná-lo, junto com a sua obra mais aclamada, "S-21, la machine de mort Khèmere rouge", numa promissora caixa, apenas legendada em francês, editada pela Montparnasse, a bom preço aqui.)

Vencedores IndieLisboa 2012


O filme chileno "De jueves a domingo" de Dominga Sotomayor foi o vencedor da competição internacional. "Jesus por um Dia" de Helena Inverno e Verónica Castro recebeu o prémio de melhor filme português.

Podem consultar o resto do palmarés aqui.

Adeus Fernando Lopes e olá José Vieira Mendes ou o parasitismo mediático


Peço desculpa, mas vou ter de voltar a insistir nisto.

Numa altura em que se presta a homenagem, mais do que devida, a Fernando Lopes, não só como realizador maior do cinema novo português, como crítico de excepção (da Cinéfilo, revista de que tanto se orgulhava), mas também como co-fundador da RTP2 e programador que pensou e deu a pensar cinema no mítico Cineclube, numa altura em que faz sentido retirarmos as devidas lições desta vida exemplar, que ainda nos está tão próxima, ligo a RTPMemória e vejo, confesso que com apreensão, mais uma Noite de Cinema apresentada por José Vieira Mendes.

O sorriso de plástico e o fraco conteúdo de Vieira Mendes continuam lá, o que muda (porque nem sempre tem sido assim... como já testemunhei, aliás) é, desde logo, o facto de ter naquele estúdio virtual reles alguém com um discurso desempoeirado e empático: Filipe Melo, músico jazz e uma das cabeças por trás do primeiro filme zombie português, "I'll See You in My Dreams". José Vieira Mendes faz a apresentação do convidado, ao mesmo tempo que o põe desconfortável com uma enxurrada de elogios genéricos e salamaleques artificias, procura promover o seu trabalho na música, no cinema e, mais recentemente, na banda desenhada e depois reserva um minuto para a apresentação propriamente dita do filme.

Se antes criticávamos o tom e a escolha (deslocada) dos convidados (alguns, caídos de pára-quedas ali, nitidamente!) e não tanto os filmes que eram mostrados, uma vez que na RTPMemória havia uma predilecção por grandes clássicos do cinema (de Hawks, Powell, Ford, etc.), agora não pudemos deixar de nos engasgar mal ouvimos o título do filme que, no fim de contas, propiciara aquela reunião: "Academia de Polícias 3". Filipe Melo, simpaticamente, procura falar dos anos 80, do impacto que teve esta série cómica no final da sua infância... não deixa, contudo, escapar a ideia de que, talvez, estas comédias estejam hoje muito datadas.

Eu pergunto: em que consiste esta gestão programática que a RTPMemória está a fazer da memória cinéfila? "Academia de Polícias" é uma obra que mereça revisitações sofisticadas, contextualizações com 10 minutos? Não, aliás, de tal modo que só deram 1 ou 2 minutos a Filipe Melo para falar desse filme. A verdadeira motivação desta "apresentação" não tem nada a ver com a divulgação ou a pedagogia do olhar, aquela por que se bateu Fernando Lopes numa vida; não, os dois grandes objectivos destas falsas contextualizações cinematográficas são: a promoção do trabalho do convidado - mas então por que está este espaço disfarçado de grande "átrio" da cinefilia e da cinefilização? - e, antes de tudo, a projecção da imagem do entrevistador/programador - José Vieira Mendes tem amigos e, como se vê na narcísica troca de elogios que protagoniza sempre, tem feito muito pelo cinema em Portugal...

É terrível que o cinema na televisão pública sirva este puro parasitismo mediático, que lhe é completamente alheio. Penso que, e agora retomando a minha homenagem a Fernando Lopes, é tempo de se começar a dignificar o cinema no espaço público, é tempo de levarmos a bom porto a batalha por uma melhor e mais séria pedagogia do olhar em Portugal. É tempo de sermos mais exigentes e de reivindicarmos - porque pagamos por ela - uma televisão pública de serviço público. Não é tempo para auto-promoções à custa do cinema ou apropriações pífias e parasitárias da memória cinéfila.

sábado, 5 de maio de 2012

Los Angeles Plays Itself (2003) de Thom Andersen


Não é o filme ensaístico que podemos esperar, se estivermos a pensar em nomes como Godard ("Histoire(s) du cinéma") ou Chris Marker ("Sans soleil"). Mais do que um filme ensaístico este é, muito literalmente, um filme-ensaio, isto é, obra baseada num texto, moldada por um rigor que adjectivaria de académico, porquanto tem na base a defesa de uma tese. Que tese? Segundo Thom Andersen, a cidade de Los Angeles tem sido objecto de inúmeras traições ou apropriações abusivas na história do cinema americano. Existe como que um desfasamento - nada inocente, pelo contrário, nitidamente ideológico - entre o que é a cidade e o que Hollywood diz que esta é.

Durante perto de 3 horas, Andersen percorre um século de filmes, rodados em L.A. ou alusivos à "cidade dos sonhos": de "Public Enemy" (passado em Chicago, mas filmado em Los Angeles) a "Blade Runner", passando por "Escape From L.A." ou "To Live and Die in L.A.", desenterrando obras esquecidas (magníficas) de Burnett e MacKenzie (um "pioneiro", como diz e bem, reportando-se ao belo "The Exiles"). Andersen faz uma montagem "arqueológica" de imagens, que se articulam seguindo o conteúdo do texto, que é lido em off. Este dispositivo, pouco imaginativo, aguenta a duração do filme, sobretudo, porque, precisamente, este é um ensaio inteligente e enriquecido por várias pequenas observações preciosas.

O trabalho de investigação de Andersen será tão exaustivo que, se juntarmos a ele o paradigmaticamente fiel à cidade "Los", do seu amigo James Benning, parece que fica pouco espaço para nos surpreendermos muito com, por exemplo, um livro como este (ainda não lançado), mesmo que escrito por um interessante estudioso do papel das cidades na história do cinema. Esgotado um tema, defendida a tese, Andersen dá-nos, assim, uma grande lição sobre o poder (de)formador das imagens. Seria interessante pensarmos melhor este modelo analítico e expositivo, o modelo do filme-ensaio tout court, na (nossa) academia.

(Este filme foi mostrado hoje no IndieLisboa, na secção de homenagem aos 50 anos da Viennale. Seria importante editar em DVD/Blu-ray esta obra pedagogicamente relevante.)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Stillleben (2011) de Sebastian Meiser


"Stillleben" é uma espécie de "Festen" ao contrário ou, se preferirem, pegando num filme que analisei há pouco tempo, o lado B de "Michael". Se nestes filmes o que se explora emocionalmente é a violência do acto, em "Stillleben", e aqui reside a sua relativa originalidade, o objecto de reflexão é o acto em potência ou, se preferirem, o acto potencial. Neste filme do austríaco Sebastian Meise, o pai de família - e daí a minha referência a "Festen" - vê a sua íntima atracção pela filha desvelada pelo filho. Em vez de apostar no "rebentar da bomba" ou na confrontação verbal entre os filhos, nomeadamente, a filha e o pai, bem como a mãe, Meise prefere a solução de conter o "choque" num pedaço de papel ou numas fotos familiares que o pai usava para se masturbar... As personagens trocam estes "adereços" e é nessa passagem, mão-a-mão, de objectos que a comunicação do trauma se faz, muito mais do que - e daí eu dizer que é "Festen" ao contrário - o apontar de dedos ou os discursos condenatórios "in your face". 

Por outro lado, como disse, ao contrário dos dois filmes já citados, este pedófilo não é um abusador, não passou a vias de facto, logo, o que assombra todo este filme é a vergonha pura ou a ideia terrível do "se" aquele homem pensou fazê-lo com a filha e do "se" aquele homem continua a pensar fazê-lo com a filha. Trata-se, portanto, da expressão de uma violência mais especulativa do que efectiva: aquele cavalheiro, que parece ser um pai de família ideal, não assume e não realiza as suas pulsões sexuais, fundamentalmente, por medo (da "condenação") ou por vergonha (desse acto nojento)?

Há qualquer coisa como uma passividade destrutiva que aparece neste filme como grande pedra-de-toque "conceptualizante": as personagens não agem, não conseguem agir, paralisam ante a nova sombra que se abate sobre as suas vidas: o acto potencial de um pai de família pedófilo - um pedófilo cobarde? um pedófilo com vergonha de si? Uma potência impotente que choca! "Stilllben" - o still vem desta paralisia moral - é bem sucedido a teorizar sobre todas estas ideias, sociológica e psicologicamente densas, mas, enquanto objecto cinematográfico, ao pé de qualquer um dos filmes aqui citados, sai algo anulado, como que contaminado pela frieza das suas "teorias". Acaba esta teorizada "passividade destrutiva", a única coisa que se retém de "Stillleben", por retirar brilho e dar pouco ou nenhum espaço às formas desta teoria-filme? Infelizmente, arrisco dizer que sim. 

(Este filme passou hoje pela segunda vez no IndieLisboa. Mesmo que este seu filme não estreie em sala, ficamos, daqui em diante, com este realizador debaixo de olho.)

Toata lumea din familia noastra (2012) de Radu Jude


Chego ao nono dia e cai-me do céu - não do céu, mas, mais precisamente, de um país que já é uma potência cinematográfica - aquele que é, até ver - e estamos a dois dias do fim -, o melhor filme do IndieLisboa 2012 que me passou pelos olhos. O romeno Radu Jude, que com "The Happiest Girl in the World" ganhara em 2009 o prémio FIPRESCI do IndieLisboa, assina este drama intenso, mas não sufocante - como é, por exemplo, um filme de Puiu -, sobre um pai que quer levar a filha pequena de férias, mas a mãe, que custodia a criança, tal como o seu actual namorado bloqueiam-no nos seus intentos. Escudando-se no estado febril da menina, a mãe diz que esta não está em condições para fazer qualquer viagem. O filme não começa  neste ponto - é preciso sublinhar. Antes, o nosso protagonista passa por casa dos pais e, nela, assistimos a uma espécie de prelúdio, numa micro, muito micro, escala, para o que acontecerá mais à frente.

Como diz o Carlos Natálio, que teve a felicidade de ver este filme na sua primeira exibição, "Everybody in Our Family" é uma espécie de "Dog Day Afternoon" matrimonial ou doméstico. Contudo, a progressão do drama, que, pela situação "apocalíptica" a que chega, nos faz rir, nem que nervosamente, com alguma frequência, é-nos dada ao ritmo da vida, propiciando uma imersão lenta do espectador no universo das personagens, mais especificamente, no seu quadro mental (convulso). É que, a certa altura, a situação degenera num (imprevisto) sequestro sem um assumido sequestrador, sequestro sem evidentes vítimas - a vítima não será ele, em primeiro lugar? Não sei...

De facto, a questão da culpabilidade versus inocência parece ser o grande combate que se trava, interiormente, em cada uma das personagens do filme, a começar pelo seu protagonista, homem que age por impulso, com os nervos em franja, mas, preciso de sublinhar, legitimamente com os nervos em franja. A verdade é que ele se sente posto de lado na vida da filha pela sua ex-mulher. Ela que não é, de modo algum, retratada como um anjo, mulher "sem culpas" e sem mácula. Ela não tem pejo em lhe atirar para a cara o desejo de o afastar de vez da sua filha - sobretudo agora que o seu namorado está ali, a substituí-lo com o acréscimo de a tratar como o nosso protagonista nunca a tratou.

É difícil engolir essas palavras e, por isso, compreendemos o desnorte deste homem, que tem tanto de bruto quanto de sensível, indivíduo que, logo nas primeiras imagens, percebemos viver uma vida depressiva, entre as quatro paredes do seu apartamento caótico. Com efeito, não há inocentes aqui. Com efeito, não há culpados aqui. Assistimos ao desenrolar de uma situação dramática, que não estava nos planos de ninguém, nem mesmo do nosso protagonista, com um espanto crescente, mas sem nos precipitarmos em julgamentos morais; espantamo-nos porque, se calhar, também nós podemos cair na mesma situação - afinal, é, claramente, por amor à filha e, até arrisco dizer mais, por amor à sua ex-mulher, que este homem perde a cabeça e arma um rebuliço por toda a casa.

Acho genial toda a coreografia dos corpos, tendo como farol a acção, desprovida de um sentido - mas com sentido, isto é, compreensível -, do pai: ele, em ataques de fúria, puxa o namorado da ex-mulher para a cozinha, arrasta a ex-mulher para a sala, tranca no quarto a filha e a ex-sogra - velhota simpática que, sentimos, lá no fundo, ama porque compreende ou compreende porque ama, ainda ama, aquele homem enlouquecido, ela percebe que toda uma vida lhe fugiu das mãos... Isto é, Radu Jude é um cineasta muito adulto, não decide, nem nos leva a isso, quem vai para o Paraíso e quem vai para o Inferno - cito aqui a também muito impressionante conversa entre pai e filha que antecede o vendaval doméstico. Na verdade, opta sempre por nos dar os dois lados da disputa, documentando assim a fina linha que determina os nossos próprios limites, aquela que nos aproxima ou distancia do nosso mais impensável agir. Não a subestimem, não pensem que estão imunes às suas súbitas deslocações (neste particular, lembra "A Separação"). Penso que é isto que o filme de Radu Jude nos quer dizer e di-lo, aliás, de forma magistral.

("Everybody in Our Family" foi mostrado hoje, pela última vez, no IndieLisboa. Com João Canijo, cineasta que, diríamos nós, ter uma qualquer costela romena, no júri da competição oficial, onde concorre o filme de Radu Jude, pensamos que é certa a premiação, contudo, deixo aqui a seguinte ideia: grandes filmes como este só conhecem um grande prémio, que é serem vistos. Por isso, peço às nossas distribuidoras que o dêem a ver ao nosso público. E que o façam com urgência.)

Alpeis (2011) de Giorgos Lanthimos


O que fica do choque (positivo) de "Canino"? Bem, do mais palpável, fica a actriz, a fabulosa Aggeliki Papoulia, a "irmã mais velha" no filme anterior de Giorgos Lanthimos. Para mim, esta é a maior revelação do cinema europeu desde Anamaria Marinca ("4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias"): a forma como ela coreografa (e o verbo é mesmo este), com o corpo e as palavras, as duas personagens que interpreta é tão perturbadora quanto desconcertante. Quase como se o burlesco, a par de um gosto pelos gestos repentinos, as palavras abruptas, lhe corresse no sangue e irrompesse espontaneamente do seu corpo maleável. Se em "Canino" se fazia notar, aqui, em "Alpeis", não interessa mais nada nem ninguém sem ser ela.

O que se mantém mais desde "Canino"? O gosto pelos jogos, jogos de palavras, jogos de papéis, de duplos, de mimesis, estilo sociodrama perverso (e pervertido). A história de "Alpeis" sai fora do perímetro da casa de "Canino", como que estendendo, "além-fronteiras", esta economia baseada no jogo: lembram-se do desafiador "se me lambes aqui, dou-te uma prenda" do anterior filme de Lanthimos? Pois, aqui ele prossegue... só que de outro modo. Há um prazer na encenação de pequenos papéis que se confunde perturbantemente com a vida, como se não houvesse de facto fronteira delineável entre o que é simulação ou jogo e o que é vida de facto. (Também só agora me ocorre citar Lucrecia Martel como referência cinéfila possível neste cinema áspero, corporal e de "palcos" incertos.)

É que as personagens de "Alpeis" têm como "segundo emprego" a estranha actividade de "entrarem em cena" quando alguém especial partiu para sempre deste mundo. Com o intuito de amenizar a experiência do luto (e fazer algum dinheiro com isso), o grupo auto-denominado "Alpes" destaca um dos seus membros para (se) ocupar (d)o "lugar deixado vago" na vida de famílias destroçadas pela morte de alguém próximo. Curiosamente, aqui parece que estamos no mesmo domínio temático de "Em Segunda Mão" de Catarina Ruivo, outro filme que passou no IndieLisboa, e que lida, outrossim, com a vida como uma espécie de dança das cadeiras, que é aplicada, no caso, ao desparecimento de alguém, que, à partida, se teria como "insubstituível". Numa palavra, o que a empresa "Alpes" faz é tirar o prefixo "in" e tornar a morte numa cadeira vaga que o próximo jogador (actor) poderá ocupar. Assim que a música pare.

Lanthimos perdeu boa parte da truculência e inspiração de "Canino", porque o que aqui era uma "linguagem nova em formação", em "Alpeis" é apenas uma variante pobre desta, alicerçada menos no confronto entre as personagens - o corpo-a-corpo intenso, canino, que testemunháramos antes e nos espantara - e privilegiando o desenvolvimento anedótico de uma intriga demasiado rebuscada. Tratar-se-á, possivelmente, de uma obra de passagem, mas, de qualquer modo, não constitui avanço nenhum em relação ao surpreendente "Canino", filme que recomendo que se veja e até que se reveja, talvez mesmo em detrimento deste "Alpeis".

("Alpeis" foi mostrado hoje no IndieLisboa. É reexibido no dia 5 de Maio, no Pequeno Auditório da Culturgest, às 21h45. Para mim, este não é um visionamento prioritário, sobretudo, se ainda não viu "Canino".)

L'enfant d'en haut (2012) de Ursula Meier


"L'enfant d'en haut", com o título inglês "sister", é uma história de amor. Foi isso que retive da apresentação da realizadora suíça Ursula Meier, antes de se apagarem as luzes e começar a projecção. De facto, agora visto este que é o seu filme mais recente, premiado em Berlim com o Urso de Prata, fica bem claro que estamos na presença de uma história de amor, mas um amor que se exprime sempre numa ideia de distância e abandono.

As personagens principais são um rapaz e a sua "sister" (prefiro aqui socorrer-me da acesa ironia do título inglês...). Ele ganha o pão (= a massa e o papel higiénico, como diz, a certa altura) roubando material para esquiar e vendendo-o por tuta e meia, enquanto ela gasta o dinheiro em bebedeiras ou em saídas extemporâneos com homens estranhos. A premissa é esta, simples, tal como já era a de "Home", mas é com base nela que Meier vai subtilmente captando algo mais, a tal história de amor entre duas pessoas sós, deixadas ao abandono, mas que, por serem assim, acabam por se tocar na mais profunda e íntima das sintonias. Não importa se a estrondosamente bela Louise (interpretada por Léa Seydoux, que se lembrarão de "Midnight in Paris" ou "Inglourious Basterds") é, de facto, a irmã do expedito Simon (Kecey Kelin, que era Julien em "Home" e que, por uns minutos, também passa por Julien aqui...). O que importa é que aquele rapaz-adulto e aquela mulher-criança, mesmo sem horizontes de futuro, estão (umbilicalmente...) ligados.

Esta pequena história, pontualmente, comovente, é contada sem sobressaltos, num ritmo lento, pela câmara de Meier, num registo de realismo sociológico à Dardenne (não o de "Rosetta", mas mais o de "Le gamin au vélo"), talvez algo excessivamente "apagado" se o quisermos comparar a alguns momentos da sua primeira longa, filmada para a TV suíça, "Des épaules solides", mas também sem as inconsistência deste filme. Não que a consistência, solidez amadurecida no "filmar" e no "contar", corra sempre a favor do grande cinema. No caso, parece que de tanto se "querer apagada", a câmara de Meier torna-se previsível na sua acção e demasiado confortável com o que filma. E o que filma também, gradualmente, se vai tornando mais sinal de repetição desnecessária do que de uma (muito pretendida?) delicadeza dramática - estilo "Dardenne chic".

Não estou certo que "L'enfant d'en haut" consiga escapar à mesma crítica que dirijo a um "Home": storytelling lento, que gira à volta de si, repisando as mesmas ideias fundamentais várias vezes, e que, a meio, começa a amolecer o filme e, por arrasto, o espectador, mesmo aquele que simpatize com as personagens e o seu drama sentimental. Apesar dos bons sentimentos, de interpretações notáveis, alguns cameos assaz surpreendentes (não tanto o de Stévenin, mas mais o da desaparecida em combate Gillian Anderson), este filme está mais longe do que esperava do nível (e arrojo) dos primeiros filmes de Meier (as suas surpreendentes primeiras curta e longa). Uma pequena desilusão.

(Este filme foi exibido hoje no IndieLisboa. Será distribuído comercialmente pela MIDAS Filmes, no mês de Outubro. Tente vê-lo, mas sem esperar muito.)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Des épaules solides (2003) de Ursula Meier


Aqui para os meus botões (estranhamente ou não, os meus fãs mais acérrimos), tive de me confessar: subestimei Ursula Meier. Subestimei, sim, mas não muito, pelo menos, só durante a hora e meia de "Home", filme simpático, com dois actores de excelência do cinema europeu (Huppert e Gourmet), mas que, ultrapassada a exposição da sua premissa invulgar, parece cair num vazio de ideias, sem saber para onde ir. Contudo, nada nele se compara, por exemplo, aos minutos finais de "Des épaules solides", filme que Meier produziu para a televisão suíça e que é um pequeno drama, em registo realista, sobre a angustiante vida de uma adolescente que luta contra o seu próprio corpo, e a envolvência familiar instável, para se tornar numa atleta profissional. Sonha com a vitória no pequeno campeonato em que vai participar ao mesmo tempo que fantasia com as Olimpíadas. Querendo dar um passo maior que a própria perna, começa a ponderar preparar-se sozinha, à revelia do seu treinador, excelentemente interpretado por Jean-François Stévenin.

O freeze frame final, fixando o movimento e rosto desenquadrado da jovem Sabine (já disse que Louise Szpindel é extraordinária?), ao som de Schubert, ultrapassa todos os planos juntos de "Home": esse plano, que nos transforma o coração em pedra, inflige-nos uma dor e uma emoção raras, que reconduz e nos faz reinterpretar infinitamente o imobilismo soberano do seu corpo depois do disparo de partida. É apoiado nesta emoção que revejo em alta o meu entusiasmo em volta do mais recente filme de Meier, "L'enfant d'en haut", vencedor do Urso de Prata no último festival de Berlim (e que ante-estreia amanhã, no IndieLisboa).

Mas agora recuemos até à primeira experiência de Meier no cinema: "Tous à table" (2001). Esta curta maravilhosa, filmada num preto-e-branco saturado de grão, é um carrossel de emoções: começa com um jantar entre amigos, depois percebemos que é uma festa de anos, o aniversariante, um velhote com ar simpático, recebe os elogios e diz que envelhecer com amigos daqueles... não é difícil. Este cenário de celebração e rejubilo vai-se gradualmente transformando noutra coisa, a partir do instante em que um dos anfitriões lança à mesa uma charada sobre formigas, aguardando, passiva e insolentemente (?), a resposta certa.

O que se gera neste momento é, no começo, uma caótica reacção colectiva a uma "blague" sem importância, mas, perto do fim, aquele grupo de amigos entra numa espécie de "guerra civil sentimental" à volta da mesa: casais desentendem-se, os mais velhos impacientam-se... a tensão torna-se, verdadeiramente, ridícula e o serão muito menos agradável. Tudo por causa de três formigas que caminham em fila indiana, no cepo de uma árvore, em direcção... ao vazio... A primeira olha em frente e não vê nada, a do meio olha em frente e vê uma formiga, olha para trás e vê outra, ao passo que a última olha em frente e vê duas, olha para trás e vê outras duas. Face à rábula, um jantar de comemoração vira sessão de violenta confrontação entre os convidados.

No decurso daqueles 30 minutos, a câmara invisível de Ursula Meier tem-nos completamente na mão. Rimo-nos, divertimo-nos muito, mas também ficamos de queixo caído face ao descarrilamento daquela festa que prometia ser só e apenas uma lição de amor entre amigos.

(Esta sessão dupla foi mostrada hoje, na presença da realizadora, no IndieLisboa. Tenho muita pena, mas não voltará a passar no festival. Tente, contudo, apanhar amanhã a sua mais recente longa, "L'enfant d'en haut", que passa às 21h30, no cinema Londres.)

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Michael (2011) de Markus Schleinzer


Poderosíssimo filme, que resiste bem à mais simplista das sinopses: "Michael" não é um filme sobre um pedófilo e a sua vítima, um rapaz de 10 anos que passa grande parte do dia trancado na cave de uma casa impecavelmente limpa por dentro, totalmente anónima por fora. Não, "Michael" é uma história que se vai construindo, sem etiquetagens prévias, num registo cru e literal, centrada num homem (a interpetação do actor, Michael Fuith, deixa marcas) e na relação que tem com uma criança. Ele tem com ela uma relação mais do que "apenas" alusivamente paternal, como percebemos na seca cena em que Michael, o homem, lava o pénis depois de uma visita à cave.

Ora, por que digo que "Michael" não é aquilo que uma típica sinopse possa dar a entender? Porque "Michael" rejeita a ironia mórbida ou o exercício do choque pelo choque - estratégia muito cara a outro cineasta austríaco, Michael Haneke, com quem Schleinzer trabalhou como "casting director"  -, na realidade, a força deste filme gera-se não na "estranheza de tudo", mas na ideia de normalidade, de um  quotidiano completamente plano.  As cenas sucedem-se como se tudo fosse normal? Não, "Michael" suprime os "como se" ou outro género de recursos retóricos, minimamente, moralistas... É clínico, de um distanciamento perturbante, sim, mas também não se serve em momento algum das personagens para "jogar" subrepticiamente com os limites do espectador.

As personagens comportam-se, de facto, dentro desse registo, ia escrever, natural, mas, de facto, não há nada mais "mecânico" ou "automático" ou dessensibilizado do que o dia-a-dia de pessoas comuns - um pedófilo é uma pessoa comum? Um sequestrador e abusador de crianças pode ser filmado como sendo um de nós? Como aceitar isso? Bem, talvez nestas interrogações resida a força e o desconforto deste filme, que, ecoando o drama horrífico de "O Monstro" austríaco, rejeita soberanamente os lugares-comuns e os pré-juízos do discurso mediático.  Michael é um sequestrador e é doente. Schleinzer não o diaboliza, aceita-o como um "facto da vida" e a situação do rapaz é vista e dada a ver, igualmente, dentro dessa normalidade, uma normalidade que se interrompe quando entra em cena o sexo ou quando se apagam as luzes ou quando se fecha a porta pela milésima vez (e não é preciso filmar mil vezes a porta a fechar para sabermos que esta foi fechada mil vezes, mais ou menos, da mesma maneira e às mesmas horas).

A normalidade é interrompida nessas cenas, ainda que, para o meio do filme, por força dessa rotina marcada muito silenciosamente pela culpa e o horror, até a interrupção acabe por se normalizar*. Por isso, não sabemos se a última imagem (a mãe de Michael abre a porta do quarto secreto...) é um "Enfim, a liberdade!" ou um "De novo, o cativeiro...". Outro cativeiro, aquele do qual a criança não se libertará mais. Poderosa conclusão inconclusiva que faz da neutralidade psicológica de todo o filme a chave que abre, serenamente (= perturbação não perturbante), a porta de uma distorcida mente humana, uma mente ainda-assim-humana.

("Michael" estreou hoje em Portugal, no festival IndieLisboa. Não será reexibido. Este filme, que enregelou o último festival de Cannes, tem todos os condimentos para ser um pequeno sucesso de público, aqui como em qualquer outro país. Até ver, foi um dos pontos mais altos do Indie, o que já é muito.)

* - Dou-vos um exemplo superior desta situação: é ou não é normal que o rapaz, sequestrado na cave há muitos anos (sentimos), fique chateado, profundamente chateado, quando sabe que Michael falhou a sua missão de lhe arranjar companhia? É normal. É neste "é", inabalável, à margem de qualquer discurso unívoco da "boa moral" contra a "má moral", que se constrói todo o filme.

terça-feira, 1 de maio de 2012

The Color Wheel (2011) de Alex Ross Perry


"The Color Wheel" é o reverso de "Bummer Summer", filme (exibido há um ano no Indie) também pertencente a essa "vaga" que se convencionou chamar mumblecore, mas que sabe encontrar beleza nos silêncios e na divagação das personagens, um pouco como os irmãos Safdie também sabem "extrair" sentimentos puros de situações mundanas. O filme de Alex Ross Perry está cheio de sublinhados "isto é mumblecore", primeiro sinal de que as categorizações cinéfilas podem ser óptimas para aproveitamentos oportunistas de realizadores que, sem nada verdadeiramente interessante para dizer, fazem desse estilo mais ou menos cristalizado o pretexto para uma projecção mediática mais rápida.

Isso acontece com "The Color Wheel", filme cheio de conversa da treta, personagens estereotipadas e irritantes, que em vez de procurar encontrar uma sensibilidade específica dentro delas ou no modo como se relacionam, perpetua, até à náusea, a sua existência de cartão, o facto de serem, enfim, "clichés vivos" - uma das personagens do filme, que motiva uma enfadonha e sem graça road trip, chega mesmo a acusar a protagonista de ser um "cliché". Esta será a única observação digna de nota num filme onde se fala de mais e se diz demasiado pouco, onde até o preto-e-branco ou o "bom grão" à Cassavetes parece ser mais um traço de oportunismo "estilístico" do que uma genuína opção estética.

O que salva o filme da nulidade completa é o longuíssimo plano da irmã a "fantasiar" com a profissão futura do irmão e que desfecha num relativamente surpreendente twist dramático. É por esse plano que ainda não damos já essa história do mumblecore como a invenção mais madrasta que o cinema indie americano conheceu em muito tempo.

(Este filme, exibido hoje, pela segunda vez, no IndieLisboa, será mostrado, de novo, amanhã, dia 1 de Maio, às 21h30, no Cinema Londres. Não recomendo.)

The Last of England (1988) de Derek Jarman


Visão apocalíptica, muito pessoal, de Jarman sobre o seu país. Ruínas, muros (mais do que em Berlim, diz o narrador, em off, a certa altura), vermelho de sangue e vermelho do fogo, fogo das tochas e fogo das armas, fogo da Bomba e do céu, homens encapuzados, gangs à deriva... É este o cenário da Londres "em chamas" de Jarman. E é, num carrossel diabólico de imagens, que o realizador inglês "monta", às camadas, a sua crítica, cheia de barroquice avant-garde, ao Thatcherismo, a uma sociedade que tende autofagicamente à dissolução dos seus valores de liberdade e tolerância, ainda sob o fantasma do nazismo (até parece que Hitler, que ouvimos a discursar na banda de som, ganhou a guerra!)... As velhas viúvas parecem controlar as operações do grupo terrorista que fuzila o protagonista. Parece ser por ele que a noiva (Tilda Swinton) dança, à luz da fogueira, rasgando simbolicamente a sua roupa, como que expressando o sentimento de desolação, de fim de linha, deste país que enluta o amor, permanentemente.

"The Last of England" vive de todas estas visões infernais, tece a sua teia de imagens baseando-se numa retórica audio-visual (propositadamente) esotérica, mas sempre de "nota única", que não cessa, aqui e ali, de nos hipnotizar tanto quanto, aqui e ali, nos mói. Derek Jarman, aquele que César Monteiro um dia apelidou de "paneleiro sem talento", não é um cineasta de todo desinteressante, mas o seu "angerismo", a sua pulsão underground gay demasiado auto-afirmativa (para o meu gosto, pelo menos), puxa a sua visão política do mundo para o domínio, não raras vezes gratuito, da apropriação sexual. Escrevo isto sobre Jarman, mas podia estar a escrever o mesmo sobre Fassbinder ou o já citado Kenneth Anger, cineastas que também nem sempre conseguem, ou querem, refrear a tentativa de politização da sua particular experiência da sexualidade. Como se a homossexualidade fosse um panfleto, que é sempre oportuno distribuir junto com "algo mais"... atitude moral com a qual não me identifico.

Todavia, este filme de Jarman, que surge no festival a representar os anos 80, em comemoração dos 50 anos da Viennale, será, obviamente, um objecto obrigatório para fãs do realizador. Para os outros, deixo a seguinte dica: ganharão em vê-lo quando estiverem numa de dar uma "segunda oportunidade" a um realizador que não adoram, mas que vos (sabe) intriga(r). Só pela "dança da noiva" o filme vale o risco.

(Este filme foi mostrado hoje no IndieLisboa. Não será reexibido. Porque compreendemos, mas não acompanhámos, os aplausos no final da sessão, deixamos este link para a sua edição inglesa em DVD.)

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