De novo, Shyamalan NÃO divide
a crítica, isto é, consegue (como se calhar nunca antes) pôr praticamente toda a gente a fazer trocadilhos com o título deste seu último filme: que este "Airbender" seja mesmo "O Último" da carreira do realizador. Não sou imune ao facto de mesmo aqueles que apreciaram "Lady in the Water" - filme que, peço desculpa, ninguém ama mais do que
eu ou
talvez não... - terem-se juntado às vozes dominantes, na realidade, tão dominantes que se tornam perigosamente dominadoras, mas vamos por partes.
Tema. Para quem viu em "The Last Airbender" um Shyamalan "irreconhecível" ou "descaracterizado" eu diria que vi precisamente o contrário, isto é, um Shyamalan por vezes totalmente translúcido quanto ao natural caos que é o seu universo, perdido entre as suas raízes indianas (hindus?) e o seu gosto - obcecante, como todos os gostos deste realizador - pelo entretenimento da descomunal Hollywood. Tematicamente falando - vamos por partes... -, não há que enganar: "The Last Airbender" é um filme de Shyamalan; poderá ser um filme desinpirado de Shyamalan, frágil e confuso, mas é um filme seu. Ou dito de outra forma: não há aqui marcas evidentes de um cineasta que se "vendeu" à indústria ou, como alguma crítica norte-americana andou a apregoar aos sete ventos, de um megalómano que quer ser um George Lucas ou só vê cifrões à frente.
"The Last Airbender" tem várias coisas em comum com, desde logo, os seus dois filmes anteriores. A sua história fantástica em torno dos quatro elementos naturais parece ecoar algumas pontas já consideravalmente desenvolvidas em, desde logo, "Lady in the Water", fábula "marinha" sobre um mundo azul que protege o mundo dos homens. Uma personagem, Story, é o Messias desta narrativa - o seu Avatar -, na medida em que provoca uma interferência entre mundos para reconquistar a paz perdida.
Messias
"The Last Airbender"
"Lady in the Water" (Bryce Dallas e Shyamalan)A reli-giosidade neste universo - simbolizada pela cena da cura e pela
omnipresença dos media - é óbvia. Em "The Last Airbender" também temos uma ordem perturbada que precisa de ser harmonizada pela chegada de um Messias. Esse Messias - "o escolhido" - é Story em "Lady in the Water", e também é o próprio Shyamalan nessa história, já que será ele que - qual Barack Obama - irá insuflar de esperança um mundo minado pela apatia e a descrença. (É a realidade social e política da América que puxa as personagens para a fantasia, que ulteriormente a transforma - até porque poderá ter tudo passado de um sonho...)
Vento
"
The Last Airbender"
"The Happening"
"The Last Airbender" fala-nos dos quatro elementos convertidos em quatro mundos; diríamos que Story caberia no da água - onde caberiam os extra-terrestes hidrofóbicos de "Signs"? - e diríamos mais: "The Happening" poderia ter sido despertado por um feitiço vindo de um
bender do ar. Epstein falou (muito exoticamente) dessa magia superior que é o controlo sobre o tempo, ao passo que Shyamalan torna-se num "tempestaire" (in)
visível no conjunto destes filmes ou faz, na sua cadeira de realizador, aquilo que L. Jackson faz, na sua cadeira de rodas, em "Unbreakable"...
Forma. Também aqui parece-me descabido dizer-se que "The Last Airbender" é uma completa aberração na obra do realizador. Aqui, mais uma vez, adjectivos como "descaracterizado" ou "irreconhecível" devem ser, quanto muito, preteridos a adjectivos como "desinspirado".
Isto porque só Shyamalan filma os campos-contra-campo de forma quase frontal, num eixo horizontal de quase 180 graus. A certa altura, vemos Avatar a meditar e, em segundo plano, vemos "a rapariga da água". Shyamalan filma metade do rosto do protagonista como fez com as bestas verdejantes, nascidas da terra, (e a besta do crítico...) de "Lady in the Water". O interessante jogo de focagem/desfocagem em primeiro plano/segundo plano também não é o pão nosso de cada dia no
mainstream. Por outro lado, praticamente só Shyamalan alonga daquele modo os planos - muito longos tendo em conta a média de duração dos planos que se pratica por estes dias em Hollywood. Os
slow motions mais ou menos líricos também nos são familiares, se pensarmos em "The Village" ou "Lady in the Water". (Já aqueles
zooms bruscos, computorizados, são uma ferramenta
high tech algo estranha ao universo estético de Shyamalan.)
3D. Ainda dentro da forma, tenho que abrir um parêntesis para falar das três dimensões em "The Last Airbender". Sou da opinião que o maior foto-realismo das três dimensões seria melhor explorado - de um ponto de vista plástico - se os planos se prolongassem mais no tempo e no espaço, quebrando a estaticidade clássica - necessária... - da câmara. Uma das maiores críticas que faço ao "Avatar" nem é a utilização do 3D, já que este até tem uma importância substantiva na história, mas sim o facto de Cameron ter pensado visualmente o seu filme muito mais na construção de um universo do que na forma de o captar em planos.
O fragmentarismo tradicional é ultra-atordoante com o 3D,
coisa que Robert Zemeckis já terá percebido há algum tempo, mas Cameron não aprimorou minimamente com o seu colossal filme - o que não espanta, visto que Cameron é, por norma, um realizador que pensa a história e o seu visual lato sensu, mas raramente é subtil a decompô-lo, ou não, em vários planos. O segredo de Cameron até poderá residir aqui: uma concepção brutamontes do
découpage que vem endurecer - devastar, enegrecer, politizar - um universo de estufa fria, polidinho até à última folha da última árvore. Shyamalan detém-se menos na concepção dos universos que na sua "desmontagem" em planos. É, por isso, mais um operador - um realizador de câmara - que Cameron - que é um designer, um arquitecto de mão pesada.
"The Last Airbender" aparece totalmente desapegado da realidade, surgindo como uma espécie de profecia anunciada, previsível neste contexto criativamente rico/pobre (apolítico) pós-Bush. A única coisa que o prende a nós - relembro que todos os outros filmes, sobretudo "The Village" e "Lady in the Water", eram, também, parábolas políticas - é precisamente o fotorealismo do 3D assimilado pelo bailado da câmara no espaço, em continuum, com poucas interrupções - ao contrário de Cameron e ao contrário de Burton. Digo isto então para defender o seguinte: o 3D faz sentido aqui.
Montagem. Também aqui as variações são poucas, e talvez - por isso ou não - algo desinspiradas. Basta que comparemos "Signs" e a história do padre (Mel Gibson) à forma como nos é revelado o passado do jovem Avatar: analepses que surgem ao espectador sob a forma de flashes mentais. As personagens "sonham acordadas", assombradas por um evento passado (traumático ou não). Achei, contudo, interessante a opção de cortar o som nalgumas memórias e apenas incluir imagens soltas - algumas tocantes - ao som da banda sonora de James Newton Howard.
Diegese. Quanto à forma como a história se desenrola, também encontro paralelismo claros com "Lady in the Water". Ainda que muito mais submergido no seu próprio universo fantástico, "The Last Airbender" também é feito de pequenos mistérios que se vão colocando em linha progressiva - um atrás do outro - ao espectador. A técnica de
storytelling é cumulativa, na medida em que o mundo ou os modos de lidar com ele vão sendo explicados pelas personagens até ao último minuto da história e não numa introdução alargada - ou exposição. Contudo, a confusão aqui é, por vezes, quase total. Shyamalan não consegue lidar com uma história que não é sua de raiz; lança-nos personagens como descodificações complexas do seu mundo numa cadência desenfreada, muito difícil de seguir. A alternativa é, por vezes, simplesmente, desligar e concentrarmo-nos no ritmo das imagens.
Personagens. Todas, quase sem excepção, ficam por trabalhar. Shyamalan parece perdido entre o desafio da "adaptação" e a necessidade - que é sua, por inteiro - de adensar as suas personagens, sobretudo, aprofundar as suas RELAÇÕES ou LIGAÇÕES. Aqui reside aquele que é, a meu ver, o principal problema dos últimos filmes deste realizador: a sua opção por histórias de viagem, mais horizontais que verticais. O filme estica-se em mapas sem fim - América, França, etc. ("The Happening") e aqueles quatro mundos ("The Last Airbender") - e as personagens, demasiadas aqui, perdem-se no espaço.
O fechado
"Signs"
"The Village"
"Lady in the Water"
O aberto
"The Last Airbender"A concentração espacial do drama é fundamental no cinema de Shyamalan para lhe dar dimensão humana; no fundo, para o "credibilizar". Aqui ela está totalmente ausente, ao passo que em "The Village" (a vila é uma clareira na floresta impenetrável) e em "Lady in the Water" (o condomínio é uma clareira... idem) temos duas obras hitchcokianamente de cerco; aqui temos uma espécie de travelogue épico à la "Star Wars" - mas, repito, Shyamalan tem mais cinema no seu pior plano que Lucas nos planos todos que fez na vida... - ou à la "Senhor dos Anéis".
Diegese (o fim). "Lady in the Water" termina com a grande águia Eathlon que leva a ninfa salvífica, enquanto chovem lágrimas da despedida (e)terna a um Amor puro. Foi o último final definitivo, fechado, de Shyamalan. Em "The Happening" e neste "The Last Airbender" temos um epílogo. Curioso que se fale muito da possibilidade - apenas ditada pela sua performance no boxoffice internacional - de Shyamalan vir a fazer as duas sequelas desta história, quando ninguém falou em continuar "The Happening" - que, no campo da linguagem dos filmes de terror, GRITA por uma continuação.
Não sei, mas nesta minha "mania" - quem a diagnosticou que se acuse! - por Shyamalan, até estou virado para achar piada a estas obras "inacabadas" deste génio sem pátria definida e cada vez mais sem destino certo. É algo propositado ou ditado pelas circunstâncias do mercado? Epa, sei lá, mas alguém levanta essa questão quando olha para a truncadíssima e atribuladíssima carreira de Orson Welles?
(continua em breve)