segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Twenty Cigarettes (2011) de James Benning


Sobre este extrarordinário filme de Benning, que estreou no último DocLisboa, o meu amigo e colega Carlos Natálio, no seu blogue Ordet, a certa altura escreveu algo que me chamou a atenção: Desta forma, não há absolutamente nada de metafísico nesta obra provindo de um cigarro, seu fumo, olhar para dentro, etc. A incrível fisicalidade do filme de Benning consiste sobretudo em pensar que a alternativa ao rosto, ou melhor, o rosto dos objectos (para manter a metáfora deleuziana) está na sua absoluta exterioridade.

Chamou-me a atenção o facto de, nesta passagem, ficar claro, para o Carlos, que "Twenty Cigarettes" é um filme sobre o "gesto de fumar" na sua palpabilidade. O cigarro em Benning seria assim profundamente físico, oferecendo ao espectador uma observação dos rostos e dos corpos nos seus movimentos, talvez, mais secretos. Chamou-me também a atenção o lado peremptório com que o Carlos escreveu que "não há absolutamente nada de nada de metafísico nesta obra provinda de um cigarro".

Não concordo com esta ideia, porque acho que o cigarro vai-se tornando "estrutural" na obra de Benning à medida que os diferentes quadros se sucedem, isto porque é ele, na duração do acto de o fumar, no seu comprimento, que dita o "sentimento" de cada plano, porque é dele ou à volta dele que nascem os movimentos e as expressões de rosto de que fala o Carlos. Ao segundo ou terceiro cigarros o espectador tem de ir além da fisicalidade do que lhe é oferecido, porque, mais cigarro ou menos cigarro, deixará de se poder alhear da essência estrutural desse objecto tão comum, mas aqui tão fulcral.

O cigarro é metafísico, a meu ver, no sentido em que nos abre o filme para algo que transcende largamente um "estudo sobre rostos e gestos" ou um "registo antropológico dos modos contemporâneos de fumar". Desde logo, é metafísico "dentro do filme": um filme onde se mede a duração de cada plano pelo tempo que cada um dos protagonistas "leva" a fumar um cigarro é uma obra estruturada de dentro para fora, sendo que o que está entre ele e o fumador é esse dispositivo longilíneo que, até ao filtro (uma meta), vai marcando uma direcção, um caminho... (que se percorre a diferentes velocidades), no sentido da sua (nossa?) finitude.

Neste aspecto, agora saltando fora deste filme em concreto - o que só sublinha a componente metafísica deste filme -, "Twenty Cigarettes" é diferente dos lagos ou céus de Benning, porque nestes a finitude não é visível senão no gesto - todo ele apenas do realizador - de cortar e passar a um novo plano. Aqui, são-nos dados a ver os limites temporais de cada quadro - tamanho do cigarro - e rapidamente nos apercebemos que o seu esgotamento está nas mãos do objecto filmado - o fumador que pode ser mais ou menos ávido, mais ou menos contemplativo... Ele, o fumador, fuma o filme verdadeiramente. O cigarro é a sua "máquina" de projecção. O cigarro é a película que queima, o cigarro é analógico... a câmara, essa, filma em digital aqui - 0s e 1s, que marcam, a contra-ciclo, uma reversibilidade na imagem, mas um cigarro não se presta a isso, porque, enfim, é sempre um cigarro e nada mais (apagá-lo ou manipulá-lo desfiguraria o sentido de tudo na imagem, como o têm mostrado bem as censuras anti-tabágicas a imagens icónicas de, por exemplo, Alain Delon).

"Twenty Cigarettes"

"Ruhr" (2009)

"Ten Skies" (2004)

O cigarro é metafísico também no sentido em que, e continuando, nos remete para os grandes temas do cinema de Benning - cinema esse que é, concordará o Carlos, tudo menos um cinema que se fica no terreno e no mais corpóreo. Benning tem um fascínio claro pelas formas gasosas, bem evidente em filmes como "Ruhr" (veja-se o último longuíssimo plano da chaminé a "exalar" o fumo fabril que ganha formas irregulares misterioríssimas...) ou em "Ten Skies" (as nuvens são quase como fumo industrial divino). O cigarro tem esta potência: produz fumo como Deus produz nuvens e a fábrica liberta o fumo denso e tóxico. O que acho, sinceramente, que Benning faz é pôr a chaminé entre os lábios de vinte indivíduos para ver o que eles, numa posição de completa autoridade sobre os tempos de cada plano - isto é o próprio que conta, por exemplo, aqui -, produzem; ou melhor, "para ver" que FORMAS eles produzem com um cigarro entre os dedos. Não obrigatoriamente só fumo, mas também fumo - veja-se o cigarro da jovem, de onde saem pequenas e grandes balões fumarentos que me remetem, de imediato, para algo bem mais longínquo que o seu "corpo a fumar".

O cigarro mais incrível de todos, a meu ver, é aquele que coloco aqui na primeira imagem. Uma mulher de uma beleza natural desarmante, de uma dignidade inata, que lhe parece estar na pele - mesmo sem maquilhagem e um vestido elegante -, fuma contra uma paisagem de céu e nuvens. A forma como ela se move no quadro é a afirmação de uma autoridade que ela, enquanto objecto, tem sobre o realizador, e que, a meu ver, não pode ser posta de lado numa análise ao filme. É incrível o instante em que ela se põe de perfil, "jogando" precisamente com esse poder que Benning, ou melhor, que o cigarro lhe confere. Também é incrível que, a certa altura, ela se vire de costas para a câmara, de frente para o céus e as nuvens, transcendendo assim a mundana fórmula do "corpo a fumar um cigarro". Esta senhora tem, a meu ver, alma de cineasta, na medida em que percebeu que Benning não quer captar só o seu "corpo a fumar", ele quer captar também (ou sobretudo) as formas que o seu corpo, naquele meio, produz em resultado do contacto com o cigarro, objecto que grita uma finitude, uma irreversibilidade que, para além de metafísica, é profundamente analógica.

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