segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Hatari! (1962) de Howard Hawks

Excerto do texto publicado na edição deste mês da revista Red Carpet.

11 de Novembro 2010: publico aqui o mesmo texto na íntegra.

Não é exagero dizer-se que o cinema de Howard Hawks é um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento crítico da Sétima Arte. O seu eclectismo na forma, “em choque” com uma constância temática no conteúdo, baralhou algumas das convenções que existiam na Hollywood clássica: Hawks não se adaptava aos géneros, os géneros é que se adaptavam a Hawks. Assim sendo, os films noirs, westerns, screwball comedies que filmou eram produtos mais de um universo personalizado do que da tradicional pré-etiquetagem hollywoodesca. Os críticos dos Cahiers du Cinéma não hesitaram em apelidá-lo de auteur: o isolamento, a guerra dos sexos e os ambientes carregadamente masculinos são tópicos reincidentes na sua filmografia. "Hatari!" (1962), realizado três anos depois do clássico "Rio Bravo", engloba-os com a elegância e liberdade poética que julgamos apenas serem possíveis no coração de um cinema aturadamente decalcado, no pico do seu amadurecimento.

Passado na África Oriental, mais concretamente na Tanzânia, "Hatari!" conta a história de um grupo internacional de caçadores que procura atender a um grande número de encomendas provindas de jardins zoológicos de todo o mundo. O seu complexo reúne todo o tipo de animais selvagens, desde búfalos a tigres, passando por elefantes. Se excluirmos Brandy (Michèle Girardon), uma jovem rapariga cujo pai foi morto enquanto caçava, toda a equipa é formada por homens: à cabeça temos o americano Sean Mercer ou “Big Bwana” (John Wayne), depois os seus compatriotas “Pockets” (Red Buttons) e “The Indian” (Bruce Cabot), o alemão Kurt Muller (Hardy Kruger) e, por fim, o mexicano Luis Garcia Lopez (Valentin de Vargas). Mais tarde entra em cena o típico jovem rebelde hawksiano, reminiscente de Ricky Nelson em "Rio Bravo": o francês Charles Maurey, baptizado por Sean de “Chips”. Como vemos, quase todos os membros deste grupo dominantemente masculino têm alcunhas, o que evidencia uma certa concepção tribal das relações entre homens.

O rebaptismo funciona como um rito de passagem dentro do grupo. E entre “amigos de batalha” – Hawks foi aviador na I Guerra Mundial – esse acto simbólico é ainda mais importante: um elo feito de aço que sela a união fraternal (quase homoerótica) entre homens de corações duros. Na realidade, Hawks vai mais longe: à falta da tradicional família nuclear, instituição omissa em quase todos os seus filmes, os papéis que a constituem são, por vezes, redistribuídos apenas entre homens.

Sean não é só o líder de um grupo de trabalho; é símbolo de força e sabedoria em "Hatari!". Em certa medida, representa a figura paterna numa família de caçadores. “Pockets”, por sua vez, é a antítese de Sean: figura patusca, de corpo delgado, que tem medo de animais e que, por isso, preenche o seu tempo a inventar as geringonças destinadas à captura dos animais. Entre elas, um mini-foguete que no seu primeiro ensaio destrói parte do telhado da casa de palha onde “Pockets” faz as suas experiências. “Hatari!”, isto é, “PERIGO!”, gritam os indígenas. Se Sean é o patriarca, a “Pockets” fica entregue o papel do “homem feminizado”, que também já conhecemos de outros filmes do realizador: a título de exemplo, Cary Grant em "Bringing Up Baby" (1938) ou "His Girl Friday" (1940) e, a espaços, Walter Brennan em "Red River" (1948) ou "Rio Bravo" (1959).

Muller e “Chips” são como que dois irmãos adolescentes que se engalfinham na disputa primária – mera afirmação de egos, desconfiamos – pela menina Brandy, aquela que ainda é uma criança aos olhos de Sean. Não perdendo o fio a esta análise, diríamos que os dois são os meninos insubordinados do grupo ou os rebentos selvagens da dupla Sean-”Pockets”. Por outro lado, o mexicano Luis Garcia Lopez pauta-se por uma certa invisibilidade, ao longo de todo o filme, o que torna o seu papel menos claro. Ainda assim, tendo em conta a vaidade que ostenta nas cenas finais do filme, a ele atribuiríamos o segundo papel de “homem feminizado” em Hatari!.

“The Indian”, o elemento mais velho, é atacado logo nos primeiros minutos, na sequência de uma vertiginosa perseguição, em plena savana, a um rinoceronte. De perna ferida, “The Indian” torna-se pouco útil, limitando-se a invocar a sua experiência para aconselhar Sean. Fala de uma maldição associada à caça do rinoceronte e, por isso, pede a Sean para adiar esse expediente, enquanto a sorte não mudar. É uma espécie de avô prudente nesta família tão pouco modelar.

A mulher ou o primeiro dos animais selvagens

Howard Hawks constrói narrativas com uma naturalidade desarmante. A liberdade que os seus filmes transmitem é única. Dizer que são “filmes de personagens” à frente do seu tempo é pouco para qualificar aquilo que Hawks representa na história do cinema: cometeu a proeza de captar pedaços de vida, sem sucumbir à lógica dominante do entretimento non-stop; criou um ritmo próprio, onde o tempo é firme, palpável, quase real. A simplicidade, coisa muito difícil de compreender para a maioria, parece ser parte do pequeno milagre – em Hawks, orgulhosamente não religioso – que, por exemplo, "Hatari!" materializa. Vejamos a estrutura da sua narrativa, nitidamente circular.


O filme começa em alta velocidade, com Sean a liderar a sua cavalaria motorizada na caça de um possante rinoceronte. Depois de “The Indian” ter sido colhido pelos cornos do animal, entram em cena duas novas personagens: o francês “Chips” e, mais importante ainda, a presença feminina que vai desorganizar o mundo dos homens. Anna Maria D'Allessandro é uma fotógrafa italiana contratada pelo Zoo de Los Angeles para documentar a captura dos animais.

O grande desafio é ver até que ponto Sean lhe permite a integração no grupo. Quando a encontra pela primeira vez, deitada na sua própria cama, Sean antevê o dramático desabamento do seu mundo; a estabilidade da família que chefiava parece posta em risco – e os seus receios, vemos mais tarde, têm razão de ser. D’Alessandro apressa-se a arranjar para si mesma uma alcunha “masculinizante”, “Dallas”, numa tentativa de jogar com a misoginia do “Big Bwana”. Pior do que ser uma mulher – outro animal selvagem difícil de domar… –, “Dallas” faz Sean recordar-se da sua ex-mulher, o que só amplia o seu mais terrível receio: voltar a apaixonar-se por alguém que o desconsidera. Esta é a segunda maldição de "Hatari!" que “Dallas” vai ter de quebrar, se quer ver o seu amor por Sean correspondido. A primeira, recordamos, traduz a impossibilidade da captura do rinoceronte. Podemos dizer que as duas são quebradas quase em simultâneo.

Quando “Dallas” mostra o seu amor pela vida em África e se torna mãe adoptiva de três pequenos elefantes órfãos é rebaptizada pelos autóctones de “Momma Tembo” (“Mãe dos Elefantes”), distanciando-se, deste modo, da imagem associada à ex-mulher de Sean, que detestava o modo de vida deste último. A permissão para amar “Dallas” é como que ritualisticamente atribuída a Sean. Ao mesmo tempo, sem que nada o fizesse prever, Brandy fica com “Pockets” (desfeminizando-o?), a personagem que parecia partir em desvantagem em relação a Muller e “Chips” na conquista do coração daquela. No fim, os homens, afagados pelo amor, já podem caçar o rinoceronte. Fecha-se o círculo com uma muito cómica reprodução do primeiro encontro entre Sean e “Dallas”.

O papel desestabilizador da mulher é outra marca que repetidamente encontramos nos filmes de Howard Hawks: por exemplo, em "Only Angels Have Wings" (1939), Jean Arthur chega, de visita, a um pequeno aeroporto localizado em Barranca, na Colômbia, e conhece o amor da sua vida, um piloto de coração empedernido interpretado por Cary Grant. A ele, como aos seus colegas, compete o transporte de correio através de um percurso de grande risco, pelas montanhas dos Andes. Jean Arthur vai desorganizar a vida desse grupo de homens, tal como “Dallas” em "Hatari!".

Noutros casos, como nas suas screwball comedies, Hawks inverte muitas vezes a relação de forças, transformando o homem no “sexo fraco”. É-lhe característico um irreverente “jogo de papéis” que funciona, muitas vezes, como pano de fundo dessa grande caçada que é o relacionamento entre homem e mulher.

Ler mais aqui: IMDB e Senses of Cinema.

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