"Uma Separação", filme que parece ter ganho tudo o que tinha para ganhar em matéria de festivais (o Urso de Ouro é o mais sonante prémio arrebatado) e ter reunido um consenso extraordinário junto da crítica internacional, chega às nossas salas, em vésperas de fim de ano, com a promessa de baralhar as contas dos balanços e balancetes que, por estes dias, divertem o espírito dos cinéfilos nacionais.
E baralha? Baralha, efectivamente. "Uma Separação" é um filme feito essencialmente de três elementos: uma escrita subtil, inteligente, profundamente equilibrada - sem histerismos - ou "formatações" melodramatizantes; uma câmara invisível que nos imerge suavemente na acção, aparentemente sem grandes compromissos diegéticos - à boa moda neo-realista, a câmara pode ou não apanhar algo "relevante", pode ou não "apanhar" uma história, mas isso não é de todo uma coisa certa -; e, por fim, um trabalho de actores, masculinos e femininos (premiados colectivamente em Berlim) que, este ano, apenas se poderá comparar a
"Sangue do Meu Sangue".
Aliás, é curioso surgir nestas linhas o último excelente filme de Canijo, na medida em que, apesar de partilharem no geral as mesmas intenções realistas, o filme de Farhadi constitui, em certa medida, uma alternativa no que aos dois primeiros elementos acima citados diz respeito. "Uma Separação" não "procura o drama", não se formata classicamente nos três actos, como Canijo faz em "Sangue do Meu Sangue", filme ainda tomado pelo projecto (quase teorizante) sobre o trágico português, obra com uma pulsão neo-clássica que resiste, muitas vezes, ao projecto realista tout court. Se a escrita é feita de subtilezas e momentos quase invisíveis, a câmara de Farhadi acompanha essa suavidade, ao se diluir nela - e o processo de diluição não é processo nenhum, porque entramos em "Uma Separação" como quem entra pela porta escancarada da sua própria casa.
Farhadi é iraniano. Em termos cinematográficos, isso faz, desde logo, toda a diferença. Como notava Rafi Pitts, outro excelente novo cineasta vindo de Teerão, a poesia está no sangue dos artistas persas, muito por causa, aliás, de uma instituição milenar no Irão chamada Censura, que não é, entenda-se, uma invenção recente de um qualquer regime autocrático comandado por um louco.
Farhadi, como aliás Kiarostami, por exemplo, não expõe o "país político" na sua literalidade - isso seria demasiado fácil e seria, aliás, anti-natura para o espírito tradicional mas não necessariamente tradicionalista do "poeta persa". O que Farhadi faz, inteligentemente, sem sair do microcosmos familiar - a grande "célula tradicional" da sociedade, apetece acrescentar, de qualquer sociedade, vide de novo o último Canijo - é tocar nas diferentes camadas que dimensionam, em toda a sua complexidade, a
vida iraniana. E o que está mais próximo da vida do que a vida vivida, o fluxo contínuo, "levemente" acidentado, do quotidiano?
"Uma Separação" não podia ser um filme só sobre "uma separação"; tinha de ser - ao mesmo tempo - uma obra sobre as causas e efeitos dessa separação e sobre essa separação como um processo não só judicial, mas também religioso, social, cultural e - não esquecer - afectivo. Claro que, como bem demonstra Farhadi, qualquer uma destas dimensões engole as demais: por exemplo, fica claro como o processo social engloba o cultural e o religioso ou o processo afectivo engloba o judicial ou
o processo judicial engloba o cultural ou até o religioso. Exemplos?
Sociedade e religião. Atente-se no momento em que a empregada, recém contratada, se vê deparada com uma situação do "dia-a-dia", para o caso, uma tarefa laboral que precisa de uma resposta sua, mas para a qual esta se petrifica pela eventual heresia que constitui - à luz das Leis do Corão. Limpar as partes baixas, sujas de mijo, de um idoso que sofre de Alzheimer. A mulher, muito devota, recorre a um número de assistência religiosa para saber se é ou não é pecado "ver ou tocar" no idoso. O problema resolve-se - naturalmente e sem "histerismo denunciante" - mas Farhadi expõe neste momento um dos embates diários do Irão contemporâneo: o social é o idoso, homem que padece de uma grave doença degenerescente com nome estrangeiro (moderno), o religioso é a empregada devota que não sabe ao certo se pode desempenhar as funções para a qual se candidatou à revelia do marido, figura ainda tutelar no Irão (ups, já estamos no social outra vez...porque, como ficamos a saber, a mulher tomou a iniciativa de ir trabalhar, devido à situação laboral, muito precária, do seu marido).
Outro momento, ainda mais significativo no filme, que resume, e que na realidade vai mais além, o confronto entre sociedade e religião é aquele em que o protagonista pede à mulher devota para jurar sobre o Corão "algo que não está certa ter acontecido".
Sociedade, religião e justiça. Naquele momento, tudo depende do juramento religioso: o marido ficará com o dinheiro do protagonista e pagará as suas dívidas; o protagonista e a sua família fica, por sua vez, cientes do grau de certeza da "queixosa"; e a alegada "vítima", a empregada devota, entenda-se, sobe, enfim, para o último degrau do "processo social e judicial" iniciado: precisamente, o degrau do Corão, pilar ético e moral que serve de regulador último de uma espécie de "economia da verdade", que, bem visto, existe, tem de existir, em qualquer sociedade no mundo. A questão da verdade, da mentira e do segredo abre outro subcapítulo nesta história.
Sociedade, religião, justiça e cultura/educação. A filha do protagonista é a personagem mais arguta delas todas. Percebemos isso logo quando o pai, acabado de se separar, pergunta qual o "programa certo" da lavagem da roupa. Ela responde: deve ser o quatro, porque as letras no botão estão mais gastas. Fica claro aqui que ela mais do que o clássico elemento que está "entre" o casal, elemento passivamente disputado numa situação de divórcio; fica claro, digo, que ela é a grande "reguladora" desse conflito, potencial mediadora e "negociadora" do mesmo. E é neste papel de "negociadora" que a rapariga introduz o tema da verdade para lá do domínio religioso e judicial: quem mente, quem diz a verdade nos "processos em curso"? O que significa mentir no quadro da sua educação altamente zelosa e proba, proporcionada pelo seu empenhado pai e a sua mãe, professora de profissão? O que significa confessar uma mentira para defender os assuntos do coração, para defender "os seus"? É pecado, é justo, é correcto? A ordem de prioridades, nesta rapariga que pertence a um meio social totalmente diferente da empregadita devota, é radicalmente outra: primeiro importa saber se, objectivamente, é correcto mentir (plano cultural e afectivo); depois se é justo mentir (plano judicial); e, talvez em último lugar, se é pecado mentir (plano religioso). A ordem é diferente, mas a ordem é a mesma - e é essa ordem, mais latamente moral, que liga a família rica e culta à família necessitada e ignorante.
De tal maneira é a mesma, de tal maneira é diferente, que a rapariga descarta facilmente a questão religiosa da mentira para se comprometer silenciosamente com o pai num pacto "judicialmente corrompido", mas afectiva e culturamente "correcto": mentirei por ti, porque és meu pai, porque sei que és bom, porque sei que me amas e porque sei que te amo (A empregada devota acaba por não conseguir descartar a dimensão que encima a sua ordem de valores: a dimensão religiosa. Por isso, recusa-se a prestar juramento. Por isso o "castelo de cartas" desaba.) Não tenho dúvidas que é nesse momento - nesse compromisso na e pela mentira "correcta" - que a rapariga fortalece ainda mais o laço com o pai; e é também a partir daí que a sua mãe, detentora de todas as "verdades", se torna um elemento "distante e estranho".
A resolução - passada no tribunal - é deixada ao espectador, que, com a sua muito particular - ou não - ordem de valores, tomará a decisão correcta, mais justa e mais pura. Aliás, com todas as certezas, tomá-la-á assim mesmo ou, antes, por uma outra ordem. Uma coisa fica clara: este filme sobre "uma separação" demonstra que, na vida, não há separações absolutas, isto é, nada aparece separado do resto. E é entre o nada - da vida vivida - e o resto, que é tudo, do Irão contemporâneo que se estende, em silencioso ziguezague temático, dramático e ideológico, este portentoso filme de Farhadi.