Existe mesmo uma dialéctica curiosa entre a câmara de Cantet e os protagonistas das suas histórias: a primeira procura reflectir uma realidade em bruto - racionalizante ou meta-documental -, já os segundos atraem a primeira para uma dimensão mais interior, quase psicológica, da narrativa. Como se Cantet filmasse um documentário "na" ficção ou no intervalo difuso que separa esses dois “mundos”: por exemplo, o professor de “Entre les murs” (François Bégaudeau) foi de facto professor na vida real e interpreta o protagonista de um livro (autobiográfico) que escreveu chamado “Entre les murs”. Obra que, agora, se adapta ao cinema. E a câmara está lá para documentar.
Pronto, depois de tantas reflexões circulares, que podem confundir mais do que esclarecer, apetece-nos recomeçar: “Entre les murs” é a depuração do método de Laurent Cantet, um dos poucos cineastas preocupados com o que se passa na sociedade em que vive e com coragem suficiente para a mostrar em toda a sua complexidade. Isto é, quase nua. Só assim acreditamos no que vemos: a turma não é apenas um grupo de selvagens dos bairros sociais e o professor não é a Michelle Pfeiffer de "Dangerous Minds" (1995). O professor François não resolve o problema da educação na Europa e no mundo. Por isso, não vale a pena irmos ver este filme na esperança de encontrar um remédio milagroso que acabe com o mal-estar social que, todos os dias, se densifica numa qualquer sala de aula.
O velho cliché assenta que nem uma luva: não saímos indiferentes da sala, depois de vermos “Entre les murs”. E os minutos finais, cheios de mixed feelings, estão lá para isso: o professor, que aprendemos a amar, joga futebol com os seus alunos, usufruindo de uma amarga, porque momentânea, "paz social" que foi conquistada graças ao sacrifício de alguém que já não cabia no sistema. Ele festeja com os seus alunos o fim de mais uma batalha (leia-se, ano lectivo), cujos efeitos estão bem representados no último plano do filme.
Já na aula de despedida, François parecia ter conseguido (finalmente!) dialogar com os seus alunos. Pela primeira vez, um deles, uma rapariga, sente confiança para falar com ele. Confessa-lhe envergonhada que, ao contrário dos seus colegas, está certa de que não aprendeu nada naquele ano e dificilmente aprenderá no futuro. O nosso sentimento é, mais uma vez, contraditório: a aluna que se descobre totalmente descrente no sistema de ensino mostra ser, exactamente por isso, aquela que mais cresceu, durante todo o filme. O que a angustia é a ignorância, a impotência que sente em si e nos professores que a rodeiam. Ela é, de entre todos seus colegas de turma, até os mais problemáticos, a única que consegue de facto agitar o sonho idealista do professor François - mais uma daquelas subtilezas graves de Cantet.
“Entre les murs”, fazendo uso do seu título enclausurante, coloca o espectador nesta situação complicada: temos de sair da sala - de aula ou de cinema - a pensar no que vimos. Essa é a única inescapabilidade que nos oferece este magnífico exemplar do cinema social de Laurent Cantet.
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1 comentário:
Obra-prima! Melhor que Entre les murs, este ano, só o filme do PTA.
abraço ;)
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