segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Suddenly, Last Summer (1959) de Joseph L. Mankiewicz

Publico aqui uma versão adaptada do artigo que acaba de sair na Red Carpet de Setembro.

(...)

"Suddenly, Last Summer" (1959) é uma das “peças filmadas” mais celebrizadas de Joseph L. Mankiewicz. A confluência de talentos neste filme desorienta qualquer cinéfilo: para além do posto de realizador, atribuído ao autor de clássicos como "The Ghost and Mrs. Muir" (1947) e "All About Eve" (1950), destaca-se o argumento de Tennessee Williams e Gore Vidal, com base numa peça do primeiro, e um dos melhores elencos dos anos 50 (Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor e Montgomery Clift). Tem um número limitado de actores e é filmado sobretudo em interiores, dois aspectos típicos no cinema de Mankiewicz, que, neste caso, ajudam a criar a atmosfera ideal para o pretendido anti-“conto de Verão”.

Aqui, “a estação de todos os amores” serve de pano de fundo a uma viagem mental pela história nebulosa de uma personagem-fantasma, Sebastian Venable. Conhecemo-la unicamente a partir de conversas e das marcas profundas que o seu desaparecimento deixou em familiares próximos, entre eles, a sua mãe: a senhora Violet Venable, uma “Deusa louca” incarnada por Katharine Hepburn. Quando esta pede ao doutor Cukrowicz (Montgomery Clift) para fazer uma lobotomia à sua sobrinha, Catherine Holly (Elizabeth Taylor), já nós estamos pouco certos da sua sanidade mental. A forma convulsa como profere palavras de veneração dirigidas ao seu falecido filho parecem sufocar-lhe a alma com a mesma intensidade com que a afastam da realidade.

Com efeito, o mundo de Violet ergue-se, logo no começo do filme, em altura: vemo-la a descer, majestosa, do ascensor que mandou instalar na sua mansão. Este fá-la subir ao primeiro andar (o céu) com a mesma facilidade com que a devolve ao andar zero (a terra) para mais uma incursão bigger than life pela mundanidade. A sua admiração pelo filho morto é perturbante: um misto de endeusamento com amor incestuoso. Diz que Sebastian era um grande poeta e que, um dia, este viu a face de Deus. Cukrowicz assiste a tudo isto, passivo, provavelmente, interrogando-se sobre as causas da morte de Sebastian e até que ponto estas terão alguma ligação com o (suposto) enlouquecimento de Catherine.

As dúvidas que nós sabemos que Cukrowicz tem na sua cabeça – espécie de enigma clínico, qual thriller freudiano – são as mesmas dúvidas que nos assaltam o espírito. A partir deste momento, a câmara de Mankiewicz posiciona-se ao nível dos olhos da persona de Montgomery Clift, como se estes fossem a fechadura pela qual nós, espectadores, espreitamos a realidade das (outras) personagens.

Esta omnipresença/omnisciência é tanto mais interessante quando sabemos, pelas palavras de Violet, que Cukrowicz incarna muito do que Sebastian foi. Com efeito, no momento em que Catherine acusa Sebastian de a ter usado e amado “à sua maneira”, o médico depara-se com um dilema terrível: ou aceita a chantagem de Violet e faz uma operação de alto risco, totalmente injustificada, ao cérebro de Catherine, em troca de dinheiro para a construção de um novo hospital ou rejeita o dinheiro de Violet e, preservando a sua ética profissional, não realiza a dita lobotomia.

Em certo sentido, Cukrowicz tem duas opções à sua frente: ajudar Catherine a ultrapassar, por si, o trauma que a persegue ou usá-la, tal qual como Sebastian fazia, em benefício “da sua arte”, que é como quem diz “amar ou não amar Catherine”.

(...)

"Suddenly, Last Summer" cheira a morte, desde as primeiras imagens: Cukrowicz mostra como se faz uma lobotomia a uma assistência formada por médicos, no precário hospital estadual de Lion’s View. Quando se prepara para fazer uma incisão no cérebro da sua paciente, um som de madeira a rachar faz estremecer os presentes, sugestão enganosa de que algo possa ter corrido mal. O auditório, parcialmente construído em madeira, parece desfazer-se lentamente, à medida que o jovem médico realiza a sua intervenção de risco. As más condições não impediram que o brilhante neurocirugião conseguisse fazer, com sucesso, a lobotomia. Apesar disso, o maior desafio daquele dia estava ainda para vir: visitar a senhora Violet. Na sua sumptuosa mansão, esta convida Cukrowicz para um passeio no seu não menos majestoso jardim, uma das criações geniais de Sebastian.

A meio da conversa com Cukrowicz, Violet coloca uma mosca morta na boca de uma planta carnívora – um dos hobbies naquela casa sempre foi alimentar “a dama” com suculentos insectos cuidadosamente seleccionados. A planta funciona como aperitivo para a proposta que levou a extravagante magnata a escrever uma carta a Cukrowicz, pedindo-lhe que a visitasse: a escandalosa chantagem em torno da (suposta) doença mental de Catherine é a primeira forma de canibalismo em "Suddenly, Last Summer".

As recordações do seu filho morto invadem a alma de Violet, enquanto esta percorre os caminhos verdejantes – algo “assustadores”, murmura para si Cukrowicz – desse templo vivo consagrado à memória de Sebastian, o homem que um dia viu Deus. Não exageramos nas palavras: de acordo com a própria mãe, Sebastian um dia declarara-lhe que vira a Sua face. Numa viagem que os dois fizeram às ilhas Galápagos, no Pacífico, o filho levou a mãe para uma zona costeira, com a intenção de contemplar um cenário dantesco produzido pela natureza.

Qualquer coisa de tão terrível que abalaria a moral humana e provaria que os valores que prezamos – como o amor, a paz e a solidariedade – não passam de um engodo que o Homem colocou a si mesmo para evitar o confronto cru com a terrível Verdade. As picadas de “pássaros devoradores” que dilaceram, na praia, a carne de pequenas tartarugas-do-mar acabadas de nascer são uma visão do inferno para nós, mas “a visão de Deus” para Sebastian. Violet diz que só percebeu isso agora: todos nós (as moscas, as tartarugas-do-mar e o Homem) somos presas de uma criação devoradora (a planta carnívora, os pássaros, Deus… e o próprio Homem). Um esqueleto com asas de anjo divide o plano em que Cukrowicz, o médico, o cientista, o agnóstico, pergunta a Violet se esta acredita que Sebastian viu, de facto, Deus. Esta responde que passou a acreditar, desde o último Verão…

A cena do encontro entre Cukrowicz e Catherine, num hospital de freiras, poderia perfilar entre o melhor Bergman: a sobrinha de Violet discorre sobre as lembranças que lhe vieram ao espírito, desde que perdeu a memória naquele dia fatídico. Flashes de uma tentativa de violação de que foi vítima, numa Primavera passada, misturam-se com os factos de Cabeza de Lobo, povoação perdida onde o protagonista ausente morreu ou foi morto. Catherine está lúcida, mas perturbada. O seu estado não é tão grave como o da sua tia Violet; logo, a hipótese da lobotomia surge como um pau de dois bicos para o jovem médico.

Sem saber ao certo o que fazer, Cukrowicz transfere Catherine para o hospital de Lion’s View. Lá, a rapariga, pensando que está a ser usada, tenta o suicídio, uma espécie de mergulho num lago humano feito de doentes mentais crónicos. A morte chega pouco depois – o esqueleto com asas de anjo volta a aparecer, desta feita, à direita da imagem –, na magnificamente filmada/montada cena da epifania de Catherine. Quando a câmara penetra na sua mente, como um bisturi, o ecrã divide-se em dois: de um lado, a expressão dolorida de Catherine e, do outro, Cabeza de Lobo. Bruscamente, ficamos a saber o que aconteceu naquele Verão. Qualquer coisa de terrível, que dificilmente caberia nestas linhas...

Ler mais aqui: IMDB e Senses of Cinema.

2 comentários:

spring disse...

De todas as obras que levaram o génio de T.Williams ao cinema,a triologia composta por "Bruscamente no Verão Passado", "A Noite da Iguana" e "Algemas de Cristal" as que nos oferecem o retrato mais perfeito/fiel do dramaturgo. Se nas duas primeiras temos dois grandes cineastas, já na última com o Paul Newman atrás da câmara, descobrimos um cineasta no verdadeiro sentido da palavra. Uma reposição que se impõe.
Abraço cinéfilo
Paula e Rui Lima

Anónimo disse...

Excelente filme! Não têm mais nada ser comentado. Parabéns!

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...