sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Sullivan's Travels (1941) de Preston Sturges

Publico aqui uma versão adaptada do artigo que escrevi para o site da Red Carpet e que pode ser lido neste link.

É recorrente nas análises aos filmes de Preston Sturges a referência a uma série de nomes associados à comédia clássica de Hollywood. Os mais citados são os dos mestres do género Ernst Lubitsch, Billy Wilder e, reservando o seu extraordinário eclectismo, Howard Hawks. O genial "The Palm Beach Story" (1942) e o menos conseguido, algo sobrevalorizado, "Lady Eve" (1941) são dois exemplos do estilo cómico de Preston Sturges, mas, a nosso ver, não abrangem com rigor a outra referência cinematográfica que sobressai em parte da sua filmografia: Frank Capra. "Christmas in July" (1940), “The Great McGinty” (1940) e "Hail the Conquering Hero" (1944), três retratos doce-amargos sobre zés-ninguém candidamente iludidos/embriagados por uma fama repentina, podem ser descritos como três filmes competentes, não mais, que Frank Capra não teve tempo de realizar.

Como se vê, falar de Sturges é inevitavelmente falar de outros realizadores do seu tempo. O facto de ser um nome menos sonante que qualquer outro que acima citámos talvez se deva à forma como a sua carreira sempre oscilou entre outros cinemas, o que terá dificultado, de alguma maneira, a afirmação da sua singularidade no seio de uma certa memória cinéfila. Assim sendo, é numa espécie de reinvenção dos registos dominantes que compõem a identidade do seu cinema que nasce um dos seus filmes mais frescos e acutilantes: "Sullivan's Travels" (1941), um filme de Sturges sobre a preparação de outro filme realizado por Sullivan, personagem interpretada pelo seu actor favorito, o grande Joel McCrea.

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John Sullivan é um famoso realizador de comédias em auto-questionamento sobre o sentido daquilo que faz. Segundo este, já não há espaço para o humor inconsequente num mundo marcado pela guerra e a pobreza; onde “a realidade” se tornou num “elefante” grande demais para ser ignorado. E daí a urgência de um cinema atento aos problemas da sociedade. Mas como pode um homem que viveu nas melhores casas, frequentou os melhores colégios e nunca fez outra coisa que não ganhar muito dinheiro com comédias de riso fácil ousar fazer um retrato rigoroso daquilo que é a verdadeira América? Nem Sullivan acredita em si mesmo, depois de ser chamado à razão pelos seus produtores. Contudo, como é sabido, não há obstáculos que se interponham entre um realizador ambicioso e as suas convicções: “não tenho a experiência do mundo real? Ok, então arranjo uma”.

Sullivan decide mascarar-se de sem-abrigo, viajar sem qualquer documentação pela América e, com isto, levar uma boa injecção de “realidade” no seu espírito impoluto. Quem o rodeia, agentes, mordomos, empregados, cozinheiros, não acredita que Sullivan aguente muito tempo longe da sua vida paradisíaca na “terra de todos os sonhos”. De facto, no começo desta aventura, Hollywood afigura-se como uma fatalidade para Sullivan.

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A primeira investida deste corajoso – ou louco? – viajante pelo “real” sai gorada quando entra em cena Veronica Lake, uma louraça ofuscantemente bela que, por acaso, é uma actriz à procura de emprego e que, movida por um ataque de filantropia ou empurrada pela mão do destino, é acometida pela ideia estuporada de pagar o pequeno-almoço a um atraente vagabundo: sim, John Sullivan. O nosso herói fraqueja perante a deslumbrante Veronica Lake e revela a esta a sua verdadeira identidade, tal como os objectivos da sua (ainda muito curta) aventura. A jovem beldade comove-se com a rebeldia e determinação do cineasta e decide embarcar com ele numa segunda investida. De qualquer modo, não foi à primeira, nem será à segunda, que John Sullivan conseguiu escapar a Hollywood. Na realidade, vários serão os passos em falso neste seu projecto por uma nova mundividência.

Existe uma equivalência quase perversa entre o que Sullivan representa e a moral hollywoodiana. Produto de um sistema de princípios estandardizados – as hierarquias de poder, os códigos de decência, os géneros e os clichés… –, o protagonista de “Sullivan’s Travels” traduz uma das mais brilhantes desconstruções metonímicas de Hollywood. A primeira metade do filme é ocupada pelas tentativas falhadas de Sullivan em se libertar do meio cinematográfico, que aos seus olhos se vai revelando lentamente como uma ilha num mundo áspero e difícil. A realidade é o seu “Eldorado criativo”, mas para lá chegar Sullivan terá de percorrer um percurso tortuoso, justo para quem subestima a pobreza ao ponto de achar que a pode “comprar” ao virar da esquina.

Toda a sequência que começa com Sullivan a distribuir indiscriminadamente notas de cinco dólares pelos pobres que encontra nas ruas põe em monstruosa evidência a atitude paternalista dos que têm tudo face aos que nada têm. O castigo vem logo a seguir naquela que é, para nós, o mais brutal e imisericordioso retrato da ganância humana: de noite, um mendigo curva-se, sobre os carris, para apanhar cada uma das notas que roubou a Sullivan, sem se aperceber de que está a segundos de ser triturado por um comboio que se aproxima a alta velocidade…

A primeira morte de “Sullivan’s Travels” é o seu primeiro momento puramente não-cómico, que sela, por isso mesmo, a passagem de Sullivan para o tão apetecido reino da “verdade pura e dura das coisas”. Deixa de fazer sentido falar-se de Capra e, ainda menos, de Lubitsch quando o herói deste filme se transforma numa pessoa de carne e osso sujeita aos azares de gente comum. Sullivan sai dessa prisão chamada Hollywood para entrar, de seguida, metafórica e literalmente, na prisão da vida real, onde é tratado como um cão… mas não por toda a gente. Nos lugares mais horríveis e degradantes, Sullivan encontra pessoas com uma generosidade e um “amor à vida” que o deixam confuso. É com estas pessoas que aprende a lição da sua vida.

No fim, Sullivan percebe que não tinha razão quando apelidava de “inconsequentes” as comédias que o celebrizaram; entende, finalmente, que para muita gente, sobretudo, para as pessoas a quem a vida nunca sorriu, o riso é uma preciosa fonte de distracção. Agora estava pronto para voltar ao mundo do cinema e mantê-lo tal qual como o deixou. Sturges sublinha com esta conclusão a importância institucional do cinema, sem, com isto, o menorizar minimamente enquanto forma de arte: afinal, ele é o meio por excelência que concede a todos nós, ricos e pobres, a possibilidade de sonharmos (de olhos abertos) para lá da realidade.

Ler mais aqui: IMDB.

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