quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Milk (2008) de Gus Van Sant

Aos 40 anos, Harvey Milk não tinha feito nada que se orgulhasse. Tinha 39 anos quando trocou conversa, pela primeira vez, com o homem que viria a ser o amor da sua vida, Scotty. Aos 40 anos, já o tinha na cama consigo. Tudo isto em apenas um dia, mas não um qualquer: 22 de Maio de 1970, Harvey fazia anos e decidia mudar de vida. Pela segunda vez - ou verdadeiramente pela primeira? - este homossexual de pais judeus, nascido e criado na "maior democracia do mundo", saía do armário. Castro Street foi onde Milk e Scotty montaram aquele que viria a ser o centro nevrálgico de uma das mais espontâneas, e corajosas, carreiras políticas na história recente da América.

Foi aí, cidade de São Francisco, estado da Califórnia, que a América ganhou um dos seus mais bem sucedidos activistas gays; o primeiro a empossar num cargo público, para mais, tão importante como o de supervisor municipal. O filme de Van Sant começa com uma história de amor e não a abandona. Ela não é usada como um elemento humanizante, puramente circunstancial, numa não-ficção sobre os bastidores, muito escorregadios, do mundo da política e, à retaguarda, de tudo aquilo que significa ser norte-americano.

O amor é o elemento estruturante da ética, da política apetece dizer, de Harvey Milk. Na cena em que este fala ao telefone com Scotty, percebemos isto. Para chegar àquele "momento" em que finalmente é um pouco mais livre para sentir (e daí as lágrimas), Milk teve de percorrer a história mundial dos preconceitos; lutar contra os falsos-valores profundamente empedernidos numa sociedade tornada cativa de uma ideologia exclusivista e, ulteriormente, autofágica; e pedir a todos os gays para se confrontarem com os seus fantasmas interiores e saírem do armário.

Uma correcção: não foi "pedir", mas sim ordenar sob a forma do slogan com o qual costumava abrir os discursos: "Eu recruto-vos!". Mas Gus Van Sant não tenta fazer de "Milk" um panfleto a favor da causa homossexual ou da glorificação incondicional de Harvey Milk; o recrutamento que Milk faz dentro do filme, pelo coração, pela razão e pelas palavras, não é o mesmo que faz através da câmara-filtro de Van Sant, junto do espectador de hoje.

Com efeito, este regresso do realizador de "Paranoid Park" ao mainstream faz total sentido: em "Milk" também recai o olhar crítico, distante e razoável, que era tão perturbante em "Elephant", o seu outro "filme político" que, numa grande elipse, abria o ventre de uma sociedade moralmente asfixiante. É que em 2003 a América estava entregue a si mesma, tal como os adolescentes eram filhos de pais ausentes ou problemáticos.

"Elephant" recriava Columbine mas tinha em mente a "América órfã" de George W. Bush. O mesmo acontece em "Milk": a América que muda em 1973-1978 é a mesma América que hoje, em 2009, se transforma aos nossos olhos. Harvey é a figura paterna que os gays americanos procuravam, tal como Barack "black Milk" Obama - "hope", "change", onde é que já ouvimos isto? - acaba de ser perfilhado como o pai da América e do mundo! O cinema de Van Sant não podia ficar indiferente a tudo isto.

E daí esta sua emigração para o mainstream, primeira linha de um novo capítulo na sua obra: a celebração dos bons homens e dos grande ideais. Fazendo aquilo que mais gosta - dirigir homens numa história política de amor -, Van Sant dá o grito que desperta finalmente a América (de "Elephant") do torpor em que estava mergulhada: é para lhe darmos eco que "Milk" (o filme, a personagem, um grande Sean Penn) nos recruta.

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sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Carmen Jones (1954) de Otto Preminger

"Carmen Jones" (1954) é uma das grandes subversões de Otto Preminger: uma actualização da famosa ópera de Georges Bizet que inclui apenas actores afro-americanos no elenco. O filme tem o nome da sua protagonista, portentosamente interpretada por Dorothy Dandridge.

Poderoso, e precoce, símbolo da emancipação feminina, Carmen é a Diane de "Angel Face" e a Linda Darnell de "Fallen Angel" (nunca a de "Centennial Summer"); é uma femme fatale temperamental que odeia compromissos e que vê no ideal dominante de família um inaceitável regime prisional. Joe (Harry Belafonte), o miliar que se apaixona por ela, demora a perceber que Carmen não é mesmo uma mulher como as outras: gosta de passear solta, sem freios, pelas ruas de Chicago e não gosta de dançar sempre com o mesmo homem ou de viver eternamente no mesmo sítio.

Carmen não é só a mulher que dá nome, e protagoniza, este robusto musical de Otto Preminger; ela é, de facto, o filme. Ver "Carmen Jones" é passar pela experiência de ser Carmen. A câmara de Preminger é perfeita para tal; sempre em movimento, quase "aquática" (palavra roubada a Godard), passa de décor em décor com uma suavidade e "sentido de liberdade" notáveis. Não se acanha perante as sumptuosas pernas de Dandridge, os seus olhares provocadores e os seus modos, para a época, no limiar da lascívia.

A entrada em cena de Carmen diz tudo: a partir daí, o espectador como o pobre Joe já não poderão ficar indiferentes à sua presença. Imediatamente, embarcamos numa grande aventura amorosa construída em arco: traição, amor e morte. A música, sempre trágica, atravessa a narrativa como uma flecha.

Monumental o plano que enquadra o presidiário Joe, de tronco nu, a cantar o amor por Carmen; engenhosa a forma como duas, três personagens trocam "diálogos cantados" sem sair do mesmo plano e extraordinariamente sensual a imagem de Carmen a provocar o "foragido" Joe com as suas pernas. A mulher manda aqui: os homens rastejam por ela e sonham com o exclusivo do seu amor. Com efeito, um sonho que pode levar à loucura e depois à morte.

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quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Centennial Summer (1946) de Otto Preminger

Aquela fantasia que praticamente todos os realizadores têm de fazer um musical não deveria ser tão forte em Otto Preminger. Ele próprio assumia-se como alguém com "mau ouvido", mas não podia negar o facto de ter bom gosto musical (Duke Ellington em "Anatomy of a Murder") ou de saber como escolher os compositores para os seus filmes (por exemplo, Dave Raksin e Dimitri Tiomkin). Também não podia negar outra coisa: a música está no modo como filma, na forma como usa a grua ou se movimenta no compasso dos actores. O bailado está sublimado em cada gesto, cada passo das suas personagens. Mas, atenção, tudo leve e invisível, ou melhor, sem a pompa onanista de um Max Ophuls ("Madame de...").

E isto para dizer o quê? Bem, se calhar para apresentar "Centennial Summer" (1946), o seu primeiro musical produzido para a 20th Century Fox, que marca uma interrupção na sua bem lançada carreira no noir. Depois do genial (em cada frame) "Fallen Angel", nasce este projecto e, depois, o filme que Otto Preminger mais odiou fazer: "Forever Amber", iniciado por John M. Stahl e continuado, em completo contra-gosto, pelo realizador austríaco. Falemos aqui do primeiro.

A história situa-se na segunda metade do século XIX, em Filadélfia, durante as comemorações do centenário do Tio Sam. Ao mesmo tempo que a cidade se prepara para a grande festa, a família Rogers recebe a tia Zania Lascalles e o francês Philippe Lascalles vindos de Paris. Estas duas personagens vêm desorganizar a vida, sobretudo, os amores no seio do agregado: a tia intromete-se entre o casal mais velho, sendo o pai de família interpretado magnificamente por Walter Brennan, e o jovem parisiense (Cornel Wilde) mete-se entre as duas filhas, sendo que uma delas (Linda Darnell) já estava comprometida com um dos primeiros obstetras do país.

A música ocupa um lugar muito específico, nada supérfluo, na narrativa; aliás, Preminger acaba por conter o espírito delirante do musical clássico, quando integra a música na própria condução da história e não como um inútil "efeito extra-diegético". É, por isso, um musical levado ao seu mínimo, sem grandes canções ou monumentais coreografias. Na realidade, estas últimas são apenas executadas pela câmara, que na grua sobrevoa a multidão envolvendo o espectador num bailado metafísico com as imagens.

Para além disso, "Centennial Summer" é um regresso feliz de Preminger à comédia, lugar onde iniciou a sua carreira em Hollywood (pela mão de Lubitsch). O humor está sobretudo em Walter Brennan e na forma como os vários triângulos amorosos se vão enredando, mas este é um Preminger de estúdio, bem comportado ou politicamente correcto: nele, o amor é um jogo naive, isto é, de "consumo rápido" para as adolescentes de 1946. Por outro lado, como "filme histórico", "Centennial Summer" não consegue fugir da pedagogia que esconde mal a moral puritana da época: no século XIX como no século XX, o trabalho não é coisa para mulheres e a estas apenas se pede que encontrem (a qualquer custo, como se vê no desfecho da história de Linda Darnell) o seu "princípe encantado".

Ou seja, e em suma, enquanto comédia, "Centennial Summer" deve tudo a Walter Brennan; enquanto musical, deve tudo à câmara de Preminger e, enquanto filme histórico banal e "instrutivo", deve tudo a todos, especialmente ao establishment de Hollywood (Darryl Zanuck à cabeça) e à moral dominante dos anos 40. A ver com tudo isto em mente.

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Üç maymun (2008) de Nuri Bilge Ceylan

Sem pensarmos muito, diríamos que o último ensaio audio/visual de Ceylan é um exercício de terror como "A Hora do Lobo" (1968) o foi para Ingmar Bergman. "Três Macacos" não é "cinema de género", mas as suas fortes marcas autorais estão aqui empregadas no sentido de uma reinterpretação do receituário de um género que é, em si, eminentemente experimental: o terror.

Com base numa premissa thrillesca, a lembrar Hitchcock ("Strangers on a Train"), Ceylan começa a tecer, com imagens e sons, uma atmosfera lancinante, tão aguda quanto insuportável. Desde logo, porque o filme se divide entre duas prisões: a propriamente dita, onde o pai sacrificial passa os seus dias para encobrir um crime do seu patrão, e o apartamento suburbano onde mãe e filho esperam pelo regresso daquele. Até aqui, a tensão é sobretudo espacial: a câmara filma, em planos apertados "entre divisões", as personagens a sufocar de calor num ambiente insalubre - um Verão doentio... -, ao mesmo tempo que estas, fora de portas e sem conhecimento mútuo, se vão afundado em esquemas obscuros.

A "fisicalidade" destas cenas lembra outra excelente criadora de atmosferas (e imagens): Lucrecia Martel. Mas, a nosso ver, Ceylan consegue ir mais longe, na sua falsa-crueza e desassombrada frontalidade. Em primeiro lugar, este é um filme que se povoa literalmente de fantasmas: um ente querido, um filho/irmão que morreu misteriosamente, passeia-se pela casa minúscula, comunica e dorme com os vivos e, acima de tudo, toca neles. São imagens perturbantes que lembram as histórias de fantasmas de Shindo ("Onibaba") ou Teshigahara ("Otoshiana"), mas sem uma gota de sensualismo e instiladoras de uma sensação torturante de impotência. Como se o sonho-pesadelo que o protagonista de "Climas" tem na praia se prolongasse, agora sem interrupções, em todo um novo filme: "Três Macacos".

Em segundo lugar, e queremos sublinhar esta ideia, Ceylan supera-se na montagem dos sons: os que ouvimos e os que não ouvimos. A ventoinha, as portas que se abrem e fecham, o vento que arromba janelas, o comboio que passa e os trovões que lançam o filme para a escuridão do genérico (espécie de blackout pós-orgânico). As imagens alternam em função desta narrativa sonora, que se vai impondo como o esqueleto de "Três Macacos": de tal modo que, quando estes efeitos sonoros estão ausentes, o "chão" do filme parece-nos fugir numa vertigem.

A inacção do som provoca, a certa altura, uma das sensações mais terrificantes que experimentámos em cinema: uma ameaça de suicídio, e um corpo que se estatela no chão que não ouvimos. Assistimos a esta sequência pelos olhos de outra personagem, numa evocação/invocação do típico voyeurismo hitchcockiano, mas com os "ouvidos do filme": cairá, não cairá? Aquele corpo não, mas já há muito que "Três Macacos", super-organismo de som e imagem, caiu violentamente em cima do espectador. Para quem tem estômago - nós tivemos -, é uma experiência singular.

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A irritante moda dos cineastas que dizem não se interessar por cinema

Woody Allen, "Annie Hall"

(...) the fact that I see so many films really seems to amaze certain people. Many filmmakers pretend that they never see anything, which has always seemed odd to me. Everyone accepts the fact that novelists read novels, that painters go to exhibitions and inevitably draw on the work of the great artists who came before them, that musicians listen to old music in addition to new music... so why do people think it's strange that filmmakers - or people who have the ambition to become filmmakers - should see movies?

Jacques Rivette, «The Captive Lover», in Senses of Cinema

Considera-se um cinéfilo?
Bem! Espanto-me sempre por encontrar pessoas que trabalham no cinema e não conhecem nada dele. Encontramos os dois extremos. Há pessoas apaixonadas pela história do cinema, como Martin Scorsese, que é capaz de nos dizer que filme George Marshall fez em 1938. E há responsáveis dos estúdios, aqui, que nem conhecem o nome de George Marshall. Quanto a mim, fui sempre fã de Destry Rides Again.

Clint Eastwood, Um Homem com Passado (Cinemateca)

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

The Curious Case of Benjamin Button (2008) de David Fincher

Continua a parecer que David Fincher é incapaz de fazer um mau filme. Mesmo quando aceita realizar um filme tão complicado como este, mesmo quando metade desse filme é uma evocação, pouco original, da fábula moderna "Forrest Gump". "The Curious Case of Benjamin Button" é como o seu protagonista: à medida que avança no tempo, ganha vigor e aproxima-se do melhor que conhecemos do realizador de "Se7en". Na segunda parte - quando Benjamin tem o corpo de Brad Pitt - Fincher quase que nos consegue fazer esquecer das opções fáceis, e algumas quase inestéticas, que toma logo no começo do filme: os múltiplos flashbacks (ainda assim, há Elias Koteas) e as personagens unidimensionais, com lição de moral na ponta da língua.

Claro que este filme podia ser uma experiência de cinema mais completa, e até ousada, se apostasse numa radicalização das suas duas partes; se mandasse o "Forrest Gump" para as urtigas e imprimisse realismo na infância de Benjamin - lhe desse dureza em vez de rosas (se se ouvisse "My Body is a Cage" e não a insossa banda sonora de Alexandre Desplat) - e deixasse a segunda parte próxima de como está: uma estupidamente arrebatadora história de amor, sem limites no seu estonteante idealismo.

Caramba, Blanchett e Pitt, um hino à beleza plástica e aos beijos na praia ou ao entardecer. Com aquela "primeira parte", Fincher teria de todos nós a permissão para ser piroso, para elevar ao infinito aquele amor impossibilitado, pelo corpo, na infância e agora realizado entre rostos tocados pela perfeição. Seria o mais desbragado, e ultrajante!, elogio à beleza e destruiria o agreste realismo presente na história do "outro" Benjamin (quando ainda não era Button, quando era pobre e velho). O que faria Cronenberg com este material?

Mais ousadia, senhor Fincher, e este filme seria, num choque entre as suas partes, uma obra-prima do excesso sentimental e cosmético; um anti-"Zodiac" ou um "Duel in the Sun" da modernidade. Mas não ficamos desiludidos, porque, para não falar do avanço tecnológico que este filme representa (e que nos deixou embasbacados), faz-se nele uma comovente reflexão sobre a vida e a morte na figura do amor como há muito não víamos no cinema de Hollywood. Nada mau, portanto.

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quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

As fronteiras da crítica: (re)filmar com a escrita e (re)escrever com as imagens

Jean-Luc Godard, "Histoire(s) du cinéma: Le contrôle de l'univers"

As this adventure is lived, he presents it, like Bresson, without embellishment. Balestero enters his cell, he looks at the bed - reverse angle of the bed; the washbasin - reverse angle of the washbasin; he looks up - reverse angle of the ceiling and wall; he looks at the bars - reverse angle of the bars. We realize that he is seeing without looking (...), just as during the trial he hears without listening.

Jean-Luc Godard, «The Wrong Man», Cahiers du Cinéma, in Godard on Godard

Esta noção do olhar é porventura transmitida de um modo perfeito pela cena hitchcockiana clássica em que o sujeito se aproxima de um objecto sinistramente ameaçador, geralmente uma casa. Encontramos aí a antinomia por excelência entre o olho e o olhar: o olho do sujeito vê a casa, mas a casa - o objecto - parece de algum modo devolver o olhar. (...) [E]ste olhar é efectivamente um olhar ausente; o seu estatuto é puramente fantasmático.

Slavoj Žižek, Lacrimae Rerum

sábado, 10 de janeiro de 2009

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Já saiu a Red Carpet de Janeiro!

A edição de Janeiro tem como destaque maior os inevitáveis top10 da redacção da revista. Lá encontrarão o texto que já aqui publiquei sobre 2008. Depois temos ainda o texto da capa relacionado com a deslumbrante Cate Blanchett, um artigo sobre o universo de David Fincher, antevisões para 2009 e mais duas análises a dois filmes de referência: na secção dedicada ao grande cinema português, "Juventude em Marcha" de Pedro Costa (por Carlos Pereira) e, em "Sob o Signo de...", a obra-prima de Kenji Mizoguchi "Ugetsu Monogatari" (por Nuno Gonçalves). Na parte do cinema clássico, podem encontrar a segunda parte do meu texto sobre "Angel Face": "A Essência de um Olhar" (II). Podem ler isto e muito mais clicando sobre a imagem.

Changeling (2008) de Clint Eastwood

Clint Eastwood mantém-se fiel às matrizes do melodrama clássico e continua a filmar com uma suavidade e uma graciosidade quase comoventes. Mas nem tudo permanece igual em "Changeling". Desde logo, deve ser um dos seus primeiros filmes totalmente centrados numa mulher. Por outro lado, o desafio é ainda maior que o costume, tendo em conta a história verídica que lhe serve de base: o desaparecimento de uma criança tornado num dos maiores escândalos políticos dos anos 20 e 30, que implica a polícia e o mayor do estado da Califórnia. Depois de "Flags of Our Fathers", filme corajoso e tristemente maltratado que denuncia a perversa indústria mediática que alimenta à retaguarda qualquer guerra, Eastwood volta a reflectir sobre as mais fundas contradições que corroem as bases da maior democracia do mundo, a um nível político e ulteriormente ontológico.

Depois de percorrermos todos os corredores de um sistema corrompido, onde a polícia abdica da sua ética para obter mais e melhor publicidade, partimos para outros voos: em que medida a própria verdade não será sempre uma fraca convenção no quadro de uma realidade caucionada pelos jornais e pelo poder político? Esta interrogação, terrível e brutal, é-nos colocada na cena em que John Malkovich tenta convencer Angelina Jolie da morte do seu filho. As suas palavras soam-nos tão "preparadas" como as que são usadas pelo "polícia corrupto" na primeira parte do filme - o pesadelo ainda não terminou. É um dos poucos momentos em que Clint Eastwood mistura os planos entre "quem está com Angelina Jolie" (o bem) e o resto (o mal).

Salvo naquele momento, esta divisão é levada ao extremo neste filme de Eastwood; chega mesmo a tornar "Changeling" numa estafante jornada de sentimentos antagónicos (amor, desespero, revolta e redenção...). Angelina Jolie tem um dos seus mais exigentes papéis, mas esgota-se - e esgota-nos - com tanto choro. Ela está no centro de um dos filmes mais condensados a nível emocional; ela é o ponto de equilíbrio de uma construção dramática algo dual que, em certos momentos, até nos seduz pela sua transparência: pelo seu excesso dramático e despretensioso espectáculo sentimental, as cenas no tribunal parecem tiradas de um filme de John Ford.

A partir daqui, os sentimentos prevalecem claramente sobre a mensagem política ("a vingança de Jolie"...). Quer dizer, pelo menos, até à tremenda cena do enforcamento: uma violência, um abuso (pela sua fria teatralidade e pelo seu aproveitamento plástico), mas também (se virmos melhor e se nos lembrarmos do magnífico "True Crime") mais um ataque de Eastwood à pena de morte. Uma barbárie tanto nos anos 20 e 30 como ainda hoje.

De facto, "Changeling" é um peso pesado na filmografia de Eastwood, mais ainda que "Flags of Our Fathers", filme que acaba por encontrar um equilíbrio (propositadamente) instável entre política e sentimentos. "Changeling" desequilibra quase sempre de forma abrupta para um ou outro lado. Veja-se o comovente plano de pormenor que sucede às imagens terríveis do enforcamento (contra a pena capital): a mão de Angelina Jolie agarra com força a mão de uma outra mãe que perdeu o seu filho... De qualquer modo, este é um filme vários furos abaixo do Eastwood normal (isto é, sublime), ainda que tenha o mérito de ser um filme de época que sabe como agitar os espíritos de hoje.

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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Suleiman ainda não sorriu

A guerra é silenciosa, mas muito tensa em "Intervenção Divina" (2002), filme realizado e protagonizado por Elia Suleiman. Um homem dividido pelo amor entre Jerusalém e Ramalá testemunha as atrocidades cometidas pelos soldados israelitas no checkpoint que liga as duas cidades. Enquanto a barbárie acontece, ele, palestiniano, encontra-se com ela, israelita. O amor é uma troca de bilhetes e um bailado de mãos. Os olhos fixam-se no vazio e a boca encerra uma dor ensurdecedora. Também há Tati em Suleiman, mas falta-lhe a alegria de viver - e um sorriso (qualquer emoção...) no rosto.

A guerra israelo-palestiniana é revoltante. Cansa ouvir os diplomatas europeus a apelarem à paz, enquanto esperam pelo jantar ou o almoço. Já repararam que as reuniões diplomáticas fazem-se cada vez mais à volta de mesas que têm em cima mais garfos que canetas? Haverá margem para se negociar o menu? Enfim, mas não há almoços (e jantares?) grátis: as tropas high-tech - zero casualties - de Israel estão neste momento a varrer Gaza do mapa como quem atira a sujidade para debaixo do tapete.

Que tipo de solução é esta: fazer da história dos rockets uma guerra totalmente desproporcional e uma das maiores crises humanitárias que nos espera? Não sabemos (nunca saberemos...) qual o número exacto de civis palestinianos que morreram e qual a real situação dos desalojados. Claro que bastará um soundbite ou uma estatística para podermos arquivar o que se está a passar e fingir que alguém (um Sarkozy ou um António Guterres) resolverá esta catástrofe, que eventualmente se converterá num dossier - mais um eufemismo asséptico criado para não estragar as refeições dos senhores engravatados. Se calhar, durante o espectáculo macabro e dessensibilizador que se adivinha, daremos por nós a achar que 200 ou 300 ou 400 vítimas até é pouco. "Numbers sanctify", já dizia o Monsieur Verdoux de Charles Chaplin.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Laura (1944) de Otto Preminger

Otto Preminger considerava "Laura" (1944) o seu primeiro filme, não por ter sido o seu primeiro grande sucesso de público e crítica, mas sobretudo porque foi a partir dele que a relação com Darryl Zanuck se tornou menos tempestuosa (mais tarde transformou-se numa amizade sólida) e porque "Laura" representou a primeira grande vitória de Preminger nos Estados Unidos, no sentido da sua total emancipação da política dos estúdios (que aconteceu sensivelmente depois de "Angel Face"). De 1944 em diante, Preminger foi produtor e realizador da maior parte dos seus filmes e reuniu à sua volta uma equipa de técnicos e actores que muito o ajudaram a criar um dos universos estéticos mais sublimes da Hollywood clássica.

Com efeito, pode-se dizer que a sua arte nasce completamente em "Laura". As razões são várias e, sem ordem, importa enumerá-las: a música de Dave Raksin (nebulsa e enigmática como o filme); a direcção artística de Lyle Wheeler e Leland Muller (à maneira premingeriana, concentrada e minuciosa); a fotografia de Joseph LaShelle (clara-escura e "irreal", produz na imagem uma espécie de efeito sfumato que densifica o ambiente macabro e obcecante do filme); o trabalho do elenco, da dupla Gene Tierney (o gosto pelas mulheres estupidamente belas, e talentosas..., é outro atributo de Preminger) e Dana Andrews (o underacting e a inexpressividade facial, duas características que Preminger adorava num actor) e da outra dupla Vincent Price (aquela calma gélida...) e Clifton Webb (o intelectual snobe pródigo em mind games e não só...); e a câmara de Otto Preminger (na grua ou fora dela, ela realiza movimentos de uma fluidez inaudita, mas sempre mantendo-se distante da acção, sem nunca se substituir ao juízo do espectador).

Está visto: se há filme emblemático da estética premingeriana, esse é definitivamente "Laura", um dos film noirs mais densos (e perversos) que o cinema norte-americano nos deu. Veja-se o significado da figura de Laura (Gene Tierney), a mulher enigmática de que todos falam na primeira parte do filme e que o detective McPherson (Dana Andrews) transformou numa fantasia sexual – que se constrói a partir do olhos (que contemplam o seu retrato) e das mãos (que mexem na sua roupa interior). "Laura" é um filme sobre o desejo de possuir uma imagem e, por isso mesmo, uma das mais belas metáforas dedicadas ao Cinema, a arte onde a morte (de um instante) e o desejo (o de tocar e entrar nele com as mãos) se confundem. Ora, como em qualquer fantasia, o cinema vive da sua própria ilusão, tal como o amor de McPherson apenas existe enquanto Laura for uma imagem num quadro, a representação de alguém que já morreu e não volta mais.

Quando a Laura de carne e osso lhe aparece, a história deste amor no limiar da necrofilia como que cede ao thriller policial. Faz todo o sentido esta inflexão, porque um amor tão íntimo, quase inconfessável, não podia de modo algum sobreviver à sua própria realização. Até parece que Fritz Lang (“Woman in the Window”) e Alfred Hitchcock (“Vertigo”) vieram beber aqui - haverá maior elogio?

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Fallen Angel (1945) de Otto Preminger

"Fallen Angel" (1945), um dos film noirs melhor filmados de Otto Preminger. Ou, se preferirem, um dos filmes melhor filmados na história do cinema. São aqueles movimentos muito subtis, e contínuos, da câmara que fazem de Preminger um dos grandes realizadores do seu tempo; um homem que soube transformar o noir (e não só...) numa estética da vertigem e da profundidade.

O anti-herói de "Fallen Angel" é Eric Stanton (Dana Andrews), um forasteiro que chega a uma cidade e se apaixona loucamente por uma empregada de café. Linda Darnell é a mulher que todos os homens querem, evidência que Preminger põe a nu logo na sequência de abertura no café de Pop: estão ali os protagonistas masculinos, dois à espera de Linda e um terceiro que também a espera, mas não sabe disso (Dana Andrews, precisamente).

A deslumbrante morenaça entra no café como um cowboy ou um John Wayne que transformou o seu vigor másculo numa extasiante beleza feminina. Neste palco, e em pouquíssimos planos (que conseguem, milagre dos milagres, enquadrar a maioria das personagens), Preminger introduz-nos ao filme e a tudo o que nele acontecerá. Ou melhor, a quase tudo: falta o elemento redentor, a outra face da moeda: a angelical, e muito loira, Alice Faye (que traz a luz a Dana Andrews e que é transparente onde Darnell é imperscrutável).

Dana Andrews interpreta um papel que lhe é recorrente nas colaborações com Preminger: o tough guy com um lado vulnerável, que é sublinhado ao longo de um doloroso processo de descoberta do amor... E o que é terrível - ou destrutivo - neste filme de Preminger? O desejo, conceito que se define nos antípodas do amor convencional. Em "Fallen Angel", tal como em "Angel Face" (1952), a dialéctica "loira/morena" funciona como uma espécie de pêndulo sentimental para o protagonista: quando está com a loira, prevalece nele o amor puro e ideal; quando está com a morena, este é invadido por um sentimento de desejo, tão obcecante quanto corruptor.

Entre o inferno - ou um paraíso infernal? - e o paraíso, Dana Andrews é o forasteiro que se vai dando a descobrir ao espectador. No ar, na sua grua omnisciente, está Preminger, o cineasta que usa como poucos o plano-sequência: os longos planos premingerianos são uma interpretação clássica da noção de continuidade espacio-temporal proveniente do teatro; logo, caracterizam-se por uma quase total invisibilidade, como se só houvesse uma maneira para filmar esta ou aquela cena.

O olho tem de estar atento para notar nos incríveis feitos técnicos - e estéticos - de Preminger: veja-se a longuíssima sequência em que Dana Andrews caminha com Alice Faye pela rua ou o estonteante movimento de câmara que nos faz redireccionar o olhar da cena em que Faye é detida pela polícia para a reacção de Dana Andrews no outro lado da rua. Um outro cineasta filmaria esta sequência em dois ou mais planos; Preminger concebe-a num único plano. Mas... só os mais atentos repararão nisso, porque a maneira premingeriana de filmar não contém um pingo de exibicionismo.

Outros realizadores não conseguem - e, nalguns casos, nem querem - obter este nível de sofisticação formal, em que algo pejado de um muito pesado conhecimento técnico resulta numa outra coisa: tão leve e natural que quase permanece invisível. É a verdadeira apropriação clássica do plano-sequência; o tracking shot cinema na sua expressão mais depurada e, sobretudo, honesta.

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Oito anos depois, um motim... (II - fim de votação)

Antes de partirmos para a análise dos dados, queríamos agradecer às 22 pessoas que responderam à primeira pergunta que colocámos em sondagem e às 21 que responderam à segunda questão. As respostas foram dadas ao longo de um mês, sensivelmente desde a data em que foi divulgado o primeiro cartaz do próximo filme de John Carpenter, "Riot".

O resultado deste inquérito, relativo à próxima longa-metragem de John Carpenter, revela, em primeiro lugar, algum desanimo dos respondentes em relação ao estilo que o realizador ensaiou nas suas duas últimas obras (“Vampires” e Ghosts of Mars), espécie de reciclagem gótica dos westerns de Hawks. Por isso, a maioria diz que gostava que “Riot” fosse mais um regresso às origens (Assault on Precinct 13”, “Halloween”, “The Thing”, etc.) do que a continuação do que John Carpenter tem vindo a fazer nos últimos anos (61% contra 26%). Há ainda aqueles que ainda não ficaram convencidos e pedem a Carpenter que se reinvente em “Riot” (9%) - não será pedir muito a um sexagenário? Ao único leitor que escolheu "outro" (re)abrimos com este post a possibilidade de especificar a sua resposta ("qual?").

O factor “Nicolas Cage” não aquece nem arrefece os inquiridos, sinal da gestão muito irregular que o actor tem vindo a fazer da sua carreira. A maioria (32%) sente-se indiferente à sua escolha para protagonista de “Riot” e empatados (18%) estão aqueles que a avaliam como “nada promissora”, “pouco promissora” e, por fim, “promissora”. Convém dizer que apenas uma pessoa respondeu “muito promissora” (5%).

Continuam a ser demasiado escassas as notícias sobre este muito antecipado regresso do realizador de “Halloween”. Segundo o IMDB, o filme está em fase de pré-produção, mas já li num site que as filmagens deveriam ter começado no passado mês de Dezembro. Vamos continuar a seguir o percurso deste filme e torcer os dedos para que tenha estreia portuguesa ainda em 2009.

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