segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

The Hunter (2010) de Rafi Pitts


Não é bem "Le cercle rouge" ou "Il conformista", apesar da atmosfera plasticamente poderosa que cada plano contém; apesar do interesse fetichista da câmara pelos quadros perfeitos, de linhas definidas e vertiginosas (outrossim, à Benning); apesar, enfim, da arquitectura visual que sustenta um thriller fortemente embebido em referências culturais e políticas (outrossim, à Bong)... Não é bem um "Targets" iraniano, porque o filme de Bogdanovich é sobre a "mecânica escondida do mal" que habita até o mais "exemplar" dos cidadãos - uma espécie de pré-"Elephant" que nos dá conta de uma norma(lidade) interrompida.

Não, Rafi Pitts, jovem realizador que já nos tinha deslumbrado este ano com "It's Winter", empresta densidade ideológica à história do protagonista, interpretado por si - coisa quase suicidária, tendo em conta a hiper-sensibilidade do sistema político iraniano. "The Hunter" também tem pouco a ver com "The Hunted", pese embora Friedkin seja uma referência assumida pelo próprio em entrevista publicada no DVD do filme (na qual tece elogios a "French Connection") e pese embora os dois falem de uma caçada entre homens. Também "Trigger Man" poderia ser citado, já que neste como no filme de Pitts o caçador vira caçado; o perseguidor devém perseguido; mais ainda, o predador "troca de peles" com a presa. Mas não: todas estas referências cinéfilas estão presentes no tecido formal de "The Hunter", mas o que subsiste é a especificidade da sua construção visual e sonora, bem como a forma como dela emergem, em regime de alta discrição, as inquietações do Irão contemporâneo - "abaixo com o ditador" ouve-se a certa altura, à distância...

Estamos nas vésperas das presidenciais de 2009 e o partido verde - por sinal, uma das cores principais da fotografia impressionante de "The Hunter" - começa a ganhar terreno sobre o partido do governante lunático actualmente no poder. A proposta estética de Pitts é um embrulho armadilhado: o thriller é o dispositivo encontrado para Pitts pôr o dedo na ferida. Nunca antes tinha visto uma obra que mexesse com tamanha frieza nos problemas de "falta de autoridade, mas excesso de autoritarismo" no muito paradoxal Irão moderno. O assunto da corrupção e instrumentalização das forças policiais não é um pre-texto, mas o texto propriamente dito deste belissimamente "montado" filme de vingança político (não confundir com "filme de vingança políticA").

(ATENÇÃO: spoilers a partir daqui)

No final, quando a personagem de Pitts troca de pele, naquela floresta de árvores infinitas, que parecem tocar o céu, por entre a espessa névoa, o twist que parecia "do thriller" converte-se em statement ideológico: o pai que direcciona a sua ira contra a polícia, agora "mascara-se" de agente para safar a pele... o problema é que a caça "interna" já começou e, por isso, não há nada de racional em vestir-se com a farda de polícia para se evadir. Quando a personagem de Pitts, vingando o desaparecimento da mulher e filha no fogo cruzado entre manifestantes e polícia, atira aleatoriamente sobre dois oficiais na auto-estrada, ele está a fazê-lo com vista a um acerto de contas pessoal, talvez conduzido por uma certa ilusão patológica de "justiça divina" (uma secularizada "justiça divina", entenda-se).

Contudo, mais tarde - e é essa a ironia fina e terrível do filme -, percebemos que já dentro da polícia decorre uma espécie de purga ideológica e moral, pelo que há quem "de dentro" que nutre alguma admiração por esse atirador anónimo, ao passo que também há quem "de dentro" que quer fazer justiça pelas próprias mãos e julgar com balas o protagonista do filme. O modo aparentemente "acidental" como "The Hunter" transporta a caça do plano não imediatamente político da "justiça divina" para o plano devidamente contextualizado da "justiça dos homens" é coisa notável, para mais, tendo em conta o grau de melindre inerente a todos estes assuntos no Irão dos nossos dias. Jafar Panahi que o diga...

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