quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Blackmail (1929) de Alfred Hitchcock

Não seremos certamente os únicos a descobrir a filmografia de Alfred Hitchcock de forma cronologicamente inversa. É que as suas obras-primas mais célebres foram realizadas sobretudo nos anos 60, 50 e 40. A fase inglesa de Hitchcock é por isso um território repleto de filmes que, para muita gente, permanecem por descobrir. O facto de ser mais do que sabida a importância de obras como "The 39 Steps" (1935) e até "The Lady Vanishes" (1938) no seu cinema deveria ser incentivo suficiente para olharmos para os primórdios da sua carreira com especial atenção. E assim o temos feito ultimamente... e assim o fizemos com o seu primeiro filme sonoro: "Blackmail" (1929). O título é sonante e terrivelmente hitchcockiano, mas nem por isso o filme é muito visto.

Daí que urja a sua descoberta por todos os fãs do "mestre do suspense" que ficaram presos aos clássicos dos anos 60 ("Pycho", "The Birds", "Torn Cortain", etc.) e anos 50 ("Dial M for Murder", "Strangers on a Train", etc.). É que "Blackmail", talvez por ser um filme quase-mudo, obra de transição (e por isso muito experimental) para o sonoro, é dos thrillers formalmente mais sofisticados do realizador. O plot aqui é secundarizado face à grandeza do advento do som, que, para Hitchcock, representa uma primeira oportunidade (que depois tão bem explorou em filmes como "The Birds" e "Torn Cortain", entre outros) para trabalhar os "silêncios".

Esta economia no uso da palavra (o grande "efeito especial" da época) define, de algum modo, a experiência de Hitchcock no dealbar dos talkies. Não há nada mais angustiante do que assistir a uma violação sem que um grito ou uma exclamação de horror saia da boca da vítima. Em "Blackmail", Hitchcock filma esta cena num plano único, no qual apenas vemos as mãos da vítima e do agressor. Tudo se passa na cama deste último e a cena (chocante para a época) é impressionante pela forma como joga com o invisível, na medida em que apenas temos "dentro de campo" a imagem de "mãos que lutam entre as cortinas da cama".

Num gesto que se haveria de repetir noutros moldes em "Dial M for Murder" (1954), a mão da mulher precipita-se para uma faca esquecida na mesinha de cabeceira e de seguida, sem hesitar, usa-a para apunhalar até à morte o violador - a faca como segundo falo ou a violação da violação. Só se ouvem grunhidos durante toda a sequência, salvo no momento em que a mulher põe fim ao (seu) sofrimento: o clímax (não-sexual) é o estertor seco do agressor.

Esta cena serve de epítome a toda a experiência de "Blackmail", filme que joga com o desconforto dos silêncios, numa espécie de leitura crítica da transformação tecnológica por que então atravessava o próprio cinema: com o som nasceu o silêncio e, em Hitchcock, este é mais um artifício (MacGuffiniano) quase cortante que adia no espectador o deleite (orgmástico) da matança. Isto, porque em Hitchcock nenhum espectador é inocente: ele faz-nos ansiar pelo sangue e, em vez deste, muito cinicamente dá-nos a sua representação numa imagem (que não vemos) ou num som (ambíguo ou "em si" não dramático).

O seu cinema é uma cilada, facto que o sorriso final da mulher violada prova por inteiro: matar um violador pode ser por legítima defesa e levar à condenação um chantagista por um crime que este não cometeu é talvez uma penalização moral aceitável, agora, a não confissão desses actos significa uma auto-absolvição abusiva que pesará, até destruir, a consciência de qualquer homem.

No final, Hitchcock condena tanto os criminosos como a vítima frágil. A imagem do sorriso convulso da mulher e o som violento das gargalhadas dos homens são a última coisa que "Blackmail" nos mostra. Nem sequer há espaço para o tradicional "THE END". "Este está ainda para acontecer", diz-nos Hitchcock novamente "fora de campo".

Ler mais aqui: IMDB.

2 comentários:

H. disse...

Para mim a filmografia inglesa do Hitch é um manancial de pérolas do mudo e dos 1os tempos do sonoro que em nada ficam atrás dos seus filmes mais célebres feitos nos EUA. A maioria dos traços que marcarão a sua filmografia estão já claramente presentes e há uma aura de mistério muito reforçada pelo próprio tempo em que os filmes foram feitos (há subtilezas no mudo e no cinema de transição para o sonoro que se perderam irremediavelmente...)

Blackmail, The Lodger, Rich and Strange, Secret Agent, o 1º The Man Who Knew Too Much, Champagne, The 39 Steps e o meu favorito The Lady Vanishes são obras magníficas que deveriam ser obrigatórias para qualquer cinéfilo...

Luís Mendonça disse...

Concordo completamente com o que dizes: esses filmes de transição têm de facto uma série de subtilezas, devido à própria experimentação em que estavam mergulhados os cineastas da época, que os torna objectos estranhos, difíceis de situar, na história da estética cinematográfica.

Ainda não vi todos os filmes da fase inglesa, mas dos que falas sem dúvida que o primeiro "The Man Who Knew Too Much" e, como digo no comentário, "The 39 Steps" (o meu favorito entre estes) e "The Lady Vanishes" são obras fundamentais em Hitchcock. "Secret Agent" não me convenceu tanto (a única vez que não gostei de Peter Lorre...), mas há pouco tempo vi "Jamaica Inn" (o último britânico do realizador) e é um filme muito bem realizado, com o grande Charles Laughton num papelão e, apesar das incongruências no argumento, a história sobre "piratas do século XIX" está revolvida hoje por uma ambiente nostálgico, muito cativante.

Obrigado pelo comentário. Bom ano.

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