sábado, 20 de março de 2010

Old Joy (2006) de Kelly Reichardt


Sei que o vou ver mais vezes e dá-lo a ver às pessoas que gosto. Sei que todas as minhas palavras são fracas nesta altura para poder fazer jus à graciosidade de "Old Joy", um pequeno filme de uma fragilidade comovente que vem das suas duas personagens e da forma como comunicam, entre si e com a paisagem verdejante, isolada da cidade (quanto baste). É um Cassavetes sem as convulsões e massacres psicológicos, é um Sayles sem o reticulado político-sociológico, é uma Loden sem o grão pessimista, é tudo isto, certo, mas Kelly Reichardt é ela mesma. Ao pé de Courtney Hunt, autora do magnífico "Frozen River", não há realizador(a) mais interessante na cena (DE FACTO) indie norte-americana. "Wendy and Lucy", filme que se seguiu a "Old Joy", mostra boa continuidade, mas aqui está a sua obra-prima até agora.

A comunicação faz-se sobretudo de monólogos interiores, muito doces e amargurados, sem pingo de nostalgia, mas preenchidos por sucessivos "engolires em seco" sobre um passado, uma geração, um(a vivência do) tempo... A alegria do título está gasta e a culpa não é de ninguém - como lidar com isso?, esta será a pequena grande interrogação deste road movie adulto e sereno, franco no olhar, sem tentações dramatizantes ou vontade de forjar uma tragédia a partir da ideia de dois homens isolados na floresta. Não há contas a saldar ou motivos thrillescos, que agradariam até ao auditório pseudo-indie norte-americano da actualidade.

Só há isto: diálogos poucos; monólogos muitos, interiores e transbordantes, feitos de surdina e sons fundos que circulam pelos olhares, atravessam as pontas dos dedos e se esboroam perante a cadência inelutável da vida. Sorrow is nothing but worn out joy, diz a certa altura Kurt, o amigo triste, "sem futuro" (ou já sem tempo para ter "um passado"), que diz a Mark, entre lágrimas, que tudo está bem. É a humanidade sem filtros. Pequena e frágil.

Dois amigos = uma caminhada

"Gerry" (2002) de Gus Van Sant

"Old Joy" (2006) de Kelly Reichardt


sorrow is nothing but worn out joy
sorrow is nothing but worn out joy

sábado, 13 de março de 2010

O fenómeno Avatar sem Cameron mas perto dele

"Total Recall" (1990) de Paul Verhoeven

"Surrogates" (2009) de Jonathan Mostow

Os melhores de 2009


2. "Milk" de Gus Van Sant

3. "Les plages d'Agnès" de Agnès Varda

4. "Ne Change Rien" de Pedro Costa

5. "Two Lovers" de James Gray

6. "The Limits of Control" de Jim Jarmusch

7. "It's a Free World..." de Ken Loach (DVD)

8. "The Strangers" de Bryan Bertino

9. "The Wrestler" de Darren Aronofsky

10. "Avatar" de James Cameron/"Três Macacos" de Nuri Bilge Ceylan

Podíamos fazer o balanço desta década fingindo que as anteriores não aconteceram, analisar os pontos altos e baixos dos filmes que tivemos oportunidade de ver. Apetece-nos, ao invés, e porque este top surge neste espaço com um atraso tão grande, começar por falar de 2009 por comparação a 2008.

Em 2008, foi da França que vieram alguns dos filmes mais marcantes, ao passo que em 2009 apenas a veterana Agnès Varda aparece na sua representação com o comovente "As Praias de Varda". Olhando para o resto da lista, vejo também uma subrepresentação portuguesa, ainda que Pedro Costa tenha feito o seu melhor filme desde "No Quarto da Vanda": um elogio a Murnau e à arte como doloroso processo de criação (em camadas palimpsésticas de significação ou as músicas por trás da música...). James Gray é o único que aparece repetido nos dois tops e perfila-se como um dos mais interessantes cinemas da actualidade.

2009 foi um bom ano para os veteranos de língua inglesa. Tarantino fez a obra-prima da década, "Inglourious Basterds"; Van Sant fez um comovente filme político de amor; Jim Jarmusch levou ao limite a abstracção em "Limits of Control" - isto é, tornou-a concreta como um... edifício -; Ken Loach redimiu-se da desilusão que foi a sua Palma de Ouro e fez o retrato mais duro, anti-moralista, que conhecemos sobre o flagelo do tráfico humano e da imigração ilegal...

Da mesma forma, James Cameron renasceu das cinzas do deplorável "Titanic" para fazer o filme mais caro e visto de sempre que também é uma impiedosa sátira ao autofágico discurso de guerra à la "axis of evil" (quem são os bons e os maus? O homem ou o avatar ou não se confundem os dois, a certa altura, na mesma carne? Ou melhor, quem é o "terrorista" aqui? O nativo ou o invasor? Ei, o "ambiente" é politics, ponto final, dirá Cameron) e uma negra visão sobre um certo estado de espírito colectivo pós-11 de Setembro (o escape, a droga é ser-se Na'vi, é ser-se projectado, como num second life, no mundo Pandora).

Por outro lado, Aronofsky fez um trabalho espantoso de realização em "The Wrestler", o que é, aos nossos olhos, a reabilitação do século - é que detestámos praticamente tudo o que este senhor fez para trás. Bertino, apoiando-se em Carpenter e Shyamalan (falo da elaboração conceptual sobre o movimento e a inércia), faz um dos mais corajosos filmes de terror dos últimos anos. Dentro de um experimentalismo, no caso, tanto de som como de imagem, "Três Macacos" também é uma aterradora experiência audio-visual, destacando o nome de Ceylan entre os mais interessantes do actual cinema europeu.

terça-feira, 9 de março de 2010

Alice in Wonderland (2010) de Tim Burton


A "alicemania" fervilha e, depois de ter arrasado o Box Office na primeira semana e na sequência da péssima prestação de "Avatar" nos Óscares, o filme de Burton parece ter obliterado de vez com a "Na'vimania". Burton enche salas como nunca e a crítica continua a olhá-lo como um auteur. Apesar deste hype em torno de um dos mais interessantes realizadores norte-americanos, o último filme de Burton só vem confirmar para nós aquela que é uma das fases menos inspiradas do realizador.

Faça-se a comparação com a amarga visão da América de um "Eduardo Mãos de Tesoura" ou com o auto-irónico exercício de género (politicamente picante) "Mars Attacks!" e tirem-se as devidas conclusões: no entretanto, o que se perdeu e o que se ganhou? Burton em "Charlie e a Fábrica de Chocolate" dá espaço a Johnny Depp para dar forma a uma das suas mais delirantes interpretações, a fazer lembrar um Michael Jackson retro-pop on acids, e em "Sweeney Todd" testemunhamos o negrume burtoniano levado ao extremo do gore, uma ópera sanguinolenta que aproveita bem aquela que poderá ser uma das grandes virtudes da estética CGI: os planos longos e vertiginosos que não conhecem os limites do cinema de cenários (e pessoas) reais. Burton usou bem a alta tecnologia na moda para potenciar no terreno do cinema a unidade espaço-tempo típica do teatro. Mas a ameaça instalou-se na nossa cabeça quando soubemos do seu projecto seguinte: uma versão em 3D de "Alice no País das Maravilhas". Primeiro, a escolha da história parece-nos completamente redundante numa obra que, de forma arrojada e por vezes corajosa, sempre soube "brincar" com o imaginário do clássico de Lewis Carroll.

A popularidade universal da história e personagens colocava a Burton um dilema: fazer jus à obra, e ao imaginário popular que a transcende, e refrear o espírito "dessacralizador" que sempre o caracterizou ou dar-lhe um enquadramento radicalmente novo, leia-se, "burtonizá-lo" dos pés à cabeça. Pensamos que, de modo politicamente correcto, Burton quis fazer as duas coisas e, com isso, ficou a meio caminho nas duas: tornou a "wonderland" numa "underland" e, com isso, satisfez os seus mais indefectíveis que o vêem como um auteur do "fantástico para adultos" (negro, irónico e freudiano) e, por outro lado, seguiu previsivelmente a narrativa mais repetida na história das imagens e impingiu ao espectador uns óculos de plástico (qual Charlie e companhia). Seremos só nós que não gostamos minimamente desta nova plástica de Burton?

É que em "Sweeney Todd" o CGI estava ao serviço da realização, aqui é um gadget de feira que surge requentado depois da riqueza e sentido do espectáculo visual que é "Avatar". Comparem-se os "bichinhos levitantes" nos dois filmes: no de Burton, é "efeito" de cosmética para sublinhar a "tridimensionalidade"; em Cameron, são "seres" que dão vida a um mundo que se assume como virtual (não será "Avatar" um grande filme sobre o fenómeno dos videojogos ou da projecção-identificação do espectador no que se passa no ecrã de cinema? Ou uma metáfora sobre um desejo de escape tão recalcado no homem do pós-11 de Setembro?). Burton quis conceber uma ride em underland, onde vemos aqui e ali um previsível Johnny Depp com figura e trejeitos à Beetljuice que, como os "bichinhos levitantes", é efeito estéril para nos lembrar (não da tridimensionalidade mas) de uma das figuras bidimensionais habituais no universo Burton: homem excêntrico em luta com traumas antigos que o conduziram ao isolamento e à misantropia. Um piscar de olho, auto-indulgente, para fã ver.

Toda a história em torno da predestinação de Alice e da metafórica alusão à dor de crescer revestem como um invólucro esta ride com marca Disney, que se refugia nuns copy pastes burtonianos para receber o aval da crítica. Lamentavelmente, a fórmula resulta no pior filme de Tim Burton até à data.

Flânerie (guiada por um balão)

"Little Fugitive" (1953) de Morris Engel, Ruth Orkin & Ray Ashley

"Le ballon rouge" (1956) de Albert Lamorisse

A madrugada de Óscares (mais uma)


Uma verdadeira estopada. Diziam que seria o espectáculo televisivo da década, mas apostaram no desaparecimento da dupla de apresentadores - às vezes nem me lembrava quem eram afinal os anfitriões da cerimónia... - e em irritantes interrupções para a apresentação dos dez (!) títulos nomeados para o Óscar de melhor filme. O Óscar honorário foi reduzido a um dos mais forçados standing ovations de sempre e tanto a Bacall como a Corman foi dedicado o mesmo ou até menos tempo que os premiados nas mais esotéricas categorias técnicas. A imagem do produtor a mandar calar os galardoados foi outro momento ultra-decadente. Se o que se quer é entretenimento em continuum então comecem por acabar com as enfadonhas e anti-climáticas interrupções entre prémios. Eu sei que isto seria terrível para os lucros da publicidade, mas seguramente que com menos intervalos o espaço publicitário se iria encarecer e o público não seria tentado a mudar de canal ou adormecer de tédio.

Quanto aos premiados propriamente ditos, who cares? Quer dizer, Bigelow é uma boa realizadora e fez um filme interessante sem dúvida, mas nem aqui se fez a tão prometida "boa televisão". O ano passado tivemos a grande surpresa Sean Penn, este ano foi tudo forçadamente imprevisível. Mas alguém tinha dúvidas que Bigelow não iria ser a vencedora da noite? Quer dizer, depois de Cameron quase ter dito que preferia que esta ganhasse em vez dele e depois de todos ficarem a saber que nunca (heresia!) a Academia premiou uma mulher realizadora - agora há (então, heresia?!) uma -, alguém esperava mesmo outra coisa? Seguramente que quem não esperava, fê-lo na esperança de ser surpreendido, de haver um bom twist à Hollywood. Mas nada disso: até a Sandra Bullock lá recebeu o Óscar, 24 horas depois de ter recebido o indesejado Razzie (e que tal a TVI começar a transmitir a cerimónia de entrega destes prémios? É que estes foram os únicos que deram atenção a uma das obras-primas da década, "Lady in the Water").

Apesar de tudo isto, surpresa, esta cerimónia teve as melhores audiências dos últimos cinco anos. Se calhar o problema está em mim, já que cada ano que passa tenho menos pachorra para aquilo que George C. Scott um dia definiu como uma mera "parada de carne".

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...