segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Cross of Iron (1977) de Sam Peckinpah


Peckinpah definitivamente não é um homem fácil. "Cross of Iron" também não é nada fácil: filme sobre a queda da Alemanha frente aos inimigos russos, sendo que os "heróis do filme" são o batalhão alemão mais carniceiro e "sem lei" de todo o exército. Coburn diz que odeia a sua farda e todos os seus superiores, que fazem política enquanto homens, nalguns casos, bons homens são levados pelos ares no campo de batalha.

Peckinpah também odeia a guerra e, por isso, pôs a câmara onde nenhum americano se atreveu a pôr: mesmo ali, na fronteira entre a Rússia comunista e a Alemanha nazi. O espectador que se cuide. Mas mais: Peckinpah não abdica das contradições ultrajantes do seu cinema. Ele leva-as, na realidade, a um novo extremo. Em território inimigo - tanto de um lado como do outro, "entre patriotismos anti-americanos" -, Peckinpah dá a si mesmo permissão para continuar a gostar de homens de barba rija, o seu companheirismo férreo e indestrutível, tanto quanto detesta a frivolidade e sentimentalismo femininos - a certa altura, o capitão Stransky diz qualquer coisas como "nós gostamos de uma boa mulher, mas, convenhamos, os homens entendem-se melhor sem elas". Isto poderia ser confundido com machismo puro e duro, mas não é isso, quer dizer, não é só isso. Desde logo, o capitão Stransky disserta sobre a superioridade dos homens a um tenente, que se descuidara e denunciara a sua homossexualidade. Stransky não diz o que diz para seduzir o seu subordinado, mas precisamente para o levar à confissão de que é, de facto, um miserável de um homossexual.

Aquí entra a homofobia peckinpahniana: ele gosta das mulheres como "boa carne", mas tem pouca ou nenhuma paciência para as suas conversas da chacha, contudo, quem as pretira à companhia, aquele tipo de companhia..., masculina, será, também para ele, um ser desprezível. O tenente do filme é, para além de levemente caracterizado de pederasta (veja-se o interesse pelo cabo alemão com carinha e corpo de criança), um cobarde em acção; aquele que, uma vez nas mãos do seu superior interesseiro, aceita mentir e, pior, aceita disparar contra compatriotas inocentes ("bons nazis"?), que não querem mentir como ele... O seu corpo é (quase que justificadamente) dilacerado por balas e atravessado por facadas de ódio irracional, uma vingança pela sua conduta desviante e inaceitável dirigida aos seus companheiros de armas.

A censura que Peckinpah faz à homossexualidade deste fraco tenente raia perigosamente uma assimilação ideológica do objecto retratado, mas não nos podemos alhear do seguinte: acima do militar gay, está Stransky a manipular os cordéis, visando a apetecida "cross of iron" que justifique o seu estatuto congenitamente superior (prova última da sua superioridade rácica... mais: prova última do sentido muito justo do projecto nazi), servindo-se assim, numa muito mesquinha chantagem, do "segredo sujo" do subalterno. Ele está acima na hierarquia, mas, não temos dúvidas, moralmente, Peckinpah põem-no na lama - a humilhação final de Stransky, a derradeira destruição da sua reputação de nobre soldado aristocrata, de sangue azul, é capaz de ser mais brutal que a morte sangrenta e sem piedade do tenente homossexual.

Mas, por outro lado, a ligação que Peckinpah estabelece entre a homossexualidade e a perversidade nazi não é novidade nenhuma. Pode-se mesmo dizer que Rossellini vai mais longe na sua trilogia da guerra, sobretudo, em "Roma, Cidade Aberta" e "Alemanha, Ano Zero". Se no primeiro, a homossexualidade dos soldados nazis é revelada como traço da sua natureza depravada e sinistra; no segundo, o rosto mais nojento do nazismo, por entre os destroços, cabe na imagem do herr professor pedófilo de Edmund, o principal responsável por toda a espiral suicidária e demencial do filme. Peckinpah faz isto, mas mostra o outro lado, não para equilibrar, para ser "razoável", mas para dizer, em uníssono com o protagonista Coburn, que odeia o homossexual como o hetero snobe que faz dele seu fantoche para ganhar uma medalha de honra e coragem, dois traços que nunca caberão no seu carácter.

Mas a relação com a figura feminina também não se "descomplica" em "Cross of Iron". Sabemos que Peckinpah "gosta", e o gostar aqui merece toda a sua conotação moralmente dúbia (vide "Straw Dogs"), de filmar violações. Sabemos também que Peckinpah não sacraliza minimamente o sexo feminino, treslendo em toda a linha os velhos ensinamentos do western clássico. É que o realizador de "The Wild Bunch", "The Ballad of Cable Hogue" e "Bring Me the Head of Alfredo Garcia" não se coíbe de filmar uma mulher a ser espancada sem aparente razão. Machista? Sim, Peckinpah pode ser acusado de ser machista. Mas, vejamos ao mesmo tempo, onde já se viu um machista ter genuíno medo de mulheres? De facto, o machismo de Peckinpah existe até ao ponto em que esbarra com a potência escondida do chamado "sexo fraco", um limite que as suas personagens animalescas e viris muitas vezes não chegam a reparar: a mulher, anjo luminoso, aparentemente fraco e inocente, é capaz, a qualquer momento, de libertar toda uma potência escondida e dirigi-la aos seus abusadores. Quer dizer, o "machismo de Peckinpah" (gosto em violar mulheres) bate de frente muitas vezes contra a "misógina de Peckinpah" (receio de, em contrapartida, ser violado por elas...) - nada de psicologicamente estranho, mas, para o caso, algo cinematograficamente relevante.

Veja-se a sequência em que o pelotão da personagem de Coburn se depara com um grupo de mulheres ou totalmente despidas ou, para confundir, envergando a farda do inimigo, as cores do exército soviético. O dilema atinge alguns dos militares alemães, a começar por Coburn, que cedo parece perceber que estará a lidar com o "espécime mais perigoso deles todos". O que acontece a seguir resume bem toda a complexidade moral do cinema de Peckinpah: o mais novo dos soldados, ainda virgem, guarda com o mais nazi dos soldados, um SS acabado de integrar o pelotão de Coburn, para desgosto deste, o grupo de mulheres, que - como veremos - preparam secretamente, com os seus meios "misteriosos", o "contra-ataque". Ambos os soldados germânicos acabam seduzidos pelas prisioneiras, sendo de seguida como que encaminhados para um destino trágico, mas moralmente diferenciado: o alemão virgem, inebriado pela beleza da sua prisioneira, leva uma facada nas costas, mas, antes de morrer, pede ao sargento para perdoar a pobre rapariga - Peckinpah sabe, aqui, compreender a compreensão do virgem, inocente, nazi face à situação daquelas mulheres; ao mesmo tempo, o alemão do Partido, tipicamente caracterizado (muito louro, de bigode escovado até ao último pêlo, demasiado composto e arranjado), é mordido no seu sexo, isto é, a jovem cativa arranca à dentada a virilidade do ser considerado desprezível até pelos seus companheiros de armas. Neste caso, Coburn decide-se por entregar o que resta dele - pouco, segundo Peckinpah - às mulheres "famintas" de vingança, que rapidamente investem a sua ira no seu corpo castrado - desmasculinizado, logo, peckinpahnianamente inútil. De novo, destino bem pior que o reservado ao homossexual.

Sendo assim, parece que Peckinpah adora e odeia, ou "adora odiar" ou "odeia adorar", o sexo oposto. Respeita-o mas só na medida em que tem necessidade dele - ele "define-o" nos seus desejos - e, ao mesmo tempo, não sabe bem ao certo do que ele é capaz - ele "define-o" nos seus medos. Provavelmente, partilhará sentimento semelhante pelo "inimigo de guerra". Peckinpah fez "Cross of Iron", mas não o fez para "humanizar" os alemães. Contudo, os seus heróis são alemãs e, quer queiram, quer não, - como também dizem, repetidas vezes, as várias personagens - são cúmplices da monstruosidade cometida. Contudo? Pois, contudo são isto, mas contudo também são o seu contrário: homens que não se mostram indiferentes aos horrores da guerra e que lutam já não para sobreviver mas para restaurar a dignidade da já destroçada nação alemã (lutar pelos "bons nazis", como diz o coronel interpretado por James Mason). Ainda assim, a crueldade persiste entre alguns desonrosos (os "maus nazis"), que mandam matar para defender interesses particulares, ou que matam cegamente contra qualquer um que vista a farda inimiga.

Coburn vinga-se desses "maus nazis" quando dispara contra o oficial homossexual e o aristocrata interesseiro, mas quando mata friamente o inimigo bélico, fá-lo enquanto revê mentalmente a imagem de uma criança russa que ele salvou, mas que acabou chacinada a sangue-frio por militares russos - ei, e que ideia é essa de porem mulheres na linha de combate? Peckinpah é severo com os russos, porque, vamos lá ver, também não vai com a cara dos comunistas. Odeia nazis e odeia comunistas. Odeia homossexuais e odeia homofóbicos (e) machistas. Odeia mulheres e odeia homens que odeiam mulheres e compreende homens que compreendem as mulheres. E odeia homens que, compreendendo as mulheres, se deixem enredar nas suas falinhas mansas. Receia a superioridade feminina e odeia a superioridade, "de raça" ou "de classe", dos homens armados, mas também odeia a igualdade "sem divisórias" entre homens e mulheres e crianças no campo de batalha, entre homens e homens e crianças na intimidade da cama. Mas, por outro lado - há sempre um "por outro lado" aqui -, filma brilhantemente, com comovente honestidade, homens a amarem outros homens ou a "perderem-se" na toda-poderosa beleza feminina.

"Cross of Iron" move, deste modo, o campo complexo e, por vezes, contraditório das relações humanas em Peckinpah para o espaço absurdo da guerra, espaço esse onde se morre por amor, fidelidade, ódio e traição - às vezes, tudo isto ao mesmo tempo! Espaço onde o bailado é mortal - e como choca a montagem de Peckinpah, suspensa e poética, com a dureza de tudo! - e onde a grandiosidade do humano se faz heróica e tragicamente nas fronteiras com o que há de mais bárbaro. Assim é na guerra "militar" dos nazis contra os comunistas como na perpétua guerra "civil" que nos ocupa os dias. Estrondosa obra-prima.

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