Fiel à história mítica do amor que liga os protagonistas, Eric Rohmer investe num exercício de depuração cinematográfica, tão ou mais radical quanto um filme de Roberto Rossellini: "Francesco, giullare di Dio" (1950).
Estamos no século V, numa província da Gália, na qual os seus habitantes levam uma vida à margem do domínio imperial romano. Dois amantes, no centro de uma rivalidade antiga entre as suas famílias, separam-se, na sequência de um "mal entendido" tipicamente rohmeriano. A rapariga, Astrée (nome da Deusa da justiça), decide que não quer mais ver o seu amado, Céladon, jovem de fisionomia delicada, corpo escultural e tez branca como uma mulher. De coração despedaçado, este resolve atirar-se ao rio. Céladon provava, desse modo, a sua devoção "constante" ao amor por Astrée. Todavia, a tentativa de suicídio sai gorada.
Seguindo a pista profética de um druida, três ninfas errantes encontram o corpo de um homem caído, inerte, à beira rio, mas ainda com vida. "Ele é belo", comenta a ninfa que o descobre. A anuência das demais parece reverberar, como um sentimento proibido de desejo, na melodia primordial da Natureza. Céladon é transportado para um castelo, onde é tratado como um príncipe. Quando acorda, sente-se asfixiado por todo o luxo que o rodeia – afinal, este não passa de um mero pastor, pouco digno dos cuidados de tão belas, e poderosas, ninfas.
O choque não o demoveu dos seus sentimentos iniciais: ainda fraco, mostra-se determinado em preparar o regresso à mulher a quem dedicou o seu sacrifício. No entanto, face ao fracasso do suicídio, ainda falta ao jovem convalescente dar a derradeira prova do seu amor: o respeito quase ascético pela decisão de Astrée, em não o querer ver mais, conduz um acossado Céladon a uma vida eremítica nos bosques, baseada na espera – quem sabe, ad eternum! - pelo seu chamamento.
Estamos num domínio típico em Rohmer: o amor triste e alegre; lúdico e trágico; puro e traiçoeiro; sereno e louco; incondicional e dilemático; libidinoso e assexual; aprisionante e livre... No fundo, camaleónico como o próprio Céladon, que se traveste de mulher para que o contacto com Astrée não signifique o desrespeito blasfemoso pela sua decisão.
Trata-se, também, de um retorno às origens do cineasta: estes "Amores" pertencem à esfera dos seus seis "contos morais". Céladon filosofa sobre a sua existência e aquilo que sente por Astrée; expõe-se, por foça do Destino? - um teste dos deuses, ou melhor, de Deus? -, à sedução de outras mulheres, para que o seu amor primeiro saia reforçado. É este que, pela sua candura, comove Rohmer e o faz viver, aos seus 87 anos - "vive, vive!", expressão final de Astrée que nos cabe, agora, redirigir ao cineasta francês.
"Les Amours d'Astrée et de Céladon" é um fresco, pintado com as cores da Natureza, de celebração do amor, rejeitando os filtros ou artifícios do cinema – em certo sentido, é o anti-"L'Anglaise et le duc" (2001) - , numa simplificação das formas levada ao limite de uma espécie de abnegação consciente da "técnica" cinematográfica. Rohmer tem construído um cinema particular que tem na palavra - dita e/ou cantada - o seu único "efeito especial".
Este filme, experiência genuinamente religiosa de reencontro do Homem consigo mesmo, mostra, mais uma vez, como Rohmer conseguiu criar uma linguagem própria, usando um "mínimo de cinema" para a expressar. Sublime.
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