segunda-feira, 30 de abril de 2012
Warnung vor einer heiligen Nutte (1971) de Rainer Werner Fassbinder
Na secção dedicada aos 50 anos da Viennale, em que cada década aparece representada por um filme*, vi "Cuidado com essa Puta Sagrada", truculenta, tempestuosa e "terrorista" sátira ao labor em cinema. Se Wenders tem o seu "Estado das Coisas" (1982), Fassbinder tem a sua "Puta Sagrada" (1970). Estou a falar do cinema, claro, claro? Não, do cinema sobre o cinema, films on films, mais concretamente, filmes em que uma equipa de rodagem é material dramático suficiente para se dissecarem problemas maiores (que o cinema? Impossível...), do coração e do corpo. Fassbinder é magistral a filmar a dinâmica relacional entre actores (entre eles, Eddie "Lemmy Caution" Constantine e Werner Shroeter), assistentes de realização, produção (um deles interpretado pelo próprio Fassbinder) e, claro, bem no centro, Jeff (Lou Castel), o realizador, um pequeno déspota com sangue nas guelras (auto-retrato de Fassbinder?) e, pior que isso, um homem temperamental a braços com uma crise criativa, confundida com desgosto de amor (por outros e por ele?), que paralisa toda a produção.
A câmara de Fassbinder baila, no espaço, com um desprendimento extraordinário - será esse o Fassbinder touch? -, captando as dinâmicas relacionais, os "focos" de tensão ou de pura apatia e marasmo e, enquanto isso, bebem-se copos e mais copos de Cuba Libre ao som de tema atrás de tema de Leonard Cohen (também o ouvimos, quase em modo repeat hipnótico, em "O Direito do Mais Forte à Liberdade"). Partem-se copos, dá-se uma, duas, três estaladas nas putas de serviço e grita-se, grita-se muito, sobretudo Jeff, mas grita-se tudo menos "acção!". O filme está parado e a crise colectiva bate à porta. A par disso, Fassbinder vai alfinetando as sensibilidades femininas com inúmeras manifestações de brutalidade machista por parte dos homens do cinema (ele próprio, por exemplo) e satiriza - satirizará? - a arrogância e racismo alemães. Numa palavra, "Cuidado com essa Puta Sagrada" de Fassbinder é o filme ideal para se perceber o seu cinema - e a sua visão do cinema - bem por dentro.
(Este filme foi mostrado hoje no IndieLisboa. Infelizmente, não será exibido de novo no festival.)
* - A primeira sessão, dedicada aos anos 60, terá sido um momento alto no festival, como relatam bloggers como o Carlos Natálio. O CINEdrio não assistiu a esta "histórica" reposição, porque ainda tem bem presente, no espírito e no estômago, os efeitos devastadores de "Daisies", provavelmente, o filme mais odiado e mais amado das novas vagas sob o signo (e tantas vezes críticas) do bloco soviético. Se não o viu ontem, no grande ecrã, procure a magnífica edição da Second Run ou invista mais umas coroas aqui. Gostando ou não, por favor, não perca a experiência.
Em Segunda Mão (2012) de Catarina Ruivo
Os problemas de "Em Segunda Mão" são muitos. Cinematograficamente falando, é um filme morno, com poucas ideias de cinema, não mais do que um ou dois planos assinaláveis (exemplo do contacto final por telemóvel que, aliás, deveria ter terminado o filme), talvez por assentar numa muito frágil narrativa thrillesca, que, em momento algum, cessa de condicionar todo o filme. Por assentar e ser totalizado pelo plot, "Em Segunda Mão" fica cativo de uma escrita para cinema mal burilada, ingénua e incoerente, que será, porventura, a origem para todo o desequilíbrio e desinspiração formais.
O protagonista é Jorge, interpretado por um já notoriamente debilitado Pedro Hestnes (viria a falecer pouco tempo depois da rodagem). O estado impressionante do seu rosto e do seu corpo não foi minimamente "assimilado" pela realizadora, o que provocou em mim, desde o início, a sensação de um mal-estar partilhado pelo actor relativamente à sua imagem, que, ao longo do filme, como que aparece "desfasada" da personagem que incarna. De qualquer modo, este é apenas um pormenor numa história com mais buracos que um queijo suíço.
A história de um homem que ganha a vida a escrever romances eróticos sob o pseudónimo de Clarice B. (premissa que podia ter saído de um filme de Almodóvar, talvez) presta-se a várias incoerências, nomeadamente, no instante em que, depois de ter dito ao editor não ter dinheiro nem para uma lata de sardinhas, este se mostra disposto a adquirir um carro vermelho, de alta-cilindrada, à mulher por quem se apaixona, ou quando este arrenda a luxuosa casa envidraçada, com piscina, isolada na floresta, que fora abandonada - não se sabe bem por quê - pela sua amada. A situação miserável de Jorge é-nos dada logo nas primeiras imagens, captadas numa pensão rasca, onde este se terá isolado para... Na realidade, não percebemos - nem viremos a perceber - por que Jorge "fugiu" para local tão suspeito - porventura, apenas em busca da companhia de uma prostituta com quem, no entanto, nem chega a fazer sexo...Também não podemos perceber porque é que Jorge, depois de ter ouvido um tiro no quarto ao lado, reclama tanto com o dono da pensão quanto à urgência de chamar a ambulância ou a polícia, se pode perfeitamente fazer isso por si mesmo...
Outro elemento estranho, na realidade, o principal golpe à credibilidade de todo o filme - e, atenção, o filme procura-a em cada momento, como que auto-consciente de quão rebuscada é a sua narrativa aos farrapos - atinge o clímax no instante, a meu ver, ridículo, em que Jorge se lembra de perguntar à mulher como é que o seu marido desapareceu da sua vida. Esta pergunta parte de alguém que chegou ao contacto com aquela mulher movido precisamente pelo "mistério" em torno do paradeiro do seu marido; surge num momento em que Jorge já tem uma "vida" com essa mulher; depois de por ela ter abdicado da sua vida como "escritor", depois de por ela ter aceite ocupar o lugar (que estava vago) de novo "pai do seu filho"... 80% de filme já tinha passado e só agora Jorge, personagem, desde o primeiro minuto, assombrada pela presença/ausência daquele homem, resolve questionar a sua nova mulher sobre os contornos desse desaparecimento. Pior do que ter personagens ingénuas - que mordem os vários iscos que lhes são postos à frente sem pensar nas causas e consequências ou que deixam as perguntas decisivas para o fim - é tratar essas personagens de forma ingénua - e, por arrasto, achar que o espectador de cinema engolirá todo o tipo de incongruências.
Dou estes exemplos, mas podia dar mais. Exemplos de como "Em Segunda Mão" está sempre aos papéis com a sua história. Quando dela nos distanciamos um pouco, resta a química entre os dois protagonistas, que, para pior dos nossos males, é absolutamente inexistente. Aliás, o filme como que esconde mal que ela não está lá: a cena do primeiro encontro na praia, primeira abordagem de Jorge para conquistar aquela que será a sua futura mulher, é interrompida pelo acidente da criança, um "incidente narrativo" que perturba a necessária "solidão do casal", aquele espaço dramatúrgico que teria sido essencial para conseguirmos entrar (finalmente) no seu mundo e percebermos (ou não) as suas acções. Ora, este incidente, veremos, serve apenas para nos desviarmos desse mundo, para atabalhoada e injustificadamente nos desconcentrarmos desse amor "em formação" para nos concentrarmos, de novo, nas intenções (mais ou menos secretas) que propiciaram aquele encontro. Numa sucessão de raccords despropositados, passamos do passeio na praia para o hospital, logo a seguir, passamos de novo para a praia... Olhando para trás, pergunto-me qual o sentido da cena do meio (talvez abra a possibilidade de todo um filme composto por cenas em segunda mão, isto é, que não lhes pertence por inteiro... que estão sempre ali um pouco "a mais"...), faço perguntas semelhantes ao longo do resto do filme, perguntas muito básicas, muito irritantes, que perturbam sobremaneira o visionamento.
Infelizmente, penso que Catarina Ruivo não consegue alcançar o objectivo a que se propõe no catálogo do Indie, isto é, fazer um filme sobre "o desejo de ser outro" ou sobre a ilusão de que a felicidade está sempre no lado de lá. Não que a ideia não esteja lá, está, mas demasiado abafada pelo desnorte de cenas sem sentido ou ferida de morte pela falta de uma perspectiva estável, una, sobre o que nos dá a ver; sobre o que, de facto, importa mostrar e de que modo deverá ser mostrado.
(Este filme estreou hoje no IndieLisboa. Volta a ser exibido no dia 1 de Maio, às 21h30, no Cinema Londres. Reexibição que não conta com o nosso aval.)
domingo, 29 de abril de 2012
Rua Aperana 52 (2012) de Júlio Bressane
O que Bressane ensaia aqui é uma despedida em forma de poema topológico, começando por filmar fotografias antigas, depois montando um fotodrama e, por fim, "sintonizando" as fotos de infância, amareladas pelo tempo, com excertos de vários filmes seus rodados nos mesmos cantos e recantos da sua cidade-mãe, o Rio. Quando entra na "fototrama", assim lhe chama Bressane, a auto-homenagem torna-se explícita e a ligação da paisagem ficcional com a paisagem fotografada começa a ser construída. Não sei ao certo se Bressante é bem sucedido nesta tentativa de raccord rememorativo, entre o espaço do seu cinema e o espaço da sua memória, de um passado seu que também é o passado de uma paisagem e de um país.
Tem momentos belos - a música e a presença de Buarque ou de Caetano, por exemplo - e os excertos dos seus filmes servem até de cartão de apresentação interessante (ainda que caótico e algo traiçoeiro para quem nunca viu um filme seu) à sua já extensa obra, ainda assim, este registo à Mekas não parece resultar totalmente. Bressane diz que procurava uma montagem que evocasse "estados de espírito" e que transformasse o espectador numa "nova testemunha da paisagem ficcional". Não me parece que esta "imersão" intimista seja fácil nem, muito menos, facilitada, porquanto para se ser uma nova testemunha tem de se já ter testemunhado alguma coisa aí - pela parte que me toca, vi "Matou a Família e foi ao Cinema" (1969), obra cujas afinidades estão bem mais num Glauber Rocha ("Terra em Transe") do que nas experiências avant-garde norte-americanas (Frank, Brakhage, Mekas, Menken, Cornell...), daí também este meu relativo "estranhamento" em relação ao registo poético-livre de "Rua Aperana 52". Nesse sentido, talvez este pequeno documento resulte apenas como complemento da sua obra (ou extra de luxo), espécie de última grande escalada às montanhas do Rio, aos lugares onde Bressane semeou imagens ao longo de várias décadas.
(O filme foi exibido ontem no IndieLisboa. Terá nova projecção no dia 6 de Maio, no Cinema Londres, às 23h15. Se estiver interessado, tente ser "testemunha" de alguns Bressanes, antigos e novos, antes de percorrer esta "Rua...".)
Bestiaire (2012) de Denis Côté
Saí do cinema e, com uma amiga, comentava: este filme, mesmo sendo, no papel, "apenas" uma colecção de interessantes quadros do cativeiro animal, pela ironia que empresta a cada imagem, será porventura mais exactamente resumido como um "Walt Disney sem animismo". Por um lado, temos aqui um filme reduzido ao gesto minimal de apontar uma câmara para aquela avestruz, para aquele rinoceronte ou para aquela zebra.... Por outro lado, "Bestiaire", pelos ângulos inusitados (e irónicos) de filmagem que explora, parece querer ser menos uma viagem a uma reserva animal e mais um comentário, cheio de sentido de humor, à expressividade humana dos animais versus a actividade absurda dos homens (leia-se, a sua bestialidade inata).
Com a câmara sempre do lado (do) animal, Côté ensaia a bem esgalhada hipótese de um "James Benning goes to the zoo": a cena das filas de carros à porta da reserva, com as zebras em contramão, alinha, maravilhosamente, com uma fina desconstrução do absurdo da sociedade humana, que não é, de modo algum, estranha ao universo desse cineasta norte-americano. Entre nós, o bicho homem gosta de fotografar os bichos das outras espécies, fá-lo aliás como passatempo, agora que já não precisa deles para sobreviver. Também anda em cima deles e faz-lhes festas ou ri-se da sua falta de maneiras. Gosta ainda de decorar a sua habitação com partes ou corpos inteiros desses seres. Trata deles para contemplação, diversão e decoração.
A reserva que Côté filma contém em si toda esta economia, mas, no filme, os animais pastam, andam de um lado para o outro, sempre indiferentes a este absurdo humano. Neles, ainda assim, somos tentados a descobrir um reflexo dessa bestialidade: estamos sempre prontos a encontrar nesta pose, naquele andar, naquele olhar, traços do tal bicho homem, exactamente, o homem que fica absorto com o mundo animal. Quadros que nos fazem perguntar a nós mesmos qualquer coisa como: "o que diria o homem de neandertal disto tudo?" Ao que Côté nos responde: "talvez que o sapiens sapiens está louco e não sabe o que faz".
(Este filme foi mostrado hoje no IndieLisboa. Será reexibido no dia 2 de Maio, às 16h30, na sala 2 do Cinema Londres. Vale bem o bilhete.)
4:44 Last Day on Earth (2011) de Abel Ferrara
O mundo vai acabar. Os especialistas, os jornalistas, os líderes religiosos asseguram-nos disso. As nossas personagens, um homem (Cisco por Willem Dafoe) e uma mulher (Skye por Shanyn Leigh), entre as quatro paredes de uma sofisticada penthouse, preparam-se para morrer juntos. Ela pinta, lançando baldes de tinta sobre a tela, fazendo do impulso artístico uma espécie de condutor do ruído mediático que a atinge - curioso que destas experiências pictóricas resulte a imagem do círculo, do círculo da serpente que devora a própria cauda, sendo que a outra alusão possível é a do círculo incompleto que, centripetamente, concentra a espiral que é, enfim, a imagem do corpo da serpente enrolado sobre si mesmo...
Que ruído é esse que produz, mediatamente, o símbolo angustiante da dúvida que já não é dúvida, porque o fim é a única certeza? Na televisão, ouvimos - e vemos - Al Gore numa entrevista a Charlie Rose, imagens tão indistintas quanto familiares de rebeliões populares, grandes procissões religiosas, Dalai Lama a perorar sobre a ciência e a Natureza ou o real valor do dinheiro, um jornalista despede-se, para sempre, dos seus espectadores, etc. No computador, amigos e familiares aparecem para se despedirem das nossas personagens, uns festejam, tocam música, cantam e dançam, outras lamentam ou apontam responsáveis pelo fim do mundo, outras dão conta dos preparativos para o serão, etc. Noutro monitor, passam vídeos sobre meditação e filosofia zen. Dispositivos encaixados noutros dispositivos, mediações de mediações, medi(t)ações de medi(t)ações... a teia de Ferrara, que bem conhecemos de "Blackout" e do mais recente (magnífico) "Mary", está lançada. E, com ela lançada, o grande objecto de "4:44" é um teste, um teste que procura saber como é que aquele casal interpreta a acção catastrófica da informação - mais até do que a catástrofe propriamente dita... - que, muito contemporaneamente, o cerca. Há, de facto, qualquer coisa de behavioral no seu cinema, mas um behavioral que se contenta mais em tornar insolúvel do que solúvel o problema colocado. Quem disse que uma distopia de Ferrara, à Ferrara, ia ser um assunto de fácil digestão?
De qualquer modo, se o mundo vai acabar, não interessa deslindar os sentidos profundos da vida, se aquela pintura diz alguma coisa, uma verdade superior suplantá-la-á sempre. Se o homem diz à mulher que a ama, uma verdade superior suplantá-los-á. Se o homem diz à filha que a ama e à ex-mulher que talvez ainda tenha sentimentos por ela, uma verdade superior suplantá-los-á. E que verdade superior, inquestionável, consegue desnortear o raciocínio e asfixiar a dúvida? A verdade de um facto: o mundo termina às 4:44. Como diz a certa altura, num monitor, o guru budista, se a caneta não é caneta, não valerá a pena preocuparmo-nos muito sobre o por quê de usarmos a caneta para escrever ou mesmo o sentido daquilo que escrevemos, porque, na verdade, a caneta não é a caneta.
Esta confusão entre o mental e o real, bem como entre a representação e o representado está patente na poderosíssima cena em que Sye apanha Cisco a falar com a ex-mulher. Ela ataca-os depois de ouvir as palavras "desculpabilizantes" dele; ataca-os a ele e a ela, quer dizer, a ele, Cisco, e à sua ex-mulher, esta que está reduzida a uma "imagem de computador", que é, enfim, uma criação de software (puro ícone). Noutra cena, o rapaz vietnamita beija o computador de Cisco depois de falar, de novo, via Skype, com a sua família. De um lado, a tecnologia aparece como redução e desdobramento do mundo tão real ou concreto quanto o mundo pode ser - aliás, não será por acaso que o nome da protagonista (Skye) se confunde com o nome do próprio programa (Skype) -; do outro lado, Ferrara parodia uma certa "tecno-religiosidade", porquanto o ícone a que se presta devoção é-nos dado por uma superfície metálica, em forma de amêijoa (ei!, foi o outro guru zen da técnica, Steve Jobs, que se lembrou da analogia!), que lá vai tornando o mundo uno ou, pelo menos, trabalha para pôr em funcionamento essa ilusão - não é essa também a missão doutrinária/programática de uma religião oficial como é o catolicismo, religião da imagem, pela imagem, só imagem? (Também em "Mary" sentimos que o crucifixo "através do qual" a personagem de Whitaker fala com Deus é filmado como se fosse "mais um" dispositivo mediático, con-fundindo-se assim, funcional e ontologicamente, com o telefone, o monitor, a câmara de filmar... a tal complexa rede multimediática de imagens de imagens cara ao realizador norte-americano.)
A certa altura, no terraço, Cisco exclama qualquer coisa como: "Já estamos todos mortos". De facto, é tudo uma questão de tempo, mas a morte já opera dentro destas personagens, elas, em posse da informação que lhes chega, através da já mencionada multiplicidade de dispositivos mediáticos, remetem-se à meditação, dissecam sentimentos e reflectem sobre a possibilidade de haver escolha, temas que, noutro contexto, dir-se-iam puramente filosóficos ou especulativos, mas que em "4:44" se debatem como se fossem não parte, mas, precisamente, as únicas estratégias de sobrevivência que restam - a tal "escolha" que o amigo de Dafoe quer ver preservada até ao fim... mesmo que ninguém a possa pôr em discurso, em jeito de história moral para futura reprodução cultural; mesmo que nem o martírio ou o (mais secular) heroísmo seja já possível.
A ideia da "atitude certa" a tomar face à inabalável crença no "fim do mundo" - a dúvida aqui é também ela pura estratégia, ou é assim nitidamente encarada pelas personagens... - torna-se numa angustiante não-ideia, precisamente, quando conceitos como os de "certo" e "errado", "justo" ou "injusto" são reduzidos a pó ante a inevitabilidade deste assassínio cósmico "sem culpados". Cisco tenta culpar alguém no início, mas vê que é infrutífero fazê-lo: "ninguém é culpado". Apesar das aparições televisivas de Gore, o discurso de "4:44" surpreende-nos por não enveredar pelo demasiado fácil "somos todos culpados", típico da retórica dos movimentos ambientalistas. Não, o que a personagem diz e sente é: "ninguém é culpado", não há culpados, isto é, nem o fardo da culpa poderemos carregar até à morte, ou melhor, nem a culpa nos distrairá da morte...
As personagens de Ferrara aparecem-nos mergulhadas neste quadro mental: amoral, nihilista, assente numa fé inabalável no fim, concomitante a uma certeza fundamental na ausência de Deus - quantas vezes, mesmo nos instantes de maior desespero, é Ele invocado? Para as personagens de Ferrara, a certeza está no "agora" que Cisco diz, com o coração encostado ao coração de Skye, a certeza está no facto de os dois irem partir juntos, como ela diz, mas nunca, em momento algum, Deus é usado como pretexto da dúvida, esta dúvida impossível de alojar - ou é possível resolver-se a ideia de fim fazendo-a cair no vazio de qualquer moral ou de qualquer verdade? Digo de outro modo: será possível fazer-se um filme assim, filmado ao ritmo das angústias do homem contemporâneo, sem questionar, ao mesmo tempo, o carácter transitório de tudo, isto é, o carácter medial de tudo? Parece que aquele branco final, a "luz" (absolutamente não divina) para a qual os dois amantes caminham com o olhar e com a alma resume precisamente essa angústia primordial de, à falta de fins, ou melhor, perante o devir medium de tudo, estarmos condenados a cair no abismo. No branco. Branco como ausência de informação. Branco como princípio do fim, um princípio sem "meio", um princípio-fim "sem media". Finalmente.
("4:44 Last Day on Earth" foi exibido hoje no IndieLisboa, em estreia nacional. É expectável que o filme seja distribuído comercialmente, ainda no mês de Maio. Se não o viu hoje, é fundamental que o veja nessa altura.)
sábado, 28 de abril de 2012
Rafa (2012) de João Salaviza
A tão badalada promessa-Salaviza está à vista, desde logo, nos próprios filmes. As duas curtas, Palma e Urso de Ouro, têm sede de longas. Vejo "Arena" e "Rafa" e dou comigo a especular como se desenrolaria a história dos dois protagonistas para lá, respectivamente, dos minutos 15 e 26. Fico com sede (mais do que fome...) de mais imagens, destas imagens, desta cadência que Salaviza não "condensa", pelo contrário, faz "expandir" dentro das suas narrativas urbanas de marginais, próximas de uns Dardenne ou, melhor, de um Ramin Bahrani, mas com bem mais toque de mestre que este último. Em "Rafa", por exemplo, fica provado o gosto por uma certa suspensão da acção, o fare niente das personagens e a contemplação do tempo a passar - não é este o maior luxo para quem tem uma pulseira electrónica no tornozelo que diz "15 minutos" ou "26 minutos"?
Não haja dúvidas: a curta duração é uma prisão para os desassossegados e os exibicionistas. A curta-metragem, a melhor curta-metragem, é aquela que se quer longa e para se ter este "sentido de mais", esta sede ou fome de imagens, é preciso não saciar ou, dito de outro modo, saber gerir o insaciamento do espectador, por isso, os melhores nesta arte resguardam a acção, as personagens e deixam o tempo transcorrer. Exige, portanto, grande maturação - não deverá ser, aliás, a curta-metragem a mais perfeita escola de maturação dos tempos fílmicos?
Salaviza não se deixa perturbar (ou fascinar em demasia) pela limitação do tempo, porque - sabe ele - dessa limitação se pode surpreender, com uma força inesperada, uma dimensão incontornável das nossas vidas que é a espera. "Arena" e "Rafa" partem de imagens semelhantes: o jovem "preso" em casa recosta-se languidamente no sofá, de tronco nu, e deixa o corpo apanhar o fresco da ventoínha; o jovem Rafa, de tronco nu, protege-se do calor abrasador do apartamento empoleirando-se à janela, para receber o ar (mininamente) fresco da rua, depois queima uma folha e lança-a janela fora... Parece uma personagem de Tsai-Ming Liang ("I Don't Want to Sleep Alone") ou de Anh Dung Tran ("The Vertical Ray of Light"), porque se mostra a nós nos seus pequenos rituais em torno de um "fazer nada do tempo".
Se tivermos um cronómetro nas mãos, este dir-nos-á que o tempo que passou é insignificante, mas Salaviza expande-o, sem deixar de nos envolver na acção e nos colar aos corpos das personagens, como se tivesse um filme de 2 horas à sua frente. "Rafa" prossegue numa direcção diferente da de "Arena", uma direcção que consolida ainda mais esta ideia de espera, isto porque o protagonista faz uma viagem de mota; sai, portanto, do apartamento, do seu edifício, do seu bairro, para ir buscar a mãe, que está detida numa prisão em Lisboa. Rafa, que esperava por coisa nenhuma, deixando o tempo fluir, enquanto a irmã cuidava do bebé, muda de cenário, de paisagem, para protagonizar outra espera, desta feita, pela sua mãe. Espera que será maior do que inicialmente previra, como este subentende da conversa (algo tensa) que tem com a polícia, filmada de modo quase idêntico à célebre cena de "400 Golpes", em que Doinel, filmado de frente, responde a várias perguntas formuladas por uma voz sem rosto, antes de ser admitido na casa de correcção. O filme de Salaviza leva poucos minutos para nos fazer sentir parte do mundo das suas personagens, isto é, para nos fazer sentir que o tempo que passou - o tempo do cinema - pode ser maior que a duração dos planos - o tempo do filme. Lição preciosa vinda de um cineasta acabadinho de chegar.
A curta "Rafa" foi seguida da média-metragem "Nana", história enternecedora de uma menina de quatro anos deixada ao abandono na floresta, uma floresta mágica e mítica, entrecortada sempre pelo sonho de uma presença - a da sua mãe fugidia - e a envolência sempre-enigmática da Natureza. "Nana", que tem estreia comercial no dia 10 deste mês (em sessão conjunta com o filme de Salaviza), lembra outro filme do catálogo Midas: "Yuki & Nina". A viagem encantatória, temporal e espacialmente incerta, de Nana parece convergir com o percurso na floresta de Yuki, entre a Paris contemporânea e um Japão ancestral e assombrado (mizoguchiano). Também a pequena história do coelho e do seu enterro desajeitado me faz viajar até outras paragens, mais concretamenta, "Jeux interdits" de René Clément, magnífica fábula sobre a infância e a morte - com uma menina tão encantadora quanto a pequena protagonista cujo nome intitula este que é o primeiro filme da francesa Valérie Massadian.
[Deixo uma sugestão à distribuidora Midas, a pensar no dia da estreia nacional deste double bill: peço que não passe a curta de Salaviza como o aperitivo de "Nana", mas como o "prato forte" da sessão. Proponho que a Midas se supere no arrojo e exiba "Rafa" não antes, mas depois de "Nana". Não quero, com isto, desvalorizar o trabalho de Massadian, mas, ao invés, valorizar o excelente trabalho (já francamente adulto) de Salaviza ou a forma como o modelo, tradicionalmente insosso, da curta foi e tem sido tão potenciado por este.]
Dark Horse (2011) de Todd Solondz
Estou farto de Solondz tanto quanto este parece estar farto de nós, pessoas. Neste momento da sua carreira, ele parece estar farto do mundo mais por preguiça do que por convicção, isto é, convém que um Solondz movie viva sempre desse estranho "tédio divertido", contudo, o que convém nem sempre é o que deve ser... É que o escárnio, que, num "Happiness", desconcertava - e chocava -, aqui apenas chateia, acabando por se virar "contra si", como uma horrenda bad joke - que também choca, mas apenas pelo embaraço que provoca. Depois desse autêntico AVC cinematográfico que foi "Palindromes", Solondz, que continuava como que a desculpar-se por não conseguir justificar os seus primeiros sucessos de crítica - daí não ter aquecido nem arrefecido com "Storytelling" -, resolve tapar, com mais uma boa camada de maquilhagem pop depressiva - estilo soap opera de maníacos -, todo uma pretensiosa acumulação de nada em "Life During Wartime", filme que saiu directo em DVD cá em Portugal (e, sabe-se lá como, foi parar ao catálogo da Criterion Collection, de facto, "na melhor toalha...").
A entrada em cena de fantasmas existenciais (vide Paul Reubens, aka Pee Wee Herman, no dito filme), quais anjos da guarda malditos dos protagonistas falhados, parece ter sido o novo dispositivo dramatúrgico que este realizador americano desencantou (eureka!) para regenerar toda uma carreira - porque o restante freak show doentio, comédia offbeat, levemente apimentada por uma certa "visão da América", sabe, de novo, a "Happiness" requentado. Solondz recebeu os incentivos de alguma crítica - aquela que ainda insiste... - como a luz verde para avançar em direcção a este "Dark Horse", milésima variação solondziana sobre o "patinho feito" num mundo de patinhos feios, tão ou mais feios do que ele... Tudo muito awkward - agora, "controladamente" awkward, claro, porque "Palindromes" foi um pesadelo para todos... - e tudo muito auto-lamentatório - estilo existencialismo de retrete. Não, definitivamente, eu cá deixo de apostar neste cavalo. A corrida, caro Solondz, acabou. Mas, felizmente, o cinema, o grande cinema, não sofre muito com as sucessivas, e enganadoras, falsas partidas deste wonder boy (has been) do indie trash, pós-muito-pós-John Waters.
("Dark Horse" foi exibido hoje no IndieLisboa. Como já mereceu honras de abertura do festival, não haverá reexibição. Uma boa notícia, portanto.)
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Into the Abyss (2011) de Werner Herzog
Se fosse só um panfleto político contra a pena capital, então diríamos imediatamente aqui, nestas linhas, que Capote já havia escrito "In Cold Blood", Richard Brooks já o havia passado brilhantemente para o cinema e um sem número de realizadores (exemplo de Tim Robbins em "Dead Man Walking" ou Clint Eastwood em "True Crime") já souberam armar retoricamente quem considera, como diz Herzog perto do fim do filme, a pena de morte como uma coisa "muito Velho Testamento. Olho por olho. Dente por dente..." Também se fosse apenas um filme sobre a vida amorosa-sentimental "entre grades" de terríveis homicidas, tínhamos, por exemplo, de responder com um dos episódios mais bizarros de "First Person" de Errol Morris, sobre uma mulher com um fetiche - ou uma obsessão sexual psicótica - por serial killers. Quer dizer, se "Into the Abyss" fosse apenas isso, então estaria aqui a dizer "não muito obrigado, já fui servido e bem servido".
O que é notável neste filme de Herzog, originariamente pensado como "mais um episódio" de uma série do canal de televisão Discovery sobre os corredores da morte nos EUA, mas que acabou por se autonomizar, é a apropriação notável que o cineasta alemão faz do material que, fria e secamente, nos mostra. Se nalguns casos (veja-se o "Cave of Forgotten Dreams"), Herzog parece não controlar ou conduzir bem aquilo que filma, neste caso, é extremamente bem sucedido a transformar a história de vida daquelas pessoas, tocada por uma tragédia inominável, num "objecto do seu cinema". E quando digo cinema, falo da possibilidade - muito curiosa - que se abre, que virtualmente se potencia, em cada testemunho desta história "real" e que nos remete, imediatamente, para imagens que são, por excelência, constituintes do universo de Herzog, sem, com isso, sair fraquejado o seu, aqui necessariamente perturbante, valor documental.
O quero dizer com isto? Veja-se como o início do filme rima com o final. No início, a câmara de Herzog revela-nos as imagens (do pensamento) do padre que procura fugir às imagens da morte, refugiando-se menos no "jogo" de golfe e mais na contemplação da frescura da relva viçosa, das árvores e dos animais que "animam" a paisagem. Especificamente, e (claro está) incentivado por Herzog, o padre transforma uma pequena história que o envolveu a ele e um casal de esquilos numa parábola metafísica sobre o lado mais efémero da vida e a impotência do homem ante a injustiça da sua Lei "sem Deus". Esta imagem, que não desvelarei por completo aqui, sintetiza bem não só o tom de todo o filme, em relação à pena capital, mas também em relação às pessoas e vidas que estão "em jogo", mas também abre a primeira brecha para o abismo, um abismo que não é de morte, mas de pura vida. Parece uma contradição, certo, mas o que esta imagem inicial - e as outras vão confirmar - provoca é a invocação (antecedida de uma evocação) de um espaço que pertence, por inteiro, à abordagem panteísta, não de um Deus-tudo, mas de um tudo-Deus, de uma Natureza-Deus, bela, tolerante, mas também cruel e injusta, que marca a grande Narrativa do cinema de Herzog, de "Aguirre" a "Fitzcarraldo" até, inclusivamente, ao menos conseguido "Grizzly Man", só para dar alguns exemplos.
Esta impressão vai ganhando força à medida que o filme avança. Permitam-me agora que salte o meio - o tal "traçado" como se diz a certa altura, que separa o nascimento e o fim, no caso, do próprio "abismo" de Herzog - e vá directo para o fim: o oficial responsável que acompanha protocolarmente os presos até ao momento da execução volta a encher o filme de imagens não-filmadas que remetem para essa Natureza que tolera, mas que também não cessa de nos lembrar como podem ser absurdas as Leis dos homens. Resume ele do seguinte modo o seu novo mote de vida, após ter "caído em si" quanto ao significado moral das mais de 120 execuções que acompanhou: "agora é seguir a vida e olhar para os pássaros". De novo, uma imagem (do pensamento), que vem da Natureza, "põe em abismo" imagens do cinema de Herzog: a Natureza é liberdade, mas também é condenação, porque está lá para evidenciar os limites da nossa condição ("alterar a lei é tão simples", desabafa profundamente esse homem que tenta viver pela primeira vez, longe da morte, próximo dos pássaros, mas, de qualquer modo, fazendo o seu fatídico "traçado"...). Ainda assim, a Natureza é redenção também: Ela lembra e Ela ajuda, Ela relativiza tudo e Ela guia-nos.
Concentremo-nos, agora, no "meio" de "Into the Abyss": o que nos diz a história dos macacos e dos jacarés que aterrorizaram Michael Perry quando ainda era um homem livre, isto é, quando ainda não tinha morto "a sangue frio" três pessoas e, por isso, bem antes de ter sido engaiolado numa prisão para ser abatido, logo a seguir, como se fosse um animal doente? Este homem com rosto de rapaz que, entre as paredes brancas - clautrofóbicas - da prisão, conta os dias que lhe faltam para, como diz ele, "voltar a Casa", narra na primeira pessoa uma história aparentemente insignificante da sua vida que, pela câmara de Herzog, se converte rapidamente numa espécie de narrativa mítica da floresta, eivada de sinais de que Michael - que confessa ter querido fazer mal a um macaco... - seria, talvez, um filho rejeitado da Natureza ou alguém, à nascença, inadaptado a Ela, tal como - ou como corolário? - em guerra com o Mundo. Pessoa deslocada e tragicamente marcada pelo destino. O padre diz, de facto, qualquer coisa como "Deus deve ter as suas razões para que as coisas sejam assim e não de outro modo".
Todas estas imagens religiosas da Natureza são produções mentais das pessoas, de carne e osso, que Herzog captura com a sua câmara. "Into the Abyss" vive na e da tensão entre essas imagens telúricas e panteístas do mundo - muito caras ao seu cinema, na ficção como no documentário, mas que aqui estão apenas sublimadas nos testemunhos - e o fechamento claustrofóbico lembrado, sempre, pela omnipresença daquelas sinistras paredes brancas, assépticas e, contudo, a cheirar a morte por todo o lado. Michael diz que procura não pensar nas paredes, porque, caso contrário, enlouqueceria. Herzog, pela conversa que tem com ele, parece oferecer essa possibilidade de fuga, fazendo-o vaguear em palavras para um território que acaba por o rejeitar. Herzog, que gosta de jacarés e macacos, e ursos e outros animais, Herzog, que reconhece a sua nobreza tanto quanto a sua implacabilidade, Herzog, o homem humano, bem avisara que não estava ali por gostar de Michael...
("Into the Abyss" foi exibido hoje no IndieLisboa. Voltará a passar no dia 4 de Maio, sexta-feira, às 19h00, no Grande Auditório da Culturgest. Se não o viu hoje, tente não o perder nesta data.)
quarta-feira, 25 de abril de 2012
CINEdrio no IndieLisboa 2012
Este ano, o CINEdrio, a quem foi atribuída acreditação de imprensa, irá fazer uma cobertura mais exaustiva do festival do cinema independente de Lisboa. Tentarei trazer para aqui uma amostra representativa do que se irá passar no festival, desde o dia de abertura (26 de Abril) até à data de encerramento (6 de Maio). Representativa não tanto do universo dos filmes que serão mostrados, mas mais daquelas que são as obras cuja divulgação e análise se compaginem melhor com a orientação geral deste espaço.
Tenciono, em textos curtos - ou mais curtos do que é habitual -, analisar os visionamentos do dia, para, no fim, fazer uma espécie de balanço geral, procurando pesar aqui a qualidade cinematográfica bem como a qualidade organizativa/programática do festival.
Até já.
(Queria agradecer à organização do festival esta oportunidade, especialmente, à responsável pela assessoria de imprensa, Mafalda Melo, que me sugeriu a candidatura à dita acreditação.)
quarta-feira, 18 de abril de 2012
Newsletter #14: Olmi
Ermanno Olmi será o nosso herói do mês de Maio, acompanhando, assim, a celebração que a Guimarães 2012 já lhe começou a dedicar com uma retrospectiva da sua obra, em parceria com o Festival do Cinema Italiano e a Cinemateca Portuguesa. Um livro com textos originais será publicado também em Maio, lançamento muito especial que esperamos poder antever nesta edição da Newsletter do CINEdrio. Nas suas páginas poderão encontrar análises à obra de Olmi da responsabilidade de prestigiados pensadores do cinema como Jonathan Rosenbaum, Kent Jones, Chris Fujiwara, Adriano Aprà e José Manuel Costa.
Este cineasta italiano, autor de uma obra heterogénea, carece de um reconhecimento maior no nosso país, desde logo, por ser apontado como uma das principais referências cinéfilas por realizadores tão amados por cá como Abbas Kiarostami ou Mike Leigh e em razão do culto crescente em torno de duas das suas primeiras obras, editadas há não muito tempo pela Criterion Collection: "Il posto" e "I fidanzati".
Para lá do "herói do mês", podemos antever já alguns anúncios de peso no campo do home cinema. Desde o grande "cult classic" de Richard S. Sarafian, "Vanishing Point", finalmente em Blu-ray, até caixas "fresquinhas" de Ford, Lynch, Woody Allen e Mel Brooks, passando por algumas raridades que irão sair, ou já estão disponíveis, no mercado, como a obra integral de Rudy Burckhardt, um Tom Ripley por Alain Delon, um balão branco (lamourisseano?) de Jafar Panahi e a primeira caixa com a chancela da World Cinema Foundation, associação criada por Martin Scorsese com vista à preservação de obras-primas do cinema mundial.
Em matéria de livros, para além da antevisão desse livro (inter)nacional sobre Ermanno Olmi, contamos dar espaço a últimas obras de Jacques Rancière, Jacques Aumont e Slavoj Zizek. Falamos de algumas pechinchas nacionais na área da filosofia e noticiamos o pré-lançamento de, por exemplo, um novo reader de Eisenstein, uma nova abordagem filosófica ao cinema (de Ingmar Bergman), novas explorações deleuzianas da imagem fílmica e, last but not the least, uma análise a "Vale Abraão" chegada ao mercado francês.
No espaço de entrevista, convocamos, este mês, um dos maiores coleccionadores de filmes do país e um divulgador de raridades na Internet: Paulo Soares.
Já subscreveu?
segunda-feira, 16 de abril de 2012
Recorte de falas (XX): Laitakaupungin valot
"Luzes no Crepúsculo" (2006) de Aki Kaurismaki, pequeno conto sentimental sobre um homem fiel, fiel como um cão ao seu dono, mas, no caso, fiel aos seus sentimentos. Tão fiel que foi usado, tão usado que se fez usar, porque este herói silencioso de Kaurismaki não quis "encrencar" a bela loira que o seduziu e atirou para a lama. Não quis e, por isso, foi preso. Sem grandes ressentimentos. Ela traiu a sua confiança? Sim, mas, tendo comprometido muito na sua vida, também nunca prometeu grande coisa... Por outro lado, o "big boss", manda-chuva da pequena máfia local, ficou a ganhar em tudo no fim - até a miúda ficou com ele! Mas nada de grandes escândalos: de coração ferido, o protagonista crepuscular de Kaurismaki vai arranjando um tempinho para mais um cigarro e um suspiro em direcção a um futuro (só) sonhado. A sua amiga - o seu único amigo... - "interrompe" o fumo e faz-lhe a pergunta. Talvez saia uma resposta... mas só talvez e, saída, será coisa deste mundo, certamente. É um filme de Kaurismaki, um dos bons.
Aila: Que tal foi [a prisão]?
Koistinen: Não se podia sair...
Aila: Que tal foi [a prisão]?
Koistinen: Não se podia sair...
quarta-feira, 11 de abril de 2012
Tabu (2012) de Miguel Gomes
Não é fácil analisar um filme que invoca e evoca tanta coisa. Na realidade, não facilita que este filme seja "uma obra de Miguel Gomes", muito por causa do seu espírito insubordinado, a sua mais ou menos inconsciente ruptura com o mood geral do cinema nacional, graças a um pathos maravilhoso nascido da (matéria da) memória - que é de todos - do "mundo perdido da infância" (adultero aqui a fórmula temática do ciclo recente do ressuscitado "5 Noites, 5 Filmes") e de outro "mundo perdido" - só de alguns... cada vez mais, em vias de extinção - que é o da nostalgia cinéfila.
Há no cinema de Miguel Gomes uma reverência por esta(s) memória(s) e, ao mesmo tempo, uma vontade serena de romper com uma certa ideia de cinema português, que, por muitos méritos que tenha - e tem-nos todos e mais algum -, não tem respirado os mesmos ares de liberdade e sonho que os filmes de Gomes respiram, nem tão-pouco se destaca por um certo olhar nostálgico sobre a história do cinema - a excepção talvez seja "O Sangue" -, visto que para este cinema sem tradição, sem passado, como dizia César Monteiro, as referências cinéfilas servem mais uma exorcização fantasmática do que uma introspecção ou uma rememoração risonha ou naive do cinema. É isso: verdadeiramente, a magia do cinema de Miguel Gomes está nesta serenamente revolucionária reverência naive pelo passado, do seu - nosso - país e do seu - nosso - cinema.
Onde entra "Tabu" aqui? Não, a pergunta não está correcta. De onde vem "Tabu" para ter chegado aqui?, ok, agora sim podemos começar. Desde logo, tento responder eu, vem do universo do cineasta que o realizou. Poderão dizer que este tem o seu quê de Wes Anderson - o gosto por brinquedos, enquanto miniaturas do mundo, das crianças-adultos ou dos adultos-crianças -, poderão dizer que também Gomes não está imune ao "fenómeno Apichatpong", nomeadamente, quando abre o baú e nos dá a descobrir o seu gosto pelo mundo animal/selvagem da Natureza (quem disse que não é compatível com o seu imaginário infantil, isto é, das crianças, essas criaturas que, como dizia Truffaut, se movem na sociedade como lobos?). Poderão dizer isto e dizem-no bem, sobretudo, se para o primeiro, Wes, tiverem em mente "A Cara que Mereces" ou algumas das suas curtas (à cabeça, "Inventário de Natal"), ou, se para o segundo, Apichaptong, tiverem em mente o seu fascínio cantado por São Francisco em "Cântico das Criaturas" ou, claro, a curiosidade intrigante que provocam as aparições das personagens da raposa em "Aquele Querido Mês de Agosto" e do crocodilo de "Tabu" - "romanticamente" apelidado de Dandy (= um romântico parodiado pelo pop eighties dos VHS de certos e determinados filmes australianos...).
As afinidades cinematográficas podem então ser suficientes para dar conta do seguinte: Miguel Gomes é um cineasta contemporâneo, "filho do seu tempo". Mas, atenção, não podemos confundir os planos: Gomes, ao contrário, por exemplo de Wes Anderson, é o mais "temporalizado" filho do seu tempo. A consciência de um passado, de uma historia, da Terra e da Memória, demarcam o território do seu cinema e, neste aspecto, Miguel Gomes trabalha a lenda e a história com a mesma seriedade de um Apichatpong, sendo, por isso mesmo, menos "contemporaneamente" aideológico/atemporal que um Wes Anderson...
Mas, fugindo às afinidades presentes, importa, sobretudo, em "Tabu" pensarmos um pouco sobre o lugar do primitivo no seu cinema. O gosto pelas brincadeiras de crianças - sempre simples, ritualizadas, ou arcaicas - casa profundamente com o gosto pela desconstrução da linguagem do mudo. Um mudo sonoro, não o mudo citado em "The Artist" (também não é o mudo do falhadíssimo "Kalkitos", uma das curtas de Miguel Gomes...), mas aquele mudo que, no seu tempo, resistiu ao som.
Miguel Gomes brinca com referências como o filme homónimo de Murnau - a mais óbvia - ou "Anatahan" de Sternberg, obra totalmente narrada (pelo próprio realizador) mas, para todos os efeitos, muda de palavras. A narração é uma figura fundamental em "A Cara que Mereces" - alguém nos conta uma "bedtime story"... espécie de versão contemporânea de "A Bela Adormecida" e "Branca de Neve" - como também é aqui, em "Tabu" - Ventura conta a sua história de amor, onde Aurora e as paisagens míticas de África partilham o protagonismo com um monte que dá título ao filme, e que, por isso, resiste mal à sua intrínseca ficcionalidade. Aliás, em qualquer dos casos, estamos na presença de duas narrações eivadas de fantasias distintas, mas contadas ambas a dois tempos.
Primeiro, temos a apresentação de algumas personagens num mundo que mascara o passado - Francisco e a namorada em "A Cara que Mereces" e Pilar, Aurora e Santa em "Tabu". Depois, os filmes mergulham na fantasia, sendo que no primeiro, o passado daquelas personagens pouco importa, isto é, o corte é mais sentido que em "Tabu", onde a segunda parte como que "exorciza" e revela, em imagens a preto-e-branco, mudas-sonoras, acontecimentos adormecidos na memória. Dito de outro modo: em "A Cara que Mereces" e em "Tabu" localiza-se facilmente, na sua narrativa, um momento que separa o antes do depois - a varicela de Francisco e o café com Ventura, respectivamente. O mesmo não acontece tão nitidamente em "Aquele Querido Mês de Agosto", no qual a realidade da ficção vai-se gradualmente con-fundindo com a ficção da realidade. Outro ponto liga estrutalmente "A Cara que Mereces" a "Tabu": ambos têm como telos dramático a sua "histórica contada", o seu "Era uma vez..." encantatório. Existem duas partes claramente separadas e a primeira está lá para se esfumar ou vaporizar na segunda.
O "Tabu" da segunda parte (ou "Paraíso") é o que capta a nossa atenção e nos maravilha intensamente. A história de Aurora e o seu romance extraconjugal com Ventura numa África imaginada, imaginária, rememorada, isto é, fabricada pelo relato e pela câmara "documental" (roucheanamente documental) de Gomes são os elementos de uma espécie de prosa poética entre a ficção e a não-ficção puras que não apanham desprevenidos os apreciadores daquele pequeno rumorejante milagre chamado "Aquele Querido Mês de Agosto". O jogo do som - que não se ouve - das palavras e de outros sons - que se ouvem - do ambiente ensaia uma espécie de tomo II da cena em que Vasco Pimentel se queixa dos sons que pertencem a outro lugar e que este não consegue deixar de captar, nas suas digressões, de microfone em punho, pela Natureza. Em "Tabu", os sons ambiente - por exemplo, a música tocada "ao vivo" - suplantam ou anulam o som da palavra diegética.
Também em "Tabu" de Murnau, que podia ter sido um filme sonoro, isto é, que não necessitava, mas que precisava de ser um mudo, a palavra está sublimada nas coisas mostradas, tendo sido habilmente enjeitado pelo mestre alemão o uso supletivo das tradicionais caixas de texto ou separadores do mudo. Miguel Gomes não dispensa a palavra, mas o seu som é só prerrogativa do narrador em off - o Ventura no café, hoje. O que torna esta narração encantatória e não só uma mera "ferramenta" narrativa é precisamente a sua colagem a espantosas imagens mudas-sonoras que resgatam do esquecimento paisagens imaginadas de uma África lendária.
Se em "A Cara que Mereces", o narrador nos lê um livro para crianças - o filme está dividido por separadores ilustrados com desenhos infantis -, em "Tabu", o narrador narra como quem relata uma história seguindo a cadência do folhear de um qualquer álbum de fotografias antigo - daí a mudez sonora... e o preto-e-branco "fotográfico", isto é, matérico, degradado, como que carcomido por traças e pelo tempo, enfim, à beira da extinção física... Tanto o livro infantil como este álbum de fotografias não existem, ou melhor, não gozam de uma existência "de facto" dentro dos dois filmes, no entanto, estruturam-nos; são a sua espinha dorsal. Não são existências diegéticas nem extradiegéticas, são, antes, porque se confundem com uma e com outra, a diegese propriamente dita.
Ora, isto faz com que desta existência não existente fique a ideia de um folhear interminável tanto de uma como da outra histórias, muito bem traduzido pela recusa maravilhosa de Gomes em "fechar o círculo" às suas narrativas. Em "A Cara que Mereces" ou em "Tabu", a (segunda parte da) história termina em suspenso, sem regressar ao ponto de partida - o tal ponto de ruptura que bifurca a estrutura narrativa -, sem rematerializar o sonho, sem, enfim, fechar o livro ou limpar o pó e arrumar o velho álbum de fotografias. O fenomenal em Miguel Gomes reside também nesta imagem nunca filmada; na sua insistência mágica na ideia de que o feitiço do cinema deve resistir à sala e às próprias imagens tanto quanto deve contaminar e embalar a nossa vida. Por isso, "Tabu" é encantamento do cinema sobre a vida e pela vida, território imaginário para onde certamente regressaremos como retornamos sempre, com certa regularidade, às memórias quentes do passado.
terça-feira, 10 de abril de 2012
Recorte de falas (XIX): Matrix Revolutions
Não recortamos diálogos para aqui com medo dos filmes. Aliás, se o caro leitor não se apercebeu ainda, tenho de sublinhar que o CINEdrio não tem medo dos filmes, nem aqui pretendo passar com a "esfregona dos nossos preconceitos" sobre qualquer tipo de cinema. "Os filmes são inocentes, as pessoas não", a frase do Mekas resume bem a minha postura em relação ao cinema, neste espaço, ou melhor, resume bem a minha postura em relação aos filmes. Os filmes são indiscutíveis, essa é a minha opinião. Por isso, aqui está uma marca, não da inocência, mas de um lampejo de bom cinema - sim, para mim, a escrita para cinema é cinema - num filme que me dirão todos, com muita razão, talvez, que é globalmente um enorme bocejo. Mas, vamos pôr de lado as políticas de gosto, que intoxicam a blogosfera e a academia, e façamos a devida vénia a este pequeno instante. A palavra traz a ligação, não é a ligação que produz a palavra. "Matrix Revolutions" (2003) é um blockbuster, um franchise paradigmático, mas aqui está uma ideia poderosíssima gerada num espaço intersticial, entre o Matrix e o mundo real (dos homens e das máquinas), que é simbolizado por uma estação de metro, o link que os programas novos "usam" para chegarem ao sistema-matriz. É no "entre" que o programa - com corpo humano - diz a Neo que a emoção está contida na palavra. E que arma devastadora - no bom e no mau sentido - é, muito em particular, essa palavra e esse link chamado amor.
Neo: I just have never...
Rama-Kandra: ...heard a program speak of love?
Neo: It's a... human emotion.
Rama-Kandra: No, it is a word. What matters is the connection the word implies. I see that you are in love. Can you tell me what you would give to hold on to that connection?
Neo: Anything.
(Viram "I Love You" de Marco Ferreri? É mais uma fábula contemporânea, algo disparatada, do cineasta italiano, em que um homem se apaixona por um porta-chaves que, accionado por um assobio, lhe diz "amo-te". A história desta ligação, por muito insólita que seja, é sintomática do poder que reside na palavra e não no que ela verdadeiramente significa - pois, sejamos racionais e objectivos!, nem um porta-chaves, nem um programa de computador vêm ao mundo munidos da capacidade de amar... Mas, de novo, sejamos racionais e objectivos, ninguém disse e ninguém acredita que amar é uma coisa racional e objectiva!)
Neo: I just have never...
Rama-Kandra: ...heard a program speak of love?
Neo: It's a... human emotion.
Rama-Kandra: No, it is a word. What matters is the connection the word implies. I see that you are in love. Can you tell me what you would give to hold on to that connection?
Neo: Anything.
(Viram "I Love You" de Marco Ferreri? É mais uma fábula contemporânea, algo disparatada, do cineasta italiano, em que um homem se apaixona por um porta-chaves que, accionado por um assobio, lhe diz "amo-te". A história desta ligação, por muito insólita que seja, é sintomática do poder que reside na palavra e não no que ela verdadeiramente significa - pois, sejamos racionais e objectivos!, nem um porta-chaves, nem um programa de computador vêm ao mundo munidos da capacidade de amar... Mas, de novo, sejamos racionais e objectivos, ninguém disse e ninguém acredita que amar é uma coisa racional e objectiva!)
segunda-feira, 9 de abril de 2012
Gaea Girls (2000) de Kim Longinotto e Jano Williams
Kim Longinotto é uma cineasta de mão cheia. Não é fácil provar as virtudes de uma cineasta que, mimando os grandes mestres (Wiseman e irmãos Maysles), se fixa na parede, quase invisível, perscrutando e vigiando o que se passa... O efeito "mosca na parede" é já um lugar comum, por isso, não é por aí que a especificidade ou - palavra perigosa... - originalidade do olhar desta documentarista, que conheci há pouco tempo via o notável "Divorce Iranian Style", se revela em toda a sua evidência. Como é que uma estética sublime da transparência nos dá a ver a virtus - isto é, força criativa e criadora - de uma cineasta-mosca?
Quando a câmara não se sente, ou está no limite da impalpabilidade - só característico do real que se desdobra à nossa frente em sucessivos acidentes incontroláveis -, o que nos resta para avaliar ou capturar é só gestos, expressões de rosto, movimentos, em geral, movimentos, em particular, palavras ditas ou insinuadas, uma lágrima, uma flexão de um músculo, e a forma como tudo isto é coreografado no plano e cosido na montagem. E é aí que o talento de Longinotto aparece em todo o seu esplendor: ela sabe quando cortar, sabe a medida da justeza do "viver" das pessoas que filma e, por isso, não totaliza (ditatorialmente) esse "viver" com a sua câmara - ou nunca pensaram que, se calhar, o reality show é uma corruptela, bem perversa, do modelo do documentário observacional wisemaniano? A fronteira de um para outro é como a fronteira entre o ridículo e o sublime: ténue, demasiado ténue para os grandes cineastas, que encaram seriamente a sua abordagem documental da vida como uma ética, ou uma ascese moral, inalienável.
"Gaea Girls" podia ser um reality show kinky ou quirky ou kitsch ou simplesmente bizarro/ridículo sobre uma "escola de mulheres", com corpo de homem, que ganham a vida a praticar wrestling, modalidade híbrida, que oscila entre a luta agónica corpo-a-corpo, onde se sangra de verdade, e um jogo de máscaras, faz de conta, onde se finge a rivalidade, a ira e a vontade de ver sangue no rosto da adversária. Um bom lutador, um bom "corpo atlético", não basta para se ser uma gaea girl. Longinotto vai-nos mostrando a dureza do processo de formação destas jovens mulheres - algumas acabadas de entrar na adolescência -, sem nunca cair no erro - na tentação, apetece acescentar, "de reality show" - de caricaturar o seu projecto de vida. De facto, falamos aqui verdadeiramente de um "projecto de vida", algo por que todas aquelas mulheres batalham, mesmo fora do ringue, com a seriedade equivalente ao trabalho de uma companhia de teatro ou de um ginásio de boxe (curioso que Wiseman se tenha interessado recentemente por este tipo de ecossistemas, no seu "Boxing Gym", filme que, ainda assim, leva tareia de "Gaea Girls").
A forma como Longinotto nos mostra o empenho de uma das raparigas que tenta, a todo o custo, transcendendo-se por vezes, tornar-se profissional nesta sui generis métier, é a linha condutora do filme, ao passo que as sucessivas desistências de raparigas que vão entrando na "escola" servem de concomitante elemento tensional nesta narrativa "de carne e osso". Só "carne e osso", é isso que as wrestlers wannabe desta academia parece que são, nomeadamente, aos olhos de Chigusa Nagayo, a lutadora mais experiente, mais consagrada, do ramo. Uma professora implacável, uma autêntica sargenta de ginásio, que não perde um instante que seja sem humilhar as suas meninas, levá-las a um limite físico e moral que elas próprias desconhecem ter - e terão?
Há um momento, que a meu ver é fundamental para ser perceber a tal virtus de Longinotto na realização, que resume bem a dureza desta relação mestre-aluna: a rapariga, que está a ser testada para se tornar profissional, chora copiosamente enquanto ouve as palavras assassinas de Chigusa. Só vemos Chigusa, com o seu olhar indiferente, a desferir cada crítica como uma chapada no rosto da aluna, já ela de corpo desfeito em resultado do violento teste. De repente, num movimento subtil de câmara, vemos o seu rosto, um rosto que ouve, mudo - sinal de reverência -, um rosto que chora silenciosamente, como que "para dentro" - sinal de estoicismo, de resistência... às palavras e à dor -, mas, antes de tudo, um rosto que sangra. A professora diz-lhe que ela não pode desistir de lutar por ter um ou outro corte no rosto, ela tem de continuar... senão será esmagada no ringue. Diz-lhe que deve desistir. Mas ela, com o rosto sangrado, em implosão emocional, persevera. Sabemos depois que lhe será concedida uma segunda oportunidade.
Longinotto capta uma espécie de instante decisivo wisemaniano quando não mostra imediatamente a imagem de quem ouve, no caso, a aprendiz. Até então, o espectador não se tinha apercebido da dureza daquele mundo, mas a partir dali - seja pela fragilidade daquele corpo, simbolizada pelo sangue que dele escorre, seja pela fragilidade do espírito, simbolizada pela luta que a aluna trava consigo mesma para não chorar - percebemos que ninguém ali e nada ali se pode prestar a qualquer tipo de caricatura ou novela kitsch televiseira. É um jogo, é uma brincadeira "de faz de conta", contudo, é também uma coisa muito séria. A bitola é outra, a câmara capta a justa medida do que se vive naquele ginásio e naquele ringue: "jogam-se projectos de vida ali, tão-só", diz-nos a câmara de Longinotto.
Falei de uma opção de realização que, digamos, solidifica a tal virtus do gesto documental de Longinotto. Contudo, falta ainda referir um aspecto da montagem que também assinala, de forma clara, a sensibilidade do seu olhar. Chigusa já mostrara o seu lado humano - ela, longe das novatas, diz que ama as suas alunas como se fossem suas filhas -, mas só nos aproximamos da essência desta pessoa, desta "personagem", no final, único momento em que Longinotto decide pô-la a falar em frente à câmara. Chigusa fala do pai, da sua "educação de militar", sem cedências e da forma como agora a reproduz nas suas meninas. Ela não procura "justificar" o seu método, apenas nos dá matéria para compreendermos, em pleno, esta sua (anti-)pedagogia do ódio - o ódio ao mestre transformado em amor-força sem fim pela luta... contra este ou qualquer oponente que se atravesse, no seu lugar, dentro dos quatro postes do ringue de néons, palco disso mesmo: ódio, amor e força, tudo pegado. Ou seja: é tudo uma questão de respeito.
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