quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Sobre o branco

Jean-Luc Godard, "Scénario du film 'Passion'" (1982)

Constrói o teu filme sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a imobilidade.

Robert Bresson, Notas sobre o Cinematógrafo

(Bem lembrado este brilhante aforismo de Bresson.)

Vem aí o novo Friedkin, o bom velho Friedkin (IV)


Não é só por estas bandas que se celebra a obra de Friedkin. A próxima edição do Estoril Film Festival - que, agora, vai ser também em Lisboa - vai realizar uma retrospectiva da obra de Friedkin, incluindo alguns dos seus filmes menos vistos, como aquele que fez em 1968 com Harold Pinter, "The Birthday Party".

Como não podia deixar de ser, "Killer Joe" abrirá o ciclo e o próprio festival, que conta - como é norma - com um programa verdadeiramente assombroso (últimos Gus Van Sant, Lars von Trier, Almodóvar, Philippe Garrel, Akerman, Aoyama, Kore-eda, Villaronga, Dardenne, Cronenberg, Clooney, Polanski, etc.).

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sangue do Meu Sangue (2011) de João Canijo (III): a crítica à crítica (de novo*)


(Esta imagem, que pode ser ampliada com um clique, foi extraída do grupo de discussão do Facebook de "Sangue do Meu Sangue". Nele tenho deixado alguns comentários em defesa, inclusivamente, de algumas apreciações negativas ao filme de Canijo. O texto que se segue é, talvez, a excepção que vem confirmar a regra segundo a qual: um filme como "Sangue do Meu Sangue" ganha mais com uma crítica com ideias do que com uma crítica sem elas, onde o debate não é possível..., mesmo que a primeira seja, balanço geral feito, de inclinação negativa ou muito negativa.)

Esta não é, definitivamente, a melhor crítica que Francisco Ferreira escreveu na vida - na realidade, é uma crítica claramente mais descontrolada do que é hábito neste crítico que admiro bastante. Aqui está um exemplo de uma crítica pela negativa quase tão nula quanto as muitas positivas que tenho lido: uma colecção algo panfletária de adjectivos que engolem por completo o discurso crítico – aquele de que FF nos habituou… - que pensa e nos faz pensar sobre o filme; a conclusão - estilo Manifesto anti-Canijo, ou expressão de uma convicção mais pessoal que outra coisa, direi, demasiado pessoal - é das coisas mais gratuitas que FF escreveu. Critico, objectivamente, uma ideia que FF procura explorar neste texto: a de que Canijo estaria a fazer uso daquele mundo (o mundo do "bairro Padre Cruz" e do "Portugal actual") para, pelo que percebo, procurar um maior reconhecimento da parte do espectador. FF acusa Canijo de demagogia – termo que, só por si, nestes dias, soa a demagógico…

Ora, se, por um lado, FF diz que este é um filme “demagógico”, ou melhor, “vergado à lógica do reconhecimento”, por outro lado, FF insinua que Canijo como que, desrespeitosamente (quem fala de "respeito pelo mundo que filmou" é o crítico do Expresso), molda a seu bel-prazer aquilo que mostra, supostamente, o tal “Portugal actual” que FF sacraliza no seu texto, numa defesa do mais fechado dos projectos realistas. Ou seja, simplificando, "Sangue do Meu Sangue" é tanto um "folhetim lusitano" como um filme que não sabe prestar o respeito devido ao mundo que tem à frente e abraça: o "Portugal actual" e a vida-tal-como-ela-é do bairro Padre Cruz. Depois, FF cita João César Monteiro, dando a entender que Canijo quer o reconhecimento fácil do público face ao que vê - mimando assim o mecanismo dramático das telenovelas, qual, enfim, "folhetim lusitano". Contudo, por outro lado, Canijo e a sua mise en scène - FF não discorda - são uma presença que forma e deforma vincadamente a realidade que documenta; Canijo é o cineasta que "vende uma visão de... qualquer coisa".

Acho que esta contradição em que cai FF– que, se calhar, é só aparente, quem sou eu? – prende-se com o facto de Canijo combater a fórmula de reconhecimento mais provinciano do “Portugal real para portugueses reais” (estilo “Zona J” de Leonel Vieira) e, ao mesmo tempo, não trair o registo realista do que tem à sua frente.

Canijo faz com que “Sangue do Meu Sangue” extravase o “bairro Padre Cruz” e o “Portugal actual” porque intervém sobre o espaço da acção com um dispositivo imagético-sonoro que faz remeter a “célula” familiar para uma engrenagem que supera largamente os seus limites geográficos e sociais – o facto de “Sangue do Meu Sangue” procurar evitar o “discurso de classes”, que já enjoa, e que abunda nalgum cinema português, e que é a grande constante nas telenovelas de todos os dias…, é disso sintomático. Numa palavra, o trunfo de Canijo é este: o "reconhecimento" em "Sangue do Meu Sangue" supera o provincianismo cultural - a mui defunta e, vá, demagógica especificidade portuguesa... - e os estereótipos (outrossim demagógicos) "de classe". Ao contrário do que diz FF, este é, precisamente, o mais anti-demagógico dos filmes recentes de produção nacional.

Penso que Canijo já temperava bem este suposto "conflito interno" com a tragédia grega nos seus filmes anteriores. Em “Ganhar a Vida”, por exemplo, parece-me claro que Canijo opta, mais fortemente/mais simplesmente, pelo registo realista – qual o modelo, a via única, deste realismo puro? Dardenne? – que FF tem como o único bom nesta crítica, texto destravado que, num acto de contorcionismo com o seu quê de insidioso, consegue chamar a si uma frase de João César Monteiro que, é preciso dizê-lo, verdadeiramente, "não pertence a esta história".

* - http://cinedrio.blogspot.com/2011/10/sangue-do-meu-sangue-2011-de-joao_12.html

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Scream 4 (2011) de Wes Craven


"Scream 4" é o "meta-meta-horror movie"; jogo de espelhos-dentro-de-outros-espelhos que só termina verdadeiramente quando o filme acaba - não! nem aí ele termina... De qualquer modo, é no início que ele nos deixa quase sem palavras perante a desmultiplicação do espaço fílmico em remakes sucessivos, isto é, variações sobre a mesma ideia que se tornou, desde o primeiro "Scream", imagem de marca dos slasher movies de adolescentes: gajas boas a trocar impressões sobre filmes de terror - em discurso sofisticado que obviamente "não lhes pertence"... isto é, discurso que é mais de Craven do que das personagens... - e um gajo de voz rouca que resolve atormentá-las com telefonemas ameaçadores - já agora, a pergunta "qual o teu filme de terror preferido?" não é bem retórica aqui... Mas não vou entrar por aí neste breve comentário. Os clichés aqui são dinamitados discursivamente, o que só torna "redundante" qualquer desconstrução da mesma natureza - "ponto a ponto" - que eu possa fazer.

Se me permitem, não fugindo ao filme e ao lugar que ocupa na série, salto para os minutos finais, em que se dá uma inversão de papéis curiosa: Sidney (a "heroína" interpretada desde o primeiro filme pela "estrela cadente dos anos 90" Neve Campbell) ouve do assassino (que não vou obviamente revelar aqui) um desabafo desconcertante. "Don't you die? Are you Mike Myers or what?" É a partir daqui que "Scream 4" dá a volta ao jogo: de facto, para frustração do público farto de franchises repetitivos, sem fim à vista, Sidney não desaparece de uma vez por todas... Ora, a regra nos slashers é que a única "coisa" que não desaparece é, por norma, o assassino (Myers, Jason, Krueger, Leatherface, etc.). Em "Scream", Sidney é o ser supranatural que resiste à morte, redireccionando o massacre para todos os que a rodeiam - se virem, apenas duas personagens a acompanham na sua vida (a jornalista e o xerife), as suas outras companhias vão alimentando, como carne para canhão, os banhos de sangue que cada filme tem reservado ao espectador.

Nesta quarta parte, cheia de metadiscurso delirante sobre a gramática do cinema de horror (muito mais inteligente que o da terceira parte, diga-se), Sidney é mais literalmente assumida como primeira - e última? - fonte do mal; a sua solidão, no final de cada filme, é o tal sinal de que, por muito boazinha que seja, ela desperta o pior que há nos que a rodeiam. Sidney está amaldiçoada, mas é ela, na sua carreira de "vítima profissional" levada ao paroxismo, que mantém o filme e o filme dentro do filme, os "Stabs" nos seus vários remakes... , vivos, eterna e renovadamente vivos. Por isso, numa tirada genial no final de "Scream 4", ouvimos da boca de Sidney esta frase penetrante dirigida ao "assassino": "You forgot the first rule of remakes (....): Don't fuck with the original!" Esta frase significa isto: "Don't fuck with the original, let the original fuck with you". O "original" aqui não é "Scream 1" mas Sidney/Neve Campbell, a imparável "motherfucking surviver" que, já se percebeu, é o principal - e verdadeiramente único - grande vilão da série, nem que fosse porque sem ela não haveria gritos de morte em cada novo capítulo deste livro eternamente deixado em aberto.

Craven é ás a manobrar este discurso pós-moderno à la matrioskas, como bem sabemos do subvalorizado último filme de "Pesadelo em Elm Street" realizado por si, "New Nightmare". Neste "Scream 4", sem perder a ironia, por assim dizer, "afiada" que caracteriza alguns dos melhores momentos da sua carreira, Craven recicla em controlado (ou controladamente descontrolado) registo auto-paródico a história de Sidney, colocando a heroína a braços com um problema que deve ser muito chato para qualquer heroína, mesmo por muito pouco "clássica" que esta seja: o de passar a se constituir, enfim, como a principal "empresária" do mal ou, usando um termo mais "cinematográfico", a grande "realizadora" do horror, no sentido em que o torna possível tal como no sentido em que "orienta" a sua acção. Mais um puzzle que Craven, se calhar, saberá, para surpresa do mundo, como "resolver" num eventual quinto filme da série.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Vem aí o novo Friedkin, o bom velho Friedkin (III): movimento como tal

A páginas tantas, no seu "Theory of Film", Kracauer escreve que as perseguições no cinema são “movimento no seu extremo, pode-se mesmo dizer movimento como tal". Friedkin não é insensível a este "movimento como tal"; filmou quatro perseguições impressionantes, em "French Connection" (a pé e usando tudo o que é transporte), "To Live and Die in L.A." (de carro) e nos subvalorizados "Jade" (à la "Bullit") e até "The Hunted" (uma caça ao homem a pé), filme que não refiro aqui, por já o ter mostrado quanto baste noutro post dedicado aos movie brats.



"French Connection" (1971)


"To Live and Die in L.A." (1985)


"Jade" (1995)


Temos, então, uma grande perseguição por década: o que nos dirá "Killer Joe" sobre esta matéria?

sábado, 15 de outubro de 2011

Stagecoach (1939) de John Ford

Peço desculpa pela falta de qualidade deste still, mas não consegui arranjar melhor.

Não vale a pena fazer aqui uma análise aprofundada de "Stagecoach". Não vale a pena, porque não sinto que tenha alguma coisa a acrescentar sem ser a típica exclamação de maravilhamento que um filme quase perfeito* como este merece ou também porque, bem vistas as coisas, um clássico intemporal desta dimensão deve ser, a meu ver, analisado plano a plano.

Proponho, assim, nesta altura, dizer umas quantas coisas sobre um plano pouco estudado e que, a meu ver, ultrapassada a contextualização, dá início verdadeiramente ao plot; aquele em que vemos, numa visão larga sobre o deserto, a diligência e a armada americana a seguirem cada uma o seu caminho. É a partir desta bifurcação, desta separação, que o filme se afunda mais nas idiossincracias de cada um dos viajantes e começa a explorar a dinâmica que se gera entre estes em face de uma ameaça: a dos índios chefiados por Geronimo, que, como sabem os protagonistas, aparecerão quando menos se espera...

O que acho interessante neste plano é o facto de Ford ter optado pelo plano largo - o master shot -, para situar dramaticamente a cisão, como que nos dizendo: "olha, lá vai o exército, o "seguro de vida" dos viajantes da diligência!" Sabemos que uma das instituições maiores do cinema clássico griffthiano é a montagem paralela, mas aqui Ford dá-lhe a volta habilmente, já que deixamos, pura e simplesmente, de acompanhar o destino das tropas e passamos como que a constituir o mais recente tripulante daquela carruagem, ela que, a partir daquele ponto, passa a estar totalmente vulnerável a uma investida índia. Esta foi uma decisão do filme mais do que das personagens, quer dizer, a câmara vai para ali, mas podia ter (sensatamente) acompanhado os homens armados. Não, Ford quer drama, quer fazer-nos sentir como aquele ponto no espaço que, por mais minúsculo, não passará despercebido aos "olhos de águia" do inimigo.

O que essa bifurcação vai significar é o sacrifício de um filme em função de outro - depois das personagens, o realizador fez a sua escolha soberana sobre... nós, espectadores. Mas estaremos cientes, nem que inconscientemente, que a outra história - o outro filme - desenrolar-se-á, mesmo não estando lá nós para ver. Daquele plano nascem caminhos divergentes, sem montagem alternada visível, mas puramente insinuada por aquela visão total, endeusada, leia-se, "de realizador".

Muito bem, mas o que acontece no fim, quando a carruagem está a ser atacada pelos índios e, num ápice, reaparece em cena a cavalaria americana? É, no papel, um típico last-minute rescue griffithiano, mas, de facto, é a "mais insinuada" das convergências entre duas histórias - dois filmes - moldadas numa estética clássica: um contado de princípio ao fim, detalhadamente acompanhado pelo espectador, e outro pressentido, à distância, "paralelamente"/"virtualmente", no espectador. Aquele plano, feito daquela maneira, permitiu este desdobramento temporal; outro plano, feito de outra maneira, por exemplo, de forma mais sincopada, deixaria o filme fluir a partir daí numa linearidade tout court, talvez, bem menos interessante.

* - Aos fãs, recomendo vivamente esta edição da Criterion em alta-definição. Coisa sublime mais de imagem do que de som, mas, em todo o caso, repito, coisa sublime.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Uma petição para se ver a força desmedida do futebol no nosso país (a minha experiência Morgan Spurlock)

(Clique na imagem para ampliar)

Não é caso para me acusarem de cinismo, a sério, mas criei uma petição, uma petição em que não depositei praticamente qualquer esforço de promoção, fi-la em poucos minutos e praticamente só promovi junto de contactos pessoais. O tema desta petição está a milhas da petição pelo regresso do cinema à RTP2. Acredito no que escrevi e acredito que haja mais pessoas a defenderem o mesmo, mas transformei essa convicção numa petição para testar, precisamente, em que medida certos assuntos ganham uma projecção mediática maior do que outros.

De um lado, então, como é conhecido de quem lê este blogue, estive à frente da petição do cinema, do outro lado, agora revelo, fui redactor - sou redactor - da petição que apela junto da Federação Portuguesa de Futebol à reconciliação entre o seleccionador nacional Paulo Bento e o jogador Ricardo Carvalho. A primeira mereceu da minha parte, e da parte dos meus colegas-redactores, muita dedicação e só chegou aos jornais quando já caminhava para as 2000 assinaturas. Esta petição sobre o tema futebol demorou poucas semanas a chegar aos jornais (hoje, numa peça do DN), sendo que não fiz praticamente nada por isso, e contando apenas com umas ridículas 29 assinaturas - agora está com 31.

É impressionante como qualquer migalha que diga respeito ao futebol, até mesmo, na sua feição mais "soap", ganha uma ressonância mediática várias vezes superior a uma iniciativa que agrega a sociedade civil em grande número e que diz respeito à nossa formação cultural! Deixo todas as restantes reflexões do vosso lado, mas, por favor, não me acusem de cinismo.

António-Pedro Vasconcelos, a RTP e o serviço público de televisão

Na entrevista que António-Pedro Vasconcelos (APV) deu no recém-criado programa do canal Q "Inferno", apresentado por Pedro Vieira (irmão Lúcia)*, ficam mais ou menos claras, pelo menos, parte das razões que levaram o cineasta a sair do programa "Trio D'Ataque" para se dedicar "à luta em defesa da RTP e do serviço público de televisão", que o comentador desportivo e cineasta em part-time diz, em tom apocalíptico, estar em risco de acabar. (Eu, pela minha parte, como já escrevi aqui, acho que sim: de facto, a RTP está em risco de acabar, mas, senhor APV, não vê televisão?, o serviço público de televisão acabou há muito tempo!)

Registo, desta entrevista, duas coisas.

Primeiro. APV diz que grassa a apatia no meio intelectual em torno desta situação de emergência nacional que é a manutenção do serviço público - tal como está? Manutenção do statu quo? Manutenção DESTE serviço público? APV parece estar na luta errada, na hora errada... É que o problema da RTP, como João Mário Grilo expôs de forma lapidar no debate Cinema na RTP2**, está na RTP e foi criado pela RTP. Foi quem lá esteve - e quem ainda lá está, bem instalado... - que resolveu virar as costas ao seu público e abraçar um conceito de audiência vindo da mais reaccionária das televisões comerciais e que em nada se coaduna com o modelo de serviço público, tal como está vertido no Contrato com o Estado e na Lei da Televisão - e, até, defendo eu, na própria Constituição.

APV é que acordou tarde para esta luta, como aliás, acordam tarde todos aqueles que, depois de terem virado a cara a esse escorraçamento de públicos perpetrado por sucessivas direcções da RTP, agora se auto-proclamam "defensores da pátria" à custa da vitimização da "RTP e do seu serviço - que só na sua cabeça é - de interesse público". Não me espanta esta atitude, tendo em conta que APV, como o próprio refere, fez parte do sistema durante 20 anos. O problema do serviço público, problema que é "do país", é precisamente este: criticar algo, ao mesmo tempo que se enxota a água do capote, se lava as mãos como pilatos, se assobia para o lado quanto às responsabilidades pessoais no actual estado das coisas. E APV esteve lá dentro durante duas décadas e, enquanto lá esteve, pouco ou nada produziu de significativo na crítica aos sucessivos atropelos ao serviço público incentivados por inúmeras direcções...

Segundo. Registo ainda aquele momento em que APV, interrogado por Pedro Vieira sobre se "Fátima Campos Ferreira não seria possível nos privados", afirma qualquer coisa como "não, impossível, o modelo de serviço público não é replicável nos privados". Quando se prepara para fazer a defesa do actual dito serviço público de televisão o que ocorre a APV invocar são todos os programas culturais - programas para públicos minoritários sobre livros ou ópera, como diz APV - que os privados não estarão dispostos a aguentar em nome do interesse público. De facto,como poderão sobreviver no selvagem mercado dos privados todos os programas sobre cinema, ópera, literatura que existem hoje na RTP? Impossível, até porque, como todos sabemos, na RTP abunda uma programação cultural de enorme qualidade.

*- Quase ao mesmo tempo (e actualizando este post - neste dia, 16 de Outubro 2011 -), APV foi ao talk show de bonecos animados do Wemans, "Noite do Óscar", repetir praticamente palavra a palavra as mesmas ideias...

** - Recordo que APV, em entrevista a um jornal, se disse "indiferente" a iniciativas do género da Petição pelo regresso da exibição regular de cinema à RTP. As suas palavras foram respondidas por um post espirituoso do Miguel Domingues.

Insidious (2010) de James Wan


Acho que sim. Acho que James Wan tem tanta razão quanto tem David Lynch ou Apichatpong Weerasethakul ou M. Night Shyamalan. É tempo de voltar à bonecada, às sobreimpressões dos castelos assombrados de Méliès, aos "falsos raccords" que nos fazem ter "visões" nos rituais satânicos de Segundo de Chomont, às sobreimpressões "gasosas" de Sjostrom, até mesmo, apetece dizer, às decapitações, hoje denunciadamente fake, de Edison. Ou, se preferirem, é tempo de voltar atrás, muito muito atrás, ao cinema primitivo, ao pré-cinema, ao cinema que ainda não era cinema, ao cinema que era fantasma do cinema. E ponto final.

Todos estes cineastas têm recorrido, com espírito de artesão e de reciclador, aos truques do cinema primitivo do virar-do-século, das ilusões fantasmáticas do psiquismo, do mediunismo, do espiritismo, etc..., seja explorando a mitologia budista das florestas (Apichatpong), seja fazendo do digital óptima oportunidade para repôr o primitivo no centro do moderno (por exemplo, "INLAND EMPIRE" de Lynch), seja tirando os fatos do armário para "dar corpo" aos aliens de "Signs" ou à criatura arbórea de "The Village" ( filmes artesanais de Shyamalan), seja, indo ao que nos interessa, espantando espíritos do além que se materializam à nossa frente, entre campos.

É isso que faz brilhantemente James Wan neste "Insidious", pelo menos, até tornar a história excessivamente "auto-explicativa" e se deixar preocupar demasiado com o fio narrativo, uma "busca por uma coerência" que é completamente desnecessária, na medida em que este era um filme até então alimentado quase em exclusivo por um medo elementar pela coisa aparecida, coisa lendária que se presentifica, num ápice, entre o rosto de uma personagem e a reacção da outra. Um papão, que, como o papão, não precisa de grandes contextualizações narrativas.

A chegada do homem-macaco da floresta, espírito do além, em "Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives" de Apichatpong é um belo exemplo de como este "horror primordial" não precisa de se sustentar em ligações narrativas puras e duras, como aquelas que "colam as peças todas" nos últimos minutos deste filme de Wan. De qualquer modo, apetece dizer que este cineasta, que se deu a conhecer ao mundo com "Saw" e que, com isso, fez muito dinheiro, mas ganhou uma etiqueta estigmatizante para a vida... digo, apetece dizer que com "Insidious" Wan livra-se já de algum do excesso estílistico dos seus filmes anteriores, bem como das tais amarras narrativizantes que, ainda assim, para nosso mal, ainda estão presentes na recta final do filme.

Contudo, olhando para "Saw", "Dead Silence" e este seu mais recente filme - excluo aqui "Death Sentence", filme quase fascista que, apesar de tecnicamente apreciável, não creio que possa entrar nesta análise -, fico completamente convencido que Wan é algo mais que apenas um realizador de terror competente. O seu gosto pelos tais truques primitivos do cinema tem-se vindo a intensificar, o que pode parece pouco claro face ao destino muito tortuoso e profundamente desgastante que levou a saga Saw. Contudo, sugiro olharmos por segundos para a personagem de Jigsaw no primeiro filme: um boneco "controlado" por uma voz humana, de origem incerta. Ora, não é essa a história do fantoche tenebroso de "Dead Silence"? Esta obsessão pelo ventriloquismo, que lembra imediatamente as histórias de alguns filmes antigos, como "The Great Gabbo" de James Cruze e Erich von Stroheim, empresta ao universo de Wan uma dimensão matérica-fake que não conhecemos na maior parte dos filmes de terror contemporâneos; estamos, enfim, no território das aberrações de circo, espaço onde precisamente o cinema começou a ser visto - o kinetoscópio de Edison.

Em "Insidious" Wan leva esta imagem ao limite: já não temos o tal boneco amaldiçoado, mas antes as personagens podem, a qualquer altura, constituir-se como objectos de manipulação demoníaca. Vemos a certa altura a criança "possuída", ou, como qualifica a medium outrossim lynchiana do filme, "assombrada", a ser manipulada como um fantoche por um vulto. Ela é um boneco à mercê do "recreio do mal", algo em que o pai acabará por se tornar para salvar o filho, mas, para tal, terá de abandonar o corpo e viajar no mundo dos espíritos - o filme perde alguma da materialidade primitiva a partir daqui, mas não deixa de insistir nalgumas soluções visuais que se riem na cara de muitos horror movies contemporâneos, a maior parte deles feitos de aparato CGI completamente desmaterializador (!) ou de espirros de sangue permanentes e quase-sempre-gratuitos ou, pior!, muita conversa de chacha.

O "homem com fogo na cara" parece parte de uma dessas histórias de fantasmas de Apichatpong ou das lendas urbanas que assombram "Mulholland Drive" - estou a pensar, por exemplo, no homem escondido nas traseiras do restaurante... A sua história permanece mais ou menos difusa até ao fim, algo que só posso elogiar em razão do ruído explicativo que se gera no final. Com efeito, este demónio permanece, depois do filme acabar, com(o) uma "história por contar", lenda horripilante do universo de Wan - quem sabe, ventríloquo de serviço para futuros novos velhos sustos? Não, vamos fechar este capítulo e deixar o papão continuar... papão.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Recorte de falas (VIII): Alien: Resurrection

Um horror de filme e não um filme de horror. É Jeunet, aquele francês insuportável, histérico e histriónico como um cartoon, afectado e amaneirado como um vídeoclipe - daqueles do MCM -, asqueroso como os bichos desta quarta parte da saga Alien - dizem que é a última, mas o Ridley Scott já anda aí à espreita de uma prequela ou sei lá... Enfim, enquanto não afundam ainda mais em caca um dos poucos franchises americanos com bom cinema lá dentro, resgato aqui uma coisa boa de "Alien: Resurrection". Não se assustem: é só um diálogo, entre Sigourney Weaver (Ripley) e a recém-desmascarada androide Wynona Ryder (Call). Johner é Ron Perlman, em papel de homem-macaco, aquele que lhe sai quase sempre na rifa que até enjoa (de "O Nome da Rosa" a "Hellboy").

Ripley: [after discovering Call is a robot] You're a robot?
Johner: Son of a bitch! Our little Call's just full of surprises.
Ripley: I should have known. No human being is that humane.

Alien 3 (1992/2003) de David Fincher


A questão da maternidade de Ripley é finalmente assumida como "main subject" no terceiro filme da saga Alien. Ripley perdeu uma filha, que a ultrapassou em longevidade no decurso de uma viagem intergaláctica pelo eixo espaço-tempo... Zuuuummmm, se em "Alien" a protagonista tinha alguma coisa por que voltar, em "Aliens" esta "mulher de armas" enfrentava a notícia impossível: a sua filha morrera, já velhinha... Perdida no espaço e no tempo, Ripley foi projectada no futuro, mas não perdeu a sexyness - e apetece dizer que as cabeças "interiores" dos bicharocos vão-se falocratizando cada vez mais à medida que Ripley está só, sem companheiro, mas sobretudo, agora, pela primeira vez, "sem cria".

Não quero virar Zizek aqui - quem sou eu para isso, que nem li o Lacan de uma ponta à outra... -, mas parece-me evidente que estes filmes, que agora revejo passados bons anos, são de uma sensualidade inusitada: Weaver não é a típica "mulher viril", ela é, ao invés, a mais feminina das "mulheres viris". Perante uma ameaça de morte, debaixo de um clima de enorme tensão psicológica ("Alien") ou de explosão nervosa e cinética ("Aliens"), como pode o milieu sexualizar-se? Pode fazê-lo graças aos temas da maternidade de Ripley e do desejo da besta (= possuir Ripley), que, como todos os desejos profundos, ou melhor, como todas as fantasias "humanas", tarda em realizar-se.

No terceiro filme, Ripley perde a rapariga que tinha cuidado como se fosse sangue do seu sangue - ela, uma sobrevivente dos "maus tratos" da besta, ela, a última esperança de Ripley de concretizar o tal "sonho adiado da maternidade", ela que a fazia sentir mulher num meio de homens de barba rija, ela, enfim, símbolo da sua luta contra a besta, ela, ainda não acabei, que motiva o épico "cat fight" entre Ripley e a Rainha dos bichos no final da obra-prima de Cameron... A morte da rapariga, que abre friamente o terceiro filme da série, é o começo do fim para Ripley. Agora está de novo completamente só - no espaço... pior, numa prisão no espaço, precisando ainda mais, entre violadores e homicidas vendidos ao Diabo, a quem votam orações como se se tratasse do Messias que os vai redimir de todos os pecados. Ripley procura então uma solução última: deixar de fugir da besta, juntar-se a ela fazendo-se parte da família. A gravidez não planeada é o culminar da luta de Ripley contra o instinto maternal, talvez, o elemento que melhor liga os três - na realidade, os quatro! - filmes da saga Alien.

Por tudo isto, fico chocado com a versão reeditada do filme de Fincher, feita de propósito para a edição em DVD de 2003 - e que, agora em Blu-ray, foi recuperada com a bendita opção de ver o original de 1992. Para tornarem congruente o início do medíocre filme de Jeunet, os produtores decidiram cortar o instante em que Ripley volta a ser mãe momentaneameante, antes de ser engolida pelo fogo, dando à luz a nova Rainha dos alienígenas - é uma menina!

Se Fincher tinha pensado fazer de "Alien 3" uma espécie de obra de capela que punha Ripley e o Alien no mesmo plano messiânico; como se ambos fossem, enfim, parte da mesma "mensagem divina" que, pela morte?, ia libertar os prisioneiros da sua vida de sacrifício, então a amputação do ending original só pode constituir um inaceitável golpe nas intenções mais arrojadas de Fincher. Ora, ao cortarem essa cena icónica, os produtores do filme esvaziaram de significado litúrgico o suicídio final, momento do "nascer" e momento do "morrer" - na realidade, momento-síntese da trilogia em que Ripley QUASE materializa o seu sonho de "renascer" dando vida a algo. Uma versão criminosa, portanto, de um filme que, pela sua fragilidade congénita - que não quero com este comentário camuflar -, merecia cuidados suplementares.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Sangue do Meu Sangue (2011) de João Canijo (II)


Não sei se fui claro na minha crítica a "Sangue do Meu Sangue", mas o que, em termos simples, quero dizer, ou melhor, quero tornar mais claro para a malta que só percebe o cinema em "taglines" ou frases monossilábicas "de crítico" para colar em cartazes, é o seguinte: não vejo, de modo algum, "Sangue do Meu Sangue" como o filme mais "português do mundo" ou mais "português" que os outros filmes portugueses, ou que mostra a realidade portuguesa tal como ela é - só falta dizer "na sua pureza" - ou outro tipo de formulações ligeiras e algo patrioteiras que tenho lido por aí... "Sangue do Meu Sangue" é tão português como "A Esquiva" é francês, como os filmes de Brillante Mendoza são sobre as Filipinas.

Joga-se bem para lá do bairro Padre Cruz/realidade sócio-económica das periferias de Lisboa, bem para lá da nossa especificidade cultural, na realidade, "Sangue do Meu Sangue" é um filme desenraizado pelo seu dispositivo áudio/visual - é ele que faz ascender o último filme de Canijo à tal "universalidade" que refere o próprio cineasta na entrevista que deu no Câmara Clara. A especificidade portuguesa é a sua falta de especificidade no mundo global ou glocal ou, se preferirem, mediaticamente rendilhado (mise en abyme permanente).

Nesse sentido, um filme como "No Quarto da Vanda" é intensamente mais português do que este filme de Canijo - desde logo, a presença constante de "ecrãs", de "ecrãs de ecrãs" ou de "caixas de ressonância sonoras" (os tais "planos sonoros" que refiro no último comentário) puxam-nos permanentemente daquele meio pequeno, para um MEIO maior, que é, enfim, o mundo no seu conjunto, o mundo do Mundial de Futebol, o mundo da Internet e o mundo replicado ad eternum das emoções humanas, o verdadeiro primeiro traço de globalidade no cinema. Se queremos abraçar esta experiência, é importante superarmos as etiquetas banalizadoras - é essa a minha crítica à crítica, mesmo à que gostou tanto ou mais do que eu deste último filme de Canijo.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sangue do Meu Sangue (2011) de João Canijo (I)


O espaço em Canijo tem uma dimensão ontológica. Algo que não encontramos facilmente na obra de outro cineasta, salvo, talvez, Yasujiro Ozu. Mas por quê ontológica? Porque em nenhum outro cinema compreendemos tão bem a importância que o meio tem na "forma" como as emoções se cosem e descosem entre si. Emoções familiares, no caso de "Sangue do Meu Sangue", mas isto não é novidade nenhuma: já "Noite Escura" e "Mal Nascida" dissecavam bem fundo, sem medo de dessangrar, uma família, um organismo construído "pedaço a pedaço" pela câmara fluída, diríamos até, "já arterial", que quanto mais filmava mais ganhava corpo à nossa frente.

Em "Sangue do Meu Sangue", temos o corolário desta mise en scène baziniana, onde a câmara atravessa, em profundidade, o espaço de uma casa familiar no bairro Padre Cruz e, a par dele, onde a câmara aprofunda, a partir de cada rosto e de cada gesto, as relações entre os membros da família, que, como todos os membros, são parte de um corpo uno e múltiplo ao mesmo tempo. A câmara marca o território nesse corpo, o da "casa" e o das "emoções". Mas em ambos as coordenadas são claras, porque, como bem revela este como os outros já citados filmes de Canijo, essas são também as grandes coordenadas genéricas do cinema - e é aqui que o "espaço" ganha a tal "dimensão ontológica" que afirmei tão peremptoriamente no início.

Porque esta casa de família - como todas... - faz-se de divisões: X quartos, Y casas-de-banho, normalmente apenas uma cozinha, normalmente uma sala, etc... Como na montagem cinematográfica (dispositivo que separa para juntar - não é essa a função paradoxal do corte?), uma casa constitui-se na sua própria divisão. Ora - diz muito eloquentemente Canijo - as relações humanas, sobretudo, as familiares, como corolário, também "funcionam" assim.

Enfim, a família de "Sangue do Meu Sangue", que circula nas artérias de uma mise en scène total, disse, e penso que bem, ultra-baziniana, apresenta-se a nós, desde o primeiro instante, como uma multiplicidade sob o mesmo tecto; uma multiplicidade unida (= mantida una) pelas suas divisões. Os sobreenquadramentos constantes, em espaços exíguos, produzem um raccord puramente espacial (por onde circulam gente e sons), só possível graças a uma câmara que, movendo-se "entre muros", apenas procura registar, isto é "seguir as coordenadas de...", o dia-a-dia pulsante de um organismo familiar típico - esta é uma casa como as outras, e a sua universalidade é, como bem refere Canijo em entrevista, incontornável... os planos finais, a dar conta da imensidão do "habitat geral", constituem uma solução (quase neo-realista) que sintetiza a dimensão microcósmica desta história, algo que apenas esparsamente era detectável nas suas duas tragédias "à portuguesa".

Mas, retomando o raciocínio que iniciei, o espaço que Canijo nos mostra é um espaço dilacerado: o exterior e o interior, não esquecendo o entre (= as suas múltiplas trocas), ambos têm a sua cartografia e é ela, em suma, que importa revelar e percorrer. Amor e betão... amor transformado em betão, betão transformado em amor. Todas as famílias operam esta alquimia matricial, por isso, a casa morre quando é abandonada tal como uma família se ressente de uma "mudança" - o betão sai fora quando trocamos de casa, é preciso pôr o quotidiano, com os seus múltiplos rituais e sacrifícios, a operar o "entranhamento" do novo betão. Nem de propósito, esta ideia - a ameaça da mudança - é talvez a primeira a tirar o sono, desde logo, à principal mulher da casa.

O que determina "a forma" como o plot se vai desenrolar prende-se com a posição de cada personagem dentro de casa, por isso, a mãe (a sempre grande Rita Blanco) que está quase sempre na cozinha com a filha - e que dorme com ela no mesmo quarto - vai-se deixar envolver na história do adultério desta última com um professor; por outro lado, o filho - apetece dizer "da mãe" -, o delinquente da família que vive do tráfico de droga, está quase sempre em frente ao televisor com a sua tia protectora (exigentíssimo papel de Anabela Moreira), quem, com o desenrolar do filme, se vai deixar envolver pela história de uma dívida de "vida ou morte" que aquele contraiu com o seu principal fornecedor.

Enfim, as personagens-mártir (femininas - claro, estamos num filme de Canijo -) vão ser aquelas cujos corpos passam, subitamente, a co-habitar com uma ameaça-a-eliminar ao organismo familiar; uma ameaça "trazida" de fora. A casa serve de porto de abrigo, de quartel-general, de lugar de quarentena... a casa é o habitat primordial que será defendido, no mais terreno dos heroísmos, por duas mulheres. Mas, como já se disse, ele é um entre vários. E isso não é só sublinhado pelos planos finais dos créditos, mas ao longo de todo o filme por um inquietante dispositivo sonoro que Canijo já tinha usado nos seus outros filmes, mas que aprimora magistralmente aqui.

As divisões comunicam entre si precisamente através das conversas que se entrucruzam à distância: num primeiro "plano sonoro", temos as palavras que circulam "entre divisões", chocando umas com as outras, no limite - nunca atingido - da cacofonia; num segundo plano, temos o ruído dos electrodomésticos, mais notavelmente, os televisores sempre abertos a disparar relatos de futebol do Mundial ou telenovelas da TVI; num terceiro plano sonoro, temos os barulhos do bairro que são, enfim, um concentrado de múltiplos, acabados de descrever, primeiros e segundos "planos sonoros".

Ou seja, praticamente todas as cenas de "Sangue do Meu Sangue" - simultâneas, "contíguas" no espaço da casa, no espaço das relações - apresentam-se contaminadas por um "exterior" que as replica em eco, uma espécie de poluição sonora entranhante que atravessa em vagas sucessivas cada instante, sendo que cada vaga transporta consigo a sugestão que se estamos a ver este filme, nesta casa, sobre esta família, é porque não estamos a ver outro qualquer filme, noutra casa, sobre outra família do qual dele só ouvimos, à distância, o ruído inextricável, mas, ao mesmo tempo, "modelar" de um "macro-habitat" comum. Que, já agora, não é Padre Cruz, não é o "Portugal real"; é, antes disso ou depois disso (a ordem não interessa...), o mundo na sua durée.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Newsletter #8: Iosseliani


Assim, rápido, o que me ocorre dizer sobre Otar Iosseliani? Desde logo, que foi o realizador soviético, que é o realizador georgiano mais "francófilo" que poderíamos conceber, alguém que faz respirar nos seus filmes imagens de Tati, Vigo, Renoir, etc. Em entrevista publicada pela Artificial Eye na edição com os filmes de Vigo, Iosseliani confessa o seu amor profundo - fundamental! - por "L'atalante", o que não nos espanta, face à verdadeira imagem-símbolo do seu cinema que é a água e o seu movimento essencial, na sua fluência que não olha para trás, na sua leveza "flutuante" sobre os prazeres pequenos da vida, que embala esta ou aquela fábula urbana de espírito hedonista, neste particular, mais à la Renoir e Tati do que propriamente à la Vigo, apesar de o eternamente jovem génio francês estar sempre lá, em cada pulsação - que, na verdade, é "pulsão fetichista" - do cinema de Iosseliani. Vamos abrir as portas deste universo na newsletter de Novembro.

De resto, mantemos as nossas rubricas habituais, com todo o género de sugestões vindas do mercado nacional e internacional de filmes e livros, sem esquecer um "zapping clínico" - perdoem-me o oxímoro... - pelas programações de cinema na TV e uma saltada, sempre deliciosa, a uma loja "de carne e osso" - e, com isto, não me refiro a nenhum bem fornecido talho nacional. Mas, continuando a falar de pratos fortes da próxima edição da nossa newsletter, podemos já antecipar alguns dos nomes que estarão em destaque nas rubricas referentes às últimas e às descobertas e às pechinchas...

Nos filmes, damos as boas-vindas a "Accatone", finalmente disponível em edição apreciável no mercado anglo-saxónico; iremos saudar a chegada de dois filmes de culto de Robert Kramer ao seu país - finalmente! -; não deixaremos, com certeza, de falar de novos, e apetecíveis, lançamentos no mercado nacional (por exemplo, da última obra de Wiseman estreada comercialmente em Portugal e muito elogiada aqui no CINEdrio); Anh Hung Tran, Rafi Pitts e outros importantes nomes do cinema mundial contemporâneo farão também parte do cardápio em preparação.

Nos livros, assinalaremos as descobertas/lançamentos de livros de autores como Émile Benveniste, Raymond Bellour, Stanley Cavell e Giorgio Agamben. Prometemos aprofundar o trabalho de arqueologia livreira, com vista a fazer chegar aos nossos leitores mais "especializados" as maiores raridades do mercado livreiro concernente ao cinema, fotografia, semiótica/filosofia da imagem, etc.

Ah, e o nosso próximo entrevistado será o Carlos Natálio do blogue Ordet.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Newsletter #7 tornada pública como amostra


Clique na imagem para consultar a newsletter #7, que tornamos pública como amostra. E, não se esqueça, divulgue.


A sétima newsletter do CINEdrio mereceu algumas modificações estruturais com vista a uma navegação mais ergonómica e, também, à disposição mais completa de todas as novidades no mercado (inter)nacional de livros e filmes. Estas melhorias surgem como pretexto para a celebração da marca dos 90 subscritores que batemos ao longo do mês passado - obrigado a todos os que confiam neste serviço que tem a carolice como única palavra de ordem.

Para levarmos a celebração ainda mais longe, eu e o Francesco decidimos publicar na íntegra esta edição a pensar em todos os que ainda não subscreveram a nossa newsletter. Servirá de nova amostra desta ferramenta, que julgamos ser útil a mais gente, mas que ainda não teve a oportunidade de chegar a todos.

Veja, partilhe e critique. O nosso sucesso depende da qualidade de quem nos lê.

ERRATA desta edição: rectificamos a bold uma gralha detectada na análise ao lançamento dos dois Blu-ray de Claude Chabrol: "Le beau Serge e Les cousins surgem-nos agora em alta-definição no mercado francês (legendados em inglês), pouco tempo depois de terem integrado o exclusivíssimo catálogo da Criterion Collection."

sábado, 1 de outubro de 2011

Vem aí o novo Friedkin, o bom velho Friedkin (II)


Não ganhou o Leão de Ouro. Dizem que foi acusado de ser um filme fabricado, demasiado fabricado... com vista a sacar de cada cena um efeito cool tão falso quanto irresistível. Um relógio suíço muito americano, terão pensado os seus detractores. Não nos espanta minimamente que pensem assim: corpos diferentes com cérebros idênticos disseram coisa bem pior do filme mais "calculado" do mundo, "Cruising". Calculado na luz, nos gestos...ou melhor, Friedkin tem destas coisas: ele trabalha, de facto, sobre "efeitos" como nenhum outro realizador. Cada cena é carpinteirada com uma precisão que choca, muitas vezes, com a sua "pouca forma" narrativa.

Os filmes de Friedkin são trabalhados atomicamente e não anatomicamente; as ligações, a meu ver, parecem interessar pouco a Friedkin, que cose e descose com grande facilidade - quase desleixo? ou será... um desleixo controlado? Ou será o desleixo controlado aquilo que muitos dirão ser o grande pecado do realizador de "French Connection" e "O Exorcista": a sua eventual falta de moral, traduzida num cinema amoral, formal no ponto, informal na linha...? Exemplo?



Ok, peguem nesta cena de "Killer Joe" e digam-me se não é das coisas melhor montadas que viram nos últimos tempos e digam-me se não é assim por causa da postura dos actores - calculada? Pois! -, do seu pace a andar e a falar - calculado? Pois! - ou por causa da forma como isto tudo é mostrado pela imagem e, não menos importante, pelo som - realização e montagem calculadas? Pois! O "cling" do isqueiro a servir de linha entre o interior da sala de bilhar e o exterior, onde "joga" a beldade; entre o negócio fechado com Hirsch e o "sair fora dele"... McConaughey vai abrindo e fechando o isqueiro e o som que produz - ultra-cool, ultra...calculado? - gera uma linha invisível que liga o dentro e o fora. A solução surge no meio - como quase sempre na vida? Não, esqueçam, não há mesmo moral aqui... apenas o tal gesto "no vazio" que liga as partes.

E o que é que isto tem a ver com o átomo friedkiano? É que o realizador norte-americano, como acontece em "Bug", por exemplo, não se interessa muito pelos pretextos anedóticos que tornam coesa - aos olhos do espectador-médio - as intrigas dos seus filmes. Ele parece trabalhar muito mais sobre cada cena do que sobre as ligações entre as cenas - há uma descompensação que o torna, a meu ver, pouco consensual. As cenas, contudo, ressoam umas nas outras através desses sons e movimentos calculados ao milímetro. Penso que toda esta maquinaria que é o seu cinema denuncia-se, isto é, humaniza-se, fragiliza-se, precisamente, nos intervalos. É o tiro no pneu que atira o espectador para fora da estrada e o impede de adorar Friedkin. Uma pena quando assim é.

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