domingo, 30 de novembro de 2008

Dra. Estranhoamor


"Dr. Strangelove" (1964) de Stanley Kubrick tem um Peter Sellers em papel triplo: faz de Presidente dos EUA, de oficial da RAF e incarna o catatónico dr. Estranhoamor, homem tetraplégico, de corpo semi-mecânico, especialista em coisas de guerra. Na chamada war room, o dr. Estranhoamor exorta sobre a possibilidade de uma ofensiva contra a URSS, depois de um cowboy lunático ter "montado", sem pedir autorização, uma bomba que caiu directamente em território inimigo. O sistema de defesa norte-americano fica em polvorosa quando dá conta da sua própria desarticulação. Estranhoamor é o espelho antropomórfico disso mesmo. Nos momentos mais inoportunos, o seu braço direito deixa-se domar por uma espécie de tique que o revela mais do que o diminui. O desconcerto é total quando dele irrompem as mais firmes saudações nazis.

Em tempos, o cavaquismo era sinónimo de uma estratégia política baseada no silêncio (aquele que fala...), num calculismo levado ao extremo (levar à boca, quando melhor convier, o santo bolo rei) e num sentido de responsabilidade e rigor insofismáveis. A melhor amiga de Cavaco Silva seguiu todos estes preceitos quando esteve à frente do Ministério das Finanças. Dela ficou essa imagem (pouco feminina?) de frieza e de uma inabalável irredutibilidade. Na campanha eleitoral para a liderança de um partido em cacos, essa senhora fez da exigência de "falar verdade" um dogma; por isso, não falou... E nesse silêncio o mesmo partido viu a miragem de um lugar remoto chamado Cavaquistão. Imediatamente, a mesma senhora tornou-se presidente desse partido esfrangalhado.

O silêncio prolongou-se, mas, de súbito, vozes (vindas de dentro e, sobretudo, de fora) vieram dizer que ele já não falava como antigamente. Então a senhora falou "de facto" e ouviram-se coisas como "não à imigração", "acabe-se com o jornalismo feito pelos jornalistas" e, a última, "suspenda-se a democracia para resolver a crise". Dizem que são gaffes, mas nós desconfiamos: fazendo jus àquela imagem de rigor e exactidão, pensamos que os "deslizes" da dra. Manuela Ferreira são, acima de tudo, tiques reveladores de um estranho amor à democracia... sem braços mecânicos.

Noir que é noir deve começar onde o passeio acaba

"Where the Sidewalk Ends" (1950) de Otto Preminger

"Sunset Boulevard" (1950) de Billy Wilder

sábado, 29 de novembro de 2008

Oito anos depois, um motim... (I)

Parece que é desta que John Carpenter vai voltar às longas-metragens. Muito se especulou sobre qual a longa-metragem que se iria seguir a "Ghosts of Mars", filme que realizou há mais de 7 anos. Falou-se de uma sequela (de "The Thing", "Big Trouble in Little China" e até de "Escape From L.A."), de um western moderno chamado "The Prince" e, mais recentemente, de um thriller de horror intitulado "L.A. Gothic" . Depois de muito esperarmos - e de uma integral justíssima na Cinemateca de Lisboa (que ainda não acabou) -, temos finalmente notícias mais concretas sobre o seu próximo filme: "Riot".

O argumento de Joe Gazzam parece enquadrar-se no universo de Carpenter: a história desenrola-se integralmente dentro de uma prisão e o herói, Karl Rix (nome très carpentiano!), é um condenado que vai proteger um adolescente contra o motim que dá título ao filme. Perante isto, perguntamo-nos se estes oito anos de intervalo poderão traduzir-se com "Riot" numa nova transformação do universo de John Carpenter, ou seja, numa inflexão mais ou menos radical no estilo (incompreendido pela maioria) de "Vampires" e "Ghosts of Mars".

Achamos que isso poderá acontecer e a presença de um actor com a dimensão comercial de Nicolas Cage implicará algumas cedências da parte do realizador - e veja-se a importância do seu nome no cartaz do filme (como se vê abaixo, o nome de Nicolas Cage aparece acima do de Carpenter e dizem-nos que "Riot" será uncaged no ano de 2009). Condição sine qua non para a reconquista da crítica e do público norte-americanos será um regresso mais evidente às suas primeiras obras-primas, desde logo, "Assault on Precinct 13".

Com "Riot", esperamos um Carpenter mais (flagrantemente) clássico, que poder-se-á apresentar perigosamente no limiar da auto-cópia. Mas isso não nos assusta: acreditamos que o seu génio, inconformado e rebelde, poderá transformar um projecto potencialmente comercial em mais uma obra-síntese do seu cinema - e, já agora, em mais um exercício puro de realização... Não deixamos, no entanto, de fazer duas perguntas:

1. Como gostaria que fosse a próxima longa-metragem de John Carpenter, "Riot"? Um regresso às origens; Nova aposta no estilo de "Vampires" e "Ghosts of Mars"; Uma reciclagem radical do seu cinema; Um veículo para Nicolas Cage; Outro. Qual? (por favor, responder neste ou nos próximos posts afectos a esta sondagem).

2. Como avalia a escolha de Nicolas Cage para o papel principal de "Riot"? Nada promissora; Pouco promissora; Indiferente; Promissora; Muito promissora; Não quero saber de "Riot" para nada.

As respostas às duas perguntas deverão ser registadas no pequeno inquérito que apresentamos na coluna à direita deste blogue. A sondagem terminará dentro de um mês, no dia 1 de Janeiro. Entretanto, procuraremos fazer com que todas as novas informações que se publiquem sobre "Riot" tenham eco aqui, no CINEdrio.

The Life Aquatic with Steve Zissou (2004) de Wes Anderson

Wes Anderson é o autor de um dos universos mais originais do cinema norte-americano da actualidade. (Até aqui ainda não há elogio.) O cineasta de "Rushmore" (1998) conseguiu criar um "cinema da imagem" que se alicerça na construção meticulosa de um décor fantasioso, que nos remete quase sempre para uma memória mágica, inocente e melancólica de uma infância não vivida. Os adultos de Wes Anderson agem por impulso e imprevisivelmente... como crianças.

No entanto, a maior parte das histórias dos seus filmes são de uma complexidade humana que rompe, em toda a linha, com a estética infantil e naif do seu cinema. Outro elemento fundamental desta "estética" é precisamente a interpretação dos actores, com o hiper-cool Bill Murray à cabeça. O seu fácies inexpressivo, os gestos automáticos e intempestivos revelam uma espécie de "burlesco contido", paradigma do mood geral que perpassa os filmes de Wes Anderson. Tudo isto em sintonia com uma escrita off-beat, doce-amarga, que contrasta, mais uma vez, com a minudência, a paciente meninice e a doce fragilidade do milieu andersoniano. Mas deixemo-nos de generalizações e foquemo-nos naquele que, em termos rigorosos e justos, é um dos mais importantes filmes desta primeira década do século XXI. (Aqui só não há elogio para quem continua a achar que o cinema morreu lá para meados dos anos 70...)

"The Life Aquatic with Steve Zissou" (2004) é um filme sobre uma equipa de mergulhadores à procura de um tubarão que não sabem se existe ou não. É também um filme sobre uma equipa de realização à procura de um filme que não sabem se vai existir ou não. E é ainda, entre outras coisas, um filme sobre a relação impossível entre um pai que não pode ser pai e o seu filho. "I hate fathers", diz a certa altura Zissou (Bill Murray) a Ned (Owen Wilson). Todas estas camadas (da autoria de Noah Baumbach) vão sendo construídas a bordo do grande "couraçado" comandado por Zissou: um caça-submarinos da II Guerra Mundial transformado numa embarcação sui generis, o Belafonte, que nos é apresentada num dos mais saborosos planos de todo o filme.

Se os tripulantes e embarcação não pertencem à nossa realidade, também aquilo que estas observam e procuram, para "efeitos científicos", tem mais a ver com o universo do filme do que com o nosso: até os peixes que são objecto dos documentários, à Jacques-Yves Costeau, de Zissou são criados, moldados e baptizados pelo imaginário de Wes Anderson e... pelo realizador de "The Nightmare Before Christmas" (1993). O trabalho de animação de Henry Sellick é soberbo: desde o cavalo marinho multicolor do início do filme até à aparição do deslumbrante tubarão-jaguar, o grande momento re-ligioso (ao som de Sigur Rós...) de "The Life Aquatic". No fim, as principais personagens do filme descem às profundezas do mar para chorar a morte de Esteban e o sofrimento de Zissou. Com esse gesto de altruísmo, espécie de comunhão na dor, elas estão também a pedir (ao grande Deus marinho) a absolvição dos seus pecados.

O filme tem dedicatória final a Costeau, mas também indirectamente a David Bowie. Pelé, ou melhor, Seu Jorge é o autor (em som directo) de grande parte da banda sonora de "The Life Aquatic". Ao longo da viagem, ele tem como meio de expressão a guitarra, a voz e a lírica em brasileiro (!) de Bowie (Starman, Life on Mars, Queen Bitch, etc). Alguns dirão que as personagens de Wes Anderson não passam de "mais um" adereço ou enfeite no seu cinema. Pensamos que quando Anderson faz associar as suas personagens a determinadas marcas visuais (como a indumentária, um objecto ou mesmo uma cor), está precisamente a ironizar com esse gesto estereotipizante - "He is my nemesis!", rabuja Zissou à sua mulher (Anjelica Huston) numa tentativa desesperada de a proteger do charme venenoso de Alistair Hennessey (Jeff Goldblum).

Em "The Life Aquatic" este aspecto é especialmente conseguido: apesar de quase todos os tripulantes do Belafonte usarem a mesma pele (farda com a insígnia Z e os sapatos Adidas retro), por baixo desta vamos descobrindo qualquer coisa de profundo e violento, que os faz sobressair do background tal como os aproxima do "nosso" mundo. Mas também aqui o universo de Wes Anderson funciona de forma quase orgânica: a diferença das personagens de "The Life Aquatic" está mais na relação destas entre si do que em cada uma delas, na sua individualidade.

Não queríamos ir tão longe, mas não nos parece totalmente inocente a cena em que Zissou traça uma linha no convés e pergunta à tripulação quem está com ele e quem não está. Com efeito, esta cena faz-nos lembrar, por instantes, a sequência de "O Couraçado de Potemkine" (1925) que está na origem do motim a bordo do grande navio: no convés, o comandante diz, por outras palavras, que quem está com ele deve dar dois passos em frente e quem não os der será enforcado na verga. Zissou é mil vezes menos dramático; apenas expulsa do Belafonte quem não estiver com ele e, no caso do dissidente ser "estagiário", acresce a penalização de um "suficiente menos".

Ainda assim, esta alusão subliminar de Wes Anderson à obra-prima soviética pode ser vista como uma afirmação política no seio do seu cinema (logo, uma afirmação puramente cinematográfica): o "zissouísmo" é a ideologia do amor, da união, da fraternidade, da comunicação e da falta dela, da anarquia, dos crescimentos forçados, da exasperante procura de um lugar (em terra firme?), dos sonhos não vividos e dos amores frustrados. Eis o círculo perfeito da existência humana num filme sobre uma fantasia (os peixes, o Belafonte e a tripulação) que degenera violentamente num sentimento real (o interior das personagens). Ou num "zissouísmo"...

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Bonjour Tristesse (1958) de Otto Preminger

Não compreendo muito bem o estatuto que "Bonjour Tristesse" (1958) ganhou dentro de uma filmografia tão singular como a de Otto Preminger. Nele encontramos muito pouco daquilo que poderá caracterizar o melhor do seu cinema, nomeadamente, os longos takes, a câmara subtil que enquadra cenas inteiras, a montagem descarnada e, no substrato de tudo isto, histórias sobre jogos de espelhos e exercícios de moral no limiar da perversão.

Este é o Otto Preminger na sua feição mais assumidamente light; é o seu filme de férias com, fazemos-lhe justiça, uma coisa que tão bem representa o cinema do realizador austríaco: actrizes excepcionais e lindíssimas. No caso, a já veterana Deborah Kerr no papel de uma mulher sofisticada que se transforma numa madrasta implacável para Jean Seberg, o grande ponto de equilíbrio de todo o filme. É esta que faz a ligação entre o presente e o passado; que se posiciona, sempre, entre o pai (David Niven) e as suas amantes. Também aqui vemos outro elemento identificador do cinema de Preminger: as diferentes formas que tomam as relações entre pais e filhos, mais concretamente, entre pai e filha. Uma espécie de abordagem anódina ao complexo de Electra que leva Jean Simmons ao homicídio no noir "Angel Face" (1952).

O filme começa como o realizador gosta: a preto-e-branco. A voz-off aparece para centralizar a nossa atenção no interior convulso, contraditório, de Jean Seberg: uma rapariga que, à beira da idade adulta, receia ter perdido para sempre a capacidade de ser feliz... ao pé do seu pai. A expressão de Seberg diz tudo; o seu rosto é o ecrã onde se desenrola um outro filme, desta feita, a cores, as mais garridas: um fabuloso technicolor que leva à saturação a cor do mar, das rochas, do céu e da vivenda onde Seberg, o seu pai e "as mulheres" deste passaram um Verão tempestuoso.

A montagem alterna agora para este filme (o passado), enquanto o outro (o presente) continua a desenvolver-se fora de campo. Desde logo, esta solução pesada de montagem - com voz-off e flashback - é, a nosso ver, algo impositiva desde os primeiros instantes do filme: as personagens aparecem-nos "por apresentar", in media res, e praticamente só as vamos conhecendo mediante o recurso (preguiçoso q.b.) à narração da personagem de Seberg.

Pensamos que esta dança - entre o presente e o passado - e a narração omnipresente tornam "Bonjour Tristesse" num filme demasiado artificioso, excessivamente auto-explicativo, que força a identificação do espectador com personagens erráticas, que parecem quase sempre descoladas num enredo interessante, mas simples, que por isso mesmo merecia o melhor Preminger: aquele que pauta o seu cinema por uma desarmante linearidade e sentido prático; aquele que faz da câmara o seu único efeito especial e aquele que filma obsessivamente as suas musas, sejam elas doces ou fatais ou as duas coisas ao mesmo tempo.

Os ares de "Bonjour Tristesse" amoleceram o arrojo, ou melhor, o descaramento que, por norma, atribuímos à mais refinada mise en scène premingeriana. Quase tudo sabe a pouco.

Ler mais aqui: IMDB.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

sábado, 8 de novembro de 2008

Pickup on South Street (1953) de Samuel Fuller

À boa maneira de Fuller, "Pickup on South Street" (1953) é um film noir feito com os tomates - e, vá lá, uns gramazitos de coração... Muitos, sobretudo os americanos, se incomodaram com o que viram na época: um thriller político que divide bem as águas entre os traidores da América (compatriotas ao serviço do inimigo soviético), os polícias que os procuram neutralizar e, entre os dois, um carteirista (pickpocket) pouco interessado tanto nuns como noutros.

Este último, interpretado pelo grande Richard Widmark (falecido este ano, RIP), é o anti-herói fulleriano com os sentimentos à flor da pele e pouco interessado em tudo aquilo que não envolva dólares (política incluída). Ele mexe-se para um (polícia) e outro (comunistas) lados com a mesma ligeireza com que põe a sua mão delicada nas carteiras de senhoras no metro.

Skip McCoy (é o seu nome) não está totalmente sozinho: tem ao seu lado Moe, uma informadora de rua que fez da delação uma profissão em full time. Trata-se de uma personagem moralmente ambígua (bem, não serão quase todas, aqui?) que se redime no fim, numa sequência de grande violência filmada com músculo e elegância. Aliás, antes de ser um filme com uma mensagem politicamente incorrecta sobre a guerra-fria - no que diz respeito a Skip, who gives a damn? -, "Pickup on South Street" é um exercício magistral de mise en scène, com uma câmara, lânguida e precisa, sempre em movimento.

A mise en scène de Fuller pode vir sobretudo de um muito treinado gut feeling - o próprio diz que "escreve, por instinto, com a câmara" -, mas dificilmente haverá trabalho mais completo sobre o espaço e a posição dos corpos como este. Há nele um equilíbrio quase perfeito entre uma visão pragmática e excitante do cinema e uma abordagem esteticizante e filosófica da imagem. Pensamos que terá sido este segundo aspecto que mais inspirou Robert Bresson na realização de "Pickpocket" (1959), filme que concentra toda a sua "violência" no interior atormentado das suas personagens.

Fuller era um homem de emoções fortes que gostava de fumar grandes charutos - vejam-no(s) em "Pierrot le fou" (1965) de Jean-Luc Godard. Por isso, num filme seu, um beijo é seguido quase sempre de uma estalada. Quando um homem e uma mulher se zangam, o cenário quase vai abaixo com a violência da pancadaria. Bresson consideraria "Pickup on South Street" excessivo e Fuller adormeceria a ver "Pickpocket". Esta é a diferença fundamental que, paradoxo dos paradoxos, junta estas duas obras-primas absolutas do cinema mundial.

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Já saiu a Red Carpet de Novembro

A nova edição da Red Carpet já está aí. Temos um novo look, uma série de conteúdos ligados à actualidade cinematográfica, entre eles, uma crítica escrita por mim ao "Burn After Reading", e mais uns tantos artigos que nos trazem à memória filmes muito diferentes entre si, mas que marcaram, de uma maneira ou outra, o crescimento de uma certa cinefilia: "Noite Escura" de João Canijo (por Carlos Pereira, que também critica o magnífico "Mal Nascida"), "Fight Club" de David Fincher (por Nuno Gonçalves, numa rubrica nova chamada "Sob o Signo de...") e, para o tal cantinho do "Cinema Clássico", escrevemos uma análise a "Ace in the Hole" (1951) de Billy Wilder. Chama-se "A Identidade do Jornalismo" e podem encontrá-la nas páginas 64 e 65. Por fim, temos de destacar o artigo de Leo Pinela sobre o DocLisboa 2008. Para poderem ler tudo isto (e muito mais...), basta um clique sobre a imagem.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

The Wind (1928) de Victor Sjöström

Um filme mudo sobre o vento. Uma experiência sensorial quase impossível, que convoca o cinema de terror, o western e o musical. O sueco Victor Sjöström partiu para os Estados Unidos e lá realizou um milagre cinematográfico: um filme sem som onde se ouve o vento, o ranger da madeira, o galopar do grande cavalo branco (Deus índio das grandes tempestades) e onde as imagens adquirem uma textura tal que julgamos senti-las com os dedos.

A mise en scène de Victor Sjöström faz isto a "The Wind" (1928): transforma uma narrativa americana relativamente banal num bailado de corpos que vai sendo moldado pelo vento, o grande elemento dramático e psicológico do filme. É ele que puxa as personagens para o filme - veja-se a forma como a protagonista, Letty (Lillian Gish), é "aspirada" pela força do vento, logo nos primeiros minutos. Mais, é ele que (des)organiza a vida das personagens num fatídico triângulo amoroso: dois homens disputam uma mulher que não os ama; ou melhor, Letty deixou de amar um e ainda não sabe que ama o outro.

Ela é violada pelos dois: o primeiro assedia-lhe com um beijo não consentido, numa sequência de tensão, com a câmara apontada para os pés, que lembra Hitchcock; o segundo aproveita-se perversamente do estado catatónico de Letty e a insinuante elipse que Sjöström desenha indica-nos que a gravidade do que ele lhe faz vai muito além de um "beijo não consentido". Até porque, na sequência seguinte, Letty toma, num ímpeto, as rédeas do filme: torna-se na única personagem que mata em "The Wind" e que, como resultado, ganha coragem para enfrentar o vento, numa espécie de reconciliação com o amor e a natureza (a que vive, indomável, dentro de si e à sua volta).

O último plano, dos mais belos, parece o de um western tout court: depois do sacrifício, uma Letty segura de um amor forjado pelo Destino entrega-se ao vento. Quando esta diz que já não tem medo do vento - que se acostumou a ele - fica clara a ideia que explanámos anteriormente: o vento de "The Wind" não sopra contra a protagonista; muito pelo contrário, ele é (sempre foi) parte da "sua natureza".

Ler mais aqui: IMDB.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Voto sem McGinty

Em 1940, Preston Sturges contou-nos a "história americana" de "The Great McGinty". E quem foi ele? Um vadio recrutado pela máquina política para participar numa gigantesca fraude eleitoral. O esquema consistia em votar várias vezes, sob a identidade de um morto. McGinty foi tão bem sucedido que o catapultaram para dentro do sistema político. Pouco tempo depois, já era mayor.

Hoje a América vai a votos. E o mundo está de olho... O entusiasmo em torno destas eleições fez com que se batessem recordes no número de inscritos para votar e, pelas notícias que nos chegam, os eleitores de alguns estados já fazem longas filas perto das assembleias de voto. Nesta altura, duas preocupações centralizam as agendas política e mediática: apurar a verdadeira inclinação do eleitorado norte-americano - será que o chamado efeito da "espiral do silêncio" não inquinou muitas sondagens? - e garantir que todo o processo eleitoral decorra dentro da normalidade, sem casos de fraude ou arrebanhamento. Um novo software, que dizem ser infalível, está a ser testado precisamente para evitar que se repitam incidentes como o de Bush-Al Gore.

domingo, 2 de novembro de 2008

Entre les murs (2008) de Laurent Cantet

Laurent Cantet não precisava de “Entre les murs” para ser considerado um dos cineastas da actualidade mais atentos aos problemas pouco visíveis da nossa sociedade. Em filmes como "Resources humaines" (1999) e "L’Emploi du temps" (2001), Cantet revela um olhar apurado sobre o mundo do trabalho e as normas (sociais e políticas) que o regem. Por outro lado, há neles uma relação descomprometida entre realizador - e uma câmara discreta, não inquisitiva - e a realidade retratada: Cantet dá espaço ao espectador para fazer a sua apreciação crítica daquilo que é mostrado. Claro que dificilmente não estaremos ao lado dos seus "heróis-mártir" de carne e osso, até porque partilhamos muitas das suas dúvidas e angústias. Em certo sentido, são eles que nos "puxam" para o filme; que fazem de Cantet um cineasta e não um documentarista.

Existe mesmo uma dialéctica curiosa entre a câmara de Cantet e os protagonistas das suas histórias: a primeira procura reflectir uma realidade em bruto - racionalizante ou meta-documental -, já os segundos atraem a primeira para uma dimensão mais interior, quase psicológica, da narrativa. Como se Cantet filmasse um documentário "na" ficção ou no intervalo difuso que separa esses dois “mundos”: por exemplo, o professor de “Entre les murs” (François Bégaudeau) foi de facto professor na vida real e interpreta o protagonista de um livro (autobiográfico) que escreveu chamado “Entre les murs”. Obra que, agora, se adapta ao cinema. E a câmara está lá para documentar.

Pronto, depois de tantas reflexões circulares, que podem confundir mais do que esclarecer, apetece-nos recomeçar: “Entre les murs” é a depuração do método de Laurent Cantet, um dos poucos cineastas preocupados com o que se passa na sociedade em que vive e com coragem suficiente para a mostrar em toda a sua complexidade. Isto é, quase nua. Só assim acreditamos no que vemos: a turma não é apenas um grupo de selvagens dos bairros sociais e o professor não é a Michelle Pfeiffer de "Dangerous Minds" (1995). O professor François não resolve o problema da educação na Europa e no mundo. Por isso, não vale a pena irmos ver este filme na esperança de encontrar um remédio milagroso que acabe com o mal-estar social que, todos os dias, se densifica numa qualquer sala de aula.

O velho cliché assenta que nem uma luva: não saímos indiferentes da sala, depois de vermos “Entre les murs”. E os minutos finais, cheios de mixed feelings, estão lá para isso: o professor, que aprendemos a amar, joga futebol com os seus alunos, usufruindo de uma amarga, porque momentânea, "paz social" que foi conquistada graças ao sacrifício de alguém que já não cabia no sistema. Ele festeja com os seus alunos o fim de mais uma batalha (leia-se, ano lectivo), cujos efeitos estão bem representados no último plano do filme.

Já na aula de despedida, François parecia ter conseguido (finalmente!) dialogar com os seus alunos. Pela primeira vez, um deles, uma rapariga, sente confiança para falar com ele. Confessa-lhe envergonhada que, ao contrário dos seus colegas, está certa de que não aprendeu nada naquele ano e dificilmente aprenderá no futuro. O nosso sentimento é, mais uma vez, contraditório: a aluna que se descobre totalmente descrente no sistema de ensino mostra ser, exactamente por isso, aquela que mais cresceu, durante todo o filme. O que a angustia é a ignorância, a impotência que sente em si e nos professores que a rodeiam. Ela é, de entre todos seus colegas de turma, até os mais problemáticos, a única que consegue de facto agitar o sonho idealista do professor François - mais uma daquelas subtilezas graves de Cantet.

“Entre les murs”, fazendo uso do seu título enclausurante, coloca o espectador nesta situação complicada: temos de sair da sala - de aula ou de cinema - a pensar no que vimos. Essa é a única inescapabilidade que nos oferece este magnífico exemplar do cinema social de Laurent Cantet.

Ler mais aqui: IMDB.

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