sábado, 29 de novembro de 2008

The Life Aquatic with Steve Zissou (2004) de Wes Anderson

Wes Anderson é o autor de um dos universos mais originais do cinema norte-americano da actualidade. (Até aqui ainda não há elogio.) O cineasta de "Rushmore" (1998) conseguiu criar um "cinema da imagem" que se alicerça na construção meticulosa de um décor fantasioso, que nos remete quase sempre para uma memória mágica, inocente e melancólica de uma infância não vivida. Os adultos de Wes Anderson agem por impulso e imprevisivelmente... como crianças.

No entanto, a maior parte das histórias dos seus filmes são de uma complexidade humana que rompe, em toda a linha, com a estética infantil e naif do seu cinema. Outro elemento fundamental desta "estética" é precisamente a interpretação dos actores, com o hiper-cool Bill Murray à cabeça. O seu fácies inexpressivo, os gestos automáticos e intempestivos revelam uma espécie de "burlesco contido", paradigma do mood geral que perpassa os filmes de Wes Anderson. Tudo isto em sintonia com uma escrita off-beat, doce-amarga, que contrasta, mais uma vez, com a minudência, a paciente meninice e a doce fragilidade do milieu andersoniano. Mas deixemo-nos de generalizações e foquemo-nos naquele que, em termos rigorosos e justos, é um dos mais importantes filmes desta primeira década do século XXI. (Aqui só não há elogio para quem continua a achar que o cinema morreu lá para meados dos anos 70...)

"The Life Aquatic with Steve Zissou" (2004) é um filme sobre uma equipa de mergulhadores à procura de um tubarão que não sabem se existe ou não. É também um filme sobre uma equipa de realização à procura de um filme que não sabem se vai existir ou não. E é ainda, entre outras coisas, um filme sobre a relação impossível entre um pai que não pode ser pai e o seu filho. "I hate fathers", diz a certa altura Zissou (Bill Murray) a Ned (Owen Wilson). Todas estas camadas (da autoria de Noah Baumbach) vão sendo construídas a bordo do grande "couraçado" comandado por Zissou: um caça-submarinos da II Guerra Mundial transformado numa embarcação sui generis, o Belafonte, que nos é apresentada num dos mais saborosos planos de todo o filme.

Se os tripulantes e embarcação não pertencem à nossa realidade, também aquilo que estas observam e procuram, para "efeitos científicos", tem mais a ver com o universo do filme do que com o nosso: até os peixes que são objecto dos documentários, à Jacques-Yves Costeau, de Zissou são criados, moldados e baptizados pelo imaginário de Wes Anderson e... pelo realizador de "The Nightmare Before Christmas" (1993). O trabalho de animação de Henry Sellick é soberbo: desde o cavalo marinho multicolor do início do filme até à aparição do deslumbrante tubarão-jaguar, o grande momento re-ligioso (ao som de Sigur Rós...) de "The Life Aquatic". No fim, as principais personagens do filme descem às profundezas do mar para chorar a morte de Esteban e o sofrimento de Zissou. Com esse gesto de altruísmo, espécie de comunhão na dor, elas estão também a pedir (ao grande Deus marinho) a absolvição dos seus pecados.

O filme tem dedicatória final a Costeau, mas também indirectamente a David Bowie. Pelé, ou melhor, Seu Jorge é o autor (em som directo) de grande parte da banda sonora de "The Life Aquatic". Ao longo da viagem, ele tem como meio de expressão a guitarra, a voz e a lírica em brasileiro (!) de Bowie (Starman, Life on Mars, Queen Bitch, etc). Alguns dirão que as personagens de Wes Anderson não passam de "mais um" adereço ou enfeite no seu cinema. Pensamos que quando Anderson faz associar as suas personagens a determinadas marcas visuais (como a indumentária, um objecto ou mesmo uma cor), está precisamente a ironizar com esse gesto estereotipizante - "He is my nemesis!", rabuja Zissou à sua mulher (Anjelica Huston) numa tentativa desesperada de a proteger do charme venenoso de Alistair Hennessey (Jeff Goldblum).

Em "The Life Aquatic" este aspecto é especialmente conseguido: apesar de quase todos os tripulantes do Belafonte usarem a mesma pele (farda com a insígnia Z e os sapatos Adidas retro), por baixo desta vamos descobrindo qualquer coisa de profundo e violento, que os faz sobressair do background tal como os aproxima do "nosso" mundo. Mas também aqui o universo de Wes Anderson funciona de forma quase orgânica: a diferença das personagens de "The Life Aquatic" está mais na relação destas entre si do que em cada uma delas, na sua individualidade.

Não queríamos ir tão longe, mas não nos parece totalmente inocente a cena em que Zissou traça uma linha no convés e pergunta à tripulação quem está com ele e quem não está. Com efeito, esta cena faz-nos lembrar, por instantes, a sequência de "O Couraçado de Potemkine" (1925) que está na origem do motim a bordo do grande navio: no convés, o comandante diz, por outras palavras, que quem está com ele deve dar dois passos em frente e quem não os der será enforcado na verga. Zissou é mil vezes menos dramático; apenas expulsa do Belafonte quem não estiver com ele e, no caso do dissidente ser "estagiário", acresce a penalização de um "suficiente menos".

Ainda assim, esta alusão subliminar de Wes Anderson à obra-prima soviética pode ser vista como uma afirmação política no seio do seu cinema (logo, uma afirmação puramente cinematográfica): o "zissouísmo" é a ideologia do amor, da união, da fraternidade, da comunicação e da falta dela, da anarquia, dos crescimentos forçados, da exasperante procura de um lugar (em terra firme?), dos sonhos não vividos e dos amores frustrados. Eis o círculo perfeito da existência humana num filme sobre uma fantasia (os peixes, o Belafonte e a tripulação) que degenera violentamente num sentimento real (o interior das personagens). Ou num "zissouísmo"...

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

1 comentário:

Anónimo disse...

As minhas felicitações aos autores do blog.
Sou estudante de cinema e, por acaso, vim aqui parar à procura de coisas sobre o super-filme do John Ford "Young Mr. Lincoln". Fiquei mais um pouco para ler sobre outros. Aprovados.:)

Até sempre

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