Numa nota à parte, gostava de agradecer ao Samuel Andrade o convite que me lançou - a mim e a outros ilustres bloggers - para fazer algo que me é caro: um balanço do cinema que marcou a primeira década do novo milénio. Irei participar no ambicioso dossier "O Cinema dos Anos 2000" com pequenas cápsulas dedicadas a alguns dos títulos que, de uma maneira ou de outra, não terão merecido o reconhecimento mais justo aquando da sua estreia. Até agora - mais análises virão -, já "cobri" "Ghosts of Mars" de John Carpenter e "R Xmas" de Abel Ferrara.
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Outra iniciativa muito interessante aconteceu noutro blogue vizinho, o Caminho Largo, de Pedro e Jorge Teixeira. Sob o signo do tema da amizade, foram convocados vários bloggers cinéfilos para apontarem as suas preferências. Eu dei o meu singelo contributo aqui.
"¡Que viva Mexico!" (1932) de Serguei M. Eisenstein
"The Servant" (1963) de Joseph Losey
(Primeiro: genal, segundo o Dicionário Priberam, é aquilo que é "relativo às faces = FACIAL". Segundo: louca mise en scène ou mise en scène da loucura. Nunca vi um filme que usasse o décor e os objectos da maneira que o faz Joseph Losey aqui, como dispositivos de uma loucura tão implícita quanto ruidosa, tão superficial quanto profunda. Abismos dentro de abismos, como os espelhos e os reflexos constantes que se jogam, logo na relação do homem com a sua sombra, pela casa "assombrada" de "The Servant". Terceiro: não consigo entender como é que o mac-mahoniano Michel Mourlet canonizou, e bem, Losey, mas tantas vezes à custa de um ataque, diria "cego", a Eisenstein e Welles - é que eu vejo muito Eisenstein e Welles em "The Servant"... Também vejo - e aqui vão mais umas tantas pedras no sapato de Mourlet - Bergman, Mankiewicz, Huston e Hitchcock, mas isso ficará, quiçá, para outras postagens.)
[Quando um jovem abandonado pela mãe, que já não reconhece o seu pai, se olha ao espelho com uma pistola em riste e simula os últimos minutos de vida de quem precipitou o fim das suas ilusões de rapaz está, acima de tudo, a "bater-se" consigo mesmo. O vidro do espelho - como sempre, muito mais que um adereço em Losey - é a janela para um (novo) abismo. Em Scorsese, frente ao espelho, o adulto arma-se, infantilmente, em "vigilante da noite". Ao espelho, o adulto reflecte a criança ou a criança reflecte o adulto. E reflecte (sobre o) mal.]
O recorte parece ter saído de um texto de Walter Benjamin, mas não: trata-se "simplesmente" de um diálogo, na presença das três personagens que compõem o triângulo fatídico do filme, no não tão simples quanto isso argumento de "Les diaboliques" (1955) de Henri-Georges Clouzot. Para Michel Delassalle (Paul Meurisse), homem capcioso que dirige um pequeno colégio francês, a sua mulher Christina (Véra Clouzot) mais do que doente é ruinosa. É ruinosa, mesmo sendo graças a ela que ele ocupa o lugar de poder que ocupa; é ruinosa, mesmo alimentando ele uma relação extraconjugal à vista de toda a gente com uma amiga e colega daquela, de nome Nicole Horner (Simone Signoret).
Christina é ruinosa? Ruinosa como "aquilo que está em estado de ruína"; não tanto como "aquilo que foi", muito menos como "o que arruina", mas como aquilo que não pode ser mais destruído, porque já é - e é sempre - destruição. Ela é o que resta de um matrimónio infernal, algo que, face ao marido, a fragiliza mas também a fortalece: a sua presença sinaliza uma destruição irreparável, uma destruição indestrutível. Ela, como ruína que é, não tem medo, nem mesmo da própria morte. (Nada a prepara, no entanto, e esse é o golpe trágico e terrível de Clouzot, para o inominável horror além-morte...)
Michel Delassalle: Ela é muito frágil, tu sabes.
Nicole Horner: Frágil?
Michel Delassalle: Sim, quando veio de Caracas. Hoje, é uma pequena ruína bonitinha. Ela não arrisca nada. As ruínas são indestrutíveis. Ela vai-nos enterrar a todos. Não vais, minha pequena ruína?
Homem com cabelos escuros - quando ainda não estavam justificadamente brancos - que levou a mise en scène cinematográfica para novos territórios com a ajuda de dois vultos da dramaturgia do século XX, primeiro Bertolt Brecht e depois - colaboração pela qual se celebrizou - Harold Pinter, Joseph Losey será o herói do mês na Newsletter de Abril. Cineasta fortemente politizado, por vezes parabólico - quando não hiperbólico - na sua visão do mundo e da humanidade, Losey iniciou a sua formação "dramática" com Brecht, aplicando os ensinamentos adquiridos, primeiramente, numa bem sucedida carreira no teatro, para depois os "pôr à prova" em Hollywood.
Filmes - só aparentemente inocentes - como "The Boy with Green Hair", a sua primeira e marcante primeira obra, não ajudaram à fama de cineasta engajado ou politicamente comprometido "à esquerda", pelo que não foram precisos mais de três anos para entrar na "lista negra" da infame House Un-American Activities Comittee e, em reacção, partir para o país que, sem grandes dificuldades, o adoptará como um dos seus: a Grã-Bretanha. O grosso da sua carreira passa-se aí, ao lado de Pinter e do seu actor-fetiche Dirk Bogarde. A história - com muito cinema, psicologicamente intenso e estilhaçado, lá dentro - continua na edição de Abril da Newsletter do CINEdrio.
Para o próximo mês, prometemos, em matéria de filmes, a descoberta de obras menos conhecidas dos promissores irmãos Safdie, documentários de Ferrara que poderá ter deixado escapar, edições Blu-ray de obras-primas de Lumet, Demme, Carpenter, uma caixa dedicada ao cinema urgente de Kim Longinotto, a mais recente edição em DVD com filmes de James Benning, boas pechinchas com a assinatura de Don Siegel, etc.
Para ler, iremos sugerir, entre outros, os estudos clássicos de Lotte Eisner sobre o expressionismo alemão, a tese de doutoramento de Ismail Xavier, republicações de obras importantes de Barthes, Horkheimer, Erich Fromm e Adorno, textos de Serge Daney publicados numa revista norte-americana de moda, arte e design que está agora acessível em formato e-book para Kindle, os segredos de Hollywood por Patrick Brion, Kubrick prefaciado por Scorsese, etc.
A nossa inquirida desta semana é a Professora Margarida Medeiros, autora de vários estudos sobre fotografia e docente na Faculdade de Belas Artes e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Aqui está o número #19 da Newsletter do CINEdrio na sua versão reduzida para os leitores "mais distraídos" que ainda não subscreveram esta publicação gratuita sobre lançamentos recentes, futuros, pechinchas, descobertas em matéria de livros, revistas, filmes e sites.
Este mês tivemos acesso EXCLUSIVO ao livro de memórias de William Friedkin, que nos mereceu, por isso, o devido destaque nos Lançamentos Futuros na rubrica dedicada aos livros sobre cinema, fotografia e filosofia. Também destaco o livro "Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo", todo um ambicioso projecto científico, reflexivo e artístico compilado em pouco menos que 600 páginas. Um ovni que aterrou no nosso mercado editorial pela mão da Gradiva.
Fique a par de tudo isto e muito mais nesta versão da Newsletter de Março dedicada ao cineasta italiano Carmelo Bene (clicando na imagem acima) e, se a achar útil, pedimos que nos subscreva.
Já estamos no mês de Março, mas convém recuarmos um pouco para ver o que o mês passado nos ofereceu, à pala de Walsh.
Entre os textos escritos (também) por mim, começou como acabou: com "Guerra Civil", filme de Pedro Caldas que está "na prateleira" desde 2010 mas que, graças às suas aparições pontuais (começando pelo IndieLisboa e terminando na sua passagem pela RTP2), tem conquistado os favores da cinefilia. A minha crónica foi (também) sobre ele e a esta seguiu-se uma entrevista ao realizador e actor principal, cuja primeira parte já está disponível para leitura. Participei ainda nas habituais rubricas Sopa de Planos e Filme Falado. Recuperei o filme "Sorcerer" de William Friedkin, artigo que acabou por estabelecer um interessante diálogo com o texto de Miguel Domingues (ele que tem novo blogue), também publicado no mês de Fevereiro, sobre o pouco visto filme de Henri-Georges Clouzot "L'assassin habite au 21".
Marquei ainda presença na cobertura fal(h)ada à noite de Óscares aqui e, no último dia do mês, revisitei a agenda noticiosa do mês com o Ricardo Vieira Lisboa e, claro, com a ajuda do cinema.
Fora do meu domínio directo de acção, tenho a destacar o lançamento de uma nova rubrica dedicada a séries televisivas que sairá da pena - sim, escrevo-vos directamente do século XIX - do João Lameira e a publicação pelo Carlos Natálio da segunda parte da sua entrevista ao crítico de cinema Adrian Martin.
Em Março, teremos - ou temos, aliás - o Carlos Natálio ao leme da edição e podemos prometer mais e ainda melhor reflexão em torno de tudo o que mexe... (n)a imagem.