quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Affliction (1997) de Paul Schrader

"Affliction" (1997) é um drama humano intenso sobre um homem em debate com as difíceis memórias da sua infância, marcadas pelas bebedeiras e abusos do seu pai. Wade Whitehouse (Nick Nolte) tem medo de estar a reproduzir esse mau exemplo no relacionamento com a sua filha, que apenas vê pontualmente, devido a um sistema de visitas rígido ditado pela sua ex-mulher. Ao mesmo tempo, o seu outro papel, o de polícia numa localidade "gelada" em New Hampshire, parece estar a ser posto em xeque, devido a uma misteriosa morte ocorrida durante a abertura da época de caça.

As agressões do passado, a impotência em se afirmar como um pai responsável e afectuoso e, ao mesmo tempo, a incapacidade de pôr cobro a um conluiu local do qual resultou uma morte são os eventos que vão corroendo o juízo de Wade. A estas dimensões mental e emocional junta-se uma outra que agudiza ainda mais a tormentosa narrativa de "Affliction": o dente que provoca dores excruciantes a Wade e que este só consegue tratar, arrancado-o violentamente nos minutos finais do filme. A partir desta mutilação crua, tudo muda: o passado presta contas ao presente - um celeiro arde, como um sacrifício tarkovskiano - e a conspiração (ilusória ou não) é desmantelada com um gesto violento. Já o protagonista remete-se finalmente à sua condição fantasmática.

Paul Schrader é exímio a misturar as três dimensões da narrativa: mental (a alucinação bate a "realidade"), emocional (o passado que ensombra o presente) e física (a dor de dentes que agrava as duas outras dimensões). A câmara acompanha a queda de Wade numa cadência lenta, sem se precipitar na catalogação das personagens. Este estilo quase sussurrante é interrompido, pontualmente, pelas visões terríveis que Wade tem da infância: o seu pai, Glen Whitehouse, um homem duro, viciado em álcool, que desconsidera o papel das mulheres na sociedade e que sempre odiou a moleza e mão fraca dos seus filhos - "meninos mimados" que não servem, nem nunca serviram para nada...

James Coburn é quem interpreta esta personagem demoníaca que parece saltar do ecrã, nos seus vários momentos de ira explosiva. A opção da câmara solta nas cenas de infância resulta magnificamente: planos curtos, imagem saturada de grão, e aquele olhar perfurante, quase irrealista pela forma como nos atinge, desprevenidamente, o espírito. O porte de Coburn ajuda: é um actor de westerns - os mais duros... - que assalta um "filme de personagens", como uma águia que sobrevoa, vigilante, o habitat frágil das suas presas e que fere de morte, a cada ataque. Rouba até mesmo uma daquelas interpretações pujantes que só Nick Nolte consegue ter. Outro desempenho assinalável que acaba por ser algo obscurecido pela grandeza de Coburn é o de Sissy Spacek, que incarna o lado doce que Wade procura preservar, mas não consegue, porque nem a melhor das almas aguenta viver com alguém que padece de uma incansável auto-negação, como um simulacro inconformado do seu odioso pai.

"Affliction" é, tal como o título indica, um filme desconfortável, que se constrói com base numa realização subtil de Paul Schrader e, sobretudo, na interpretação dos seus actores (Coburn à cabeça). Ainda assim, achamos que a narração em voz-off (Willem Dafoe conta a história do seu irmão Wade) é redundante e que da relação entre as personagens de Nolte e Spacek ficou alguma coisa por explorar: por exemplo, o lado mais "secreto" e íntimo de Wade, personagem que apenas enforma numa incessante escalada demencial.

Ler mais aqui: IMDB.

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