quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mistérios de Lisboa (2010) de Raoul Ruiz


É um acontecimento, aquele que se anuncia no Metro de Lisboa, com cartazes quase feitos à escala dos protagonistas do filme, aquele que se anuncia nos vários cartazes espalhados pela cidade - já agora, horríveis, como a maior parte dos cartazes do cinema português... Digo: é um acontecimento, mas de que tipo? Bem, desde logo, não é um acontecimento por ser uma mega-produção histórica, dividada entre Portugal e França, nem tão-pouco é um acontecimento pelo facto de combinar alguns dos actores mediaticamente mais quentes nos dois países (Ricardo Pereira e Clotilde Hesme, por exemplo). Também não é um acontecimento só por levar à tela um romance folhetinesco de Camilo Castelo Branco, com todo o rendilhado romântico próprio do tempo em que se situa, o Portugal das Invasões Francesas, o Portugal da revolução liberal e toda a convulsão que se seguiu... Não, também não é isso que faz deste filme com quatro horas e meia de duração - xiça! mas, não, também não é por isso... - um acontecimento do cinema português, ou melhor, um acontecimento do Cinema. Ponto final.

O que faz de "Mistérios de Lisboa" um acontecimento do Cinema é o facto de ser uma obra realizada em pleno estado de graça. Ruiz tornou esta monumental narrativa histórica num espaço para expandir, sem freios, um dos mais arriscados exercícios formais que tenho memória de ver. Atenção viscontiana aos cenários, execução deleitosa, sensual mesmo, de cada plano-sequência monstruosamente complexo (para operador, para actores, para todos!) mas sempre levitante e aparentemente simples e espontâneo. Ophuls espreita em vários momentos, sobretudo, nos jogos lânguidos com os objectos requintadamente escolhidos, como um candelabro, em torno do qual gira uma sequência de vários minutos, um diálogo entre a Duquesa e o jovem Pedro - é Ophuls até aos cabelos, mas é o Ophuls ao serviço não do espectáculo per se, mas do espectáculo da Narrativa. O teatrinho de cartão (bergmaniano?) também é marca clássica no grande cinema operático de um Visconti e de um Ophuls, como se toda a vida do protagonista, trágica, intensa e, por vezes, impossível seguisse uma qualquer marcação cénica, que lhe indica para onde os seus passos devem seguir... sempre no encontro com os passos das outras personagens.

O rendilhado narrativo é gerido com uma criatividade proporcional à beleza das imagens; Ruiz está sempre um passo à nossa frente, apanha-nos quase sempre de surpresa com as suas soluções visuais e diegéticas fascinantes. Exemplo da magnífica - de novo, Ophulsiana - sequência - se virem, não há cenas aqui, só sequências... - da descida da magnificente escadaria da Ópera. Dois indivíduos, até então anónimos, descem as escadas e vão comentando as vidas de quem passa - as nossas personagens. A narração, aqui, é viva, sempre filmada em continuum e posta ao serviço do bailado geral entre forma e conteúdo. Bailado? Tudo é bailado aqui - Ophuls de novo... mas também Visconti espreita e, já agora, Preminger não é esquecido...

Veja-se a sequência em que o Conde vê pela primeira vez a Condessa. Complexíssima sequência, que inclui inúmeros encontros - trocas de olhares, diálogos, momentos de silêncio - que levam ao limite a capacidade dos seus actores e que vão consumindo cada centímetro do espaço fílmico. Há um momento em que Ruiz resume, pelo menos, TRÊS cenas num único plano. A cena funesta do nascimento do Padre Dinis é, estou em crer, a mais impressionante lição de mise en scène do cinema recente. E como se comportam os actores? Comportam-se como génios. Ruiz eleva o cinema nacional a um estado de excelência inaudito.

Adriano Luz, que sempre foi um actor magnífico, tem o papel da sua vida - é o actor do ano, não temos dúvidas quanto a isso -; Ricardo Pereira transcende-se como nunca julgámos possível - apesar de o termos defendido em "Milagre Segundo Salomé", filme anão ao pé deste - e Maria João Bastos revela-se actriz para levar em grande conta no futuro do nosso cinema. O mesmo podia dizer para os demais protagonistas (Afonso Pimentel, por exemplo, está óptimo), mas se enumerasse cada um dos seus méritos, tal como se quisesse enumerar cada uma das virtudes deste Monumento fílmico, teria de escrever bem mais que este reles post, indigno dos reais feitos alcançados*.

*Passo a palavra a quem sabe. Por exemplo, ao senhor Bordwell: Mysteries of Lisbon has a rich, high-thread-count look, but it’s not your usual prestige costume drama. The long takes cling to characters as they flirt their way across a ballroom, and the camera slips through walls in the manner of old-fashioned cinema. There are the usual Ruiz flourishes of hallucinatory deep focus (achieved through split-focus diopters), characters floating rather than walking, and the occasional peculiar angle. But the film remains calm and lustrous, culminating in a slow tread into pure light.

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