domingo, 2 de janeiro de 2011

Bring Me the Head of Alfredo Garcia (1974) de Sam Peckinpah


O filme abre com uma mulher a ser esbofeteada. Estamos num filme de Peckinpah. Um poderoso patriarca mexicano dá a ordem: "tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia" (várias vezes em castelhano e depois, sem pompa, em inglês). Al, como ficará conhecido, é o tipo que lhe engravidou a filha, provavelmente, sem pedir a mão a quem de direito. Portanto, a um neto bastardo responde-se com a lei das armas, ou de uma catana bem afiada... Estamos num filme de Peckinpah. Estamos tanto num filme de Peckinpah que não temos de esperar muitos minutos até que outra mulher, desta feita, uma prostituta - deixa estar, meu Deus, as mulheres putas são as menos putas do universo segundo Peckinpah - leve uma cotovelada certeira no rosto, caindo inconsciente.

Quem o administrou foi um hitman americano que contrata o herói, perdão, o anti-herói peckinpaniano de serviço, interpretado por Warren Oates, para limpar o sebo ao tal Alfredo Garcia, que aquele diz só conhecer de nome. "Dead or alive?", interroga o assassino acabado de contratar, fazendo uso do velho cliché do western. "No. Dead". Frase que acerta, como um chuto nas virilhas, no espectador mais incauto. Estamos em pleno ocaso do western clássico; aqui dizem-se palavrões, bate-se em mulheres, violam-se mulheres, cortam-se cabeças. Por isso, "dead or alive? Mas que pergunta estúpida: dead, claro". Estamos, definitivamente em território peckinpaniano. Depois, o nosso "herói" vai à caça, primeiro, de um amor antigo e, depois e através desta, do seu valioso alvo. Não revelo mais do plot, ou pelo menos, só revelo mais do plot a partir daqui - fica avisado o leitor que não viu o filme, ou seja, o leitor que não sabe o que perde...

Com avanços e recuos, lá se aclara o único plano possível para Oates: cortar a cabeça de Al, mas Al está morto, portanto cortar a cabeça de um morto. Entramos aqui na mitologia mexicana ou esta entra dentro de nós, mais concretamente: a culpa inerente à profanação sepulcral dos subsolos pelos vivos, o tipo de pecado que não se expia propriamente na paróquia ao virar da esquina, mas sim, provavelmente, antecipando a justiça divina e ceifando a vida do mandatário de tal bestialidade. Mas quem é este mandatário? Onde vive? Com quem vive? Por que e para que é que quer a cabeça deste tipo?, perguntas que a personagem de Oates faz a si mesma - solilóquio efervescente com os fantasmas...- enquanto guia o seu carro clássico, tipo banheira, amolgado por todos os lados e coberto de pó e morte.

A narrativa de "Bring Me The Head of Alfredo Garcia" vive deste jogo de "espanta espíritos" entre o aqui e o além, entre o amor e o ódio, a vingança e a redenção; é uma monumental tragédia RELIGIOSA sobre um tipo que está farto de viver, que está sujo, ensanguentado, sem mulher, e só com uma cabeça pútrida infestada de moscas a seu lado, no "lugar do morto". A solução para ele fica clara: vai muito para lá do dinheiro, vai muito para lá do terreno. Estamos num filme de Peckinpah? Estamos na última fronteira possível do seu cinema tipicamente "fronteiriço" com muchos cojones.

2 comentários:

João Lameira disse...

É impossível ver este filme, sem que se coloque imediatamente o Warren Oates no pedestal que merece. A maneira como contracena com a cabeça do Alfredo Garcia é de antologia. Um grandessíssimo actor num grande, grande filme.

Luís Mendonça disse...

Bem verdade. Oates é genial neste filme!

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