segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Numéro deux (1975) de Jean-Luc Godard


O pai está nu e a mãe também. Explicam aos filhos pequenos como é que se faz o amor: "aqui, esta boquinha", aponta o pai, "beija os lábios da mãe", aponta o pai outra vez. Noutra cena, vemos a mãe mal humorada porque não caga há vários dias. Noutro instante, o casal discute por causa de um electrodoméstico avariado.

Estamos na intimidade de um lar dito normal, mas, como Godard avisa no início, há algo de pornográfico em tudo isto. A imagem-vídeo desdobrada em dois ecrãs, que o cinema torna UNO (um dois uno = dois uns, portanto?), colabora, ab initio, nesta atmosferização suja e voyeurista, estilo Big Brother (o da Guilherme, não o de Orwell). Episódios do dia-a-dia, banais, vão sendo mostrados sem qualquer pudor, sem refreamento, não há "polimento de câmara" algum para transformar este em mais um "piscar de olho cínico, pseudo-político, sobre o quadro-postal da família feliz típica". A família é típica, mas é tão feliz como todas as outras, apetece acrescentar: faz-se feliz como as outras, isto é, come, caga e fode como as outras. É uma fábrica: o marido sai, entram as crianças, depois entram os avós, estão, comem, cagam e vão-se embora. Esta é a nossa fatalidade: vídeo-existência, existência-zapping, estética de vida que raia (inevitavelmente, apetece dizer) o home porn - qualquer coisa que Ferrara quase compreendeu em filmes como "Blackout"... Percebe-se a desolação final de Godard perante o que mostra: terá feito um dos seus filmes mais duros e limitou-se a filmar uma "família normal".

"Numéro deux" põe Godard na pele que melhor lhe assenta: a do pornógrafo. "Aquele que pinta ou descreve coisas obscenas." Esta é a definição do Priberam. É a nossa definição para Godard: aquele que pinta ou descreve coisas obscenas, isto é, todas as coisas que estão (por norma) fora de cena. Tornar visível o invisível - e por invisível entenda-se tanto o cosmos como. às vezes, o que nos escapa de tão comezinho... como, por exemplo, uma ida à casa de banho. O cu - ideia-força do seu cinema pós-Maio de 68.

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