segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Já saiu a Red Carpet de Outubro

Mais uma edição da revista on-line de cinema (totalmente gratuita, já disse isso?!) Red Carpet. Para além das críticas aos filmes que estrearam no mês de Setembro, falamos este mês de Hayao Miyazaki, Ridley Scott, Brad Pitt e do actor do momento, Josh Brolin. Depois temos uma estreia: uma secção exclusivamente dedicada a "Cinema Português", da responsabilidade do Carlos Pereira. O excelente "Xavier" de Manuel Mozos é o filme em foco. Folheando mais a revista, encontramos: uma entrevista exclusiva a José Vieira Mendes, o director da ressurrecta Premiere; um artigo sobre "Presidentes Americanos no Cinema"; um conjunto de sugestões a pensar no próximo "Dia das Bruxas" e as crónicas da Leonor Pinela sobre o que de estranho aconteceu no MOTELx 2008. E, não é preciso dizer, muito muito mais. Dentro do "muito mais", referimos o nosso modesto contributo no habitual cantinho do "Cinema Clássico": "A Grande Caçada", artigo sobre a obra-prima "Hatari!" (1962), de Howard Hawks (pp. 56 e 57). Para ler, basta um clique sobre a imagem.

Hatari! (1962) de Howard Hawks

Excerto do texto publicado na edição deste mês da revista Red Carpet.

11 de Novembro 2010: publico aqui o mesmo texto na íntegra.

Não é exagero dizer-se que o cinema de Howard Hawks é um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento crítico da Sétima Arte. O seu eclectismo na forma, “em choque” com uma constância temática no conteúdo, baralhou algumas das convenções que existiam na Hollywood clássica: Hawks não se adaptava aos géneros, os géneros é que se adaptavam a Hawks. Assim sendo, os films noirs, westerns, screwball comedies que filmou eram produtos mais de um universo personalizado do que da tradicional pré-etiquetagem hollywoodesca. Os críticos dos Cahiers du Cinéma não hesitaram em apelidá-lo de auteur: o isolamento, a guerra dos sexos e os ambientes carregadamente masculinos são tópicos reincidentes na sua filmografia. "Hatari!" (1962), realizado três anos depois do clássico "Rio Bravo", engloba-os com a elegância e liberdade poética que julgamos apenas serem possíveis no coração de um cinema aturadamente decalcado, no pico do seu amadurecimento.

Passado na África Oriental, mais concretamente na Tanzânia, "Hatari!" conta a história de um grupo internacional de caçadores que procura atender a um grande número de encomendas provindas de jardins zoológicos de todo o mundo. O seu complexo reúne todo o tipo de animais selvagens, desde búfalos a tigres, passando por elefantes. Se excluirmos Brandy (Michèle Girardon), uma jovem rapariga cujo pai foi morto enquanto caçava, toda a equipa é formada por homens: à cabeça temos o americano Sean Mercer ou “Big Bwana” (John Wayne), depois os seus compatriotas “Pockets” (Red Buttons) e “The Indian” (Bruce Cabot), o alemão Kurt Muller (Hardy Kruger) e, por fim, o mexicano Luis Garcia Lopez (Valentin de Vargas). Mais tarde entra em cena o típico jovem rebelde hawksiano, reminiscente de Ricky Nelson em "Rio Bravo": o francês Charles Maurey, baptizado por Sean de “Chips”. Como vemos, quase todos os membros deste grupo dominantemente masculino têm alcunhas, o que evidencia uma certa concepção tribal das relações entre homens.

O rebaptismo funciona como um rito de passagem dentro do grupo. E entre “amigos de batalha” – Hawks foi aviador na I Guerra Mundial – esse acto simbólico é ainda mais importante: um elo feito de aço que sela a união fraternal (quase homoerótica) entre homens de corações duros. Na realidade, Hawks vai mais longe: à falta da tradicional família nuclear, instituição omissa em quase todos os seus filmes, os papéis que a constituem são, por vezes, redistribuídos apenas entre homens.

Sean não é só o líder de um grupo de trabalho; é símbolo de força e sabedoria em "Hatari!". Em certa medida, representa a figura paterna numa família de caçadores. “Pockets”, por sua vez, é a antítese de Sean: figura patusca, de corpo delgado, que tem medo de animais e que, por isso, preenche o seu tempo a inventar as geringonças destinadas à captura dos animais. Entre elas, um mini-foguete que no seu primeiro ensaio destrói parte do telhado da casa de palha onde “Pockets” faz as suas experiências. “Hatari!”, isto é, “PERIGO!”, gritam os indígenas. Se Sean é o patriarca, a “Pockets” fica entregue o papel do “homem feminizado”, que também já conhecemos de outros filmes do realizador: a título de exemplo, Cary Grant em "Bringing Up Baby" (1938) ou "His Girl Friday" (1940) e, a espaços, Walter Brennan em "Red River" (1948) ou "Rio Bravo" (1959).

Muller e “Chips” são como que dois irmãos adolescentes que se engalfinham na disputa primária – mera afirmação de egos, desconfiamos – pela menina Brandy, aquela que ainda é uma criança aos olhos de Sean. Não perdendo o fio a esta análise, diríamos que os dois são os meninos insubordinados do grupo ou os rebentos selvagens da dupla Sean-”Pockets”. Por outro lado, o mexicano Luis Garcia Lopez pauta-se por uma certa invisibilidade, ao longo de todo o filme, o que torna o seu papel menos claro. Ainda assim, tendo em conta a vaidade que ostenta nas cenas finais do filme, a ele atribuiríamos o segundo papel de “homem feminizado” em Hatari!.

“The Indian”, o elemento mais velho, é atacado logo nos primeiros minutos, na sequência de uma vertiginosa perseguição, em plena savana, a um rinoceronte. De perna ferida, “The Indian” torna-se pouco útil, limitando-se a invocar a sua experiência para aconselhar Sean. Fala de uma maldição associada à caça do rinoceronte e, por isso, pede a Sean para adiar esse expediente, enquanto a sorte não mudar. É uma espécie de avô prudente nesta família tão pouco modelar.

A mulher ou o primeiro dos animais selvagens

Howard Hawks constrói narrativas com uma naturalidade desarmante. A liberdade que os seus filmes transmitem é única. Dizer que são “filmes de personagens” à frente do seu tempo é pouco para qualificar aquilo que Hawks representa na história do cinema: cometeu a proeza de captar pedaços de vida, sem sucumbir à lógica dominante do entretimento non-stop; criou um ritmo próprio, onde o tempo é firme, palpável, quase real. A simplicidade, coisa muito difícil de compreender para a maioria, parece ser parte do pequeno milagre – em Hawks, orgulhosamente não religioso – que, por exemplo, "Hatari!" materializa. Vejamos a estrutura da sua narrativa, nitidamente circular.


O filme começa em alta velocidade, com Sean a liderar a sua cavalaria motorizada na caça de um possante rinoceronte. Depois de “The Indian” ter sido colhido pelos cornos do animal, entram em cena duas novas personagens: o francês “Chips” e, mais importante ainda, a presença feminina que vai desorganizar o mundo dos homens. Anna Maria D'Allessandro é uma fotógrafa italiana contratada pelo Zoo de Los Angeles para documentar a captura dos animais.

O grande desafio é ver até que ponto Sean lhe permite a integração no grupo. Quando a encontra pela primeira vez, deitada na sua própria cama, Sean antevê o dramático desabamento do seu mundo; a estabilidade da família que chefiava parece posta em risco – e os seus receios, vemos mais tarde, têm razão de ser. D’Alessandro apressa-se a arranjar para si mesma uma alcunha “masculinizante”, “Dallas”, numa tentativa de jogar com a misoginia do “Big Bwana”. Pior do que ser uma mulher – outro animal selvagem difícil de domar… –, “Dallas” faz Sean recordar-se da sua ex-mulher, o que só amplia o seu mais terrível receio: voltar a apaixonar-se por alguém que o desconsidera. Esta é a segunda maldição de "Hatari!" que “Dallas” vai ter de quebrar, se quer ver o seu amor por Sean correspondido. A primeira, recordamos, traduz a impossibilidade da captura do rinoceronte. Podemos dizer que as duas são quebradas quase em simultâneo.

Quando “Dallas” mostra o seu amor pela vida em África e se torna mãe adoptiva de três pequenos elefantes órfãos é rebaptizada pelos autóctones de “Momma Tembo” (“Mãe dos Elefantes”), distanciando-se, deste modo, da imagem associada à ex-mulher de Sean, que detestava o modo de vida deste último. A permissão para amar “Dallas” é como que ritualisticamente atribuída a Sean. Ao mesmo tempo, sem que nada o fizesse prever, Brandy fica com “Pockets” (desfeminizando-o?), a personagem que parecia partir em desvantagem em relação a Muller e “Chips” na conquista do coração daquela. No fim, os homens, afagados pelo amor, já podem caçar o rinoceronte. Fecha-se o círculo com uma muito cómica reprodução do primeiro encontro entre Sean e “Dallas”.

O papel desestabilizador da mulher é outra marca que repetidamente encontramos nos filmes de Howard Hawks: por exemplo, em "Only Angels Have Wings" (1939), Jean Arthur chega, de visita, a um pequeno aeroporto localizado em Barranca, na Colômbia, e conhece o amor da sua vida, um piloto de coração empedernido interpretado por Cary Grant. A ele, como aos seus colegas, compete o transporte de correio através de um percurso de grande risco, pelas montanhas dos Andes. Jean Arthur vai desorganizar a vida desse grupo de homens, tal como “Dallas” em "Hatari!".

Noutros casos, como nas suas screwball comedies, Hawks inverte muitas vezes a relação de forças, transformando o homem no “sexo fraco”. É-lhe característico um irreverente “jogo de papéis” que funciona, muitas vezes, como pano de fundo dessa grande caçada que é o relacionamento entre homem e mulher.

Ler mais aqui: IMDB e Senses of Cinema.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

À noite com o Discovery

Esta coisa de estudar até altas horas da noite tem disto: ligar a televisão a horas indecentes, à procura de alguma coisa sem ser TV Shop ou reposições de programas da tarde. Durante muito tempo, mantive uma atitude conservadora, cingindo-me aos canais de sempre: os generalistas, os informativos, a SIC Mulher e a SIC Radical. A descoberta do canal Discovery surgiu tarde. "Caçadores de Mitos", "Brainiac" e o maior dos guilty pleasures, a série "Pesca Radical", são exemplos de programas que considero ideais para quem quer esvaziar a cabeça durante uns minutos em frente à televisão. Pouco ou nada se preocupam em serem pedagógicos e a probabilidade de encontrarmos neles alguma coisa de minimamente útil para as nossas vidas é quase nula. O que até é bom.

Em "Caçadores de Mitos", dois especialistas em efeitos especiais põem à prova os mitos mais irrisórios. A título de exemplo, será que: um ninja consegue mesmo defender-se com as mãos de sucessivos ataques de espadas ou um elefante tem mesmo medo de ratos ou o acto de soprar numa bolacha depois de esta ter caído ao chão faz alguma diferença? Há três respostas possíveis: "Busted", "Plausible" e "Confirmed". O resultado nem sempre é o mais óbvio - e se eu disser que os elefantes têm mesmo medo de ratos?

"Brainiac" é um programa de ciência anti-pedagógico e, em certo sentido, os minutos mais divertidamente terroristas num canal tido globalmente como "chato" ou "desinteressante" (muito lixo sobre carros, não é?). Do cardápio fazem parte coisas tão extraordinárias como: mandar roulotes pelos ares e fazer experiências tresloucadas para saber, por exemplo, qual o fruto mais difícil de descascar ou até que ponto comer muitos bombons com álcool embriaga. Existe um conjunto de rubricas que se repete a cada novo episódio, sendo que numa das suas mais interessantes temos a oportunidade de ver "coisas, mas muito lentamente". É qualquer coisa não muito distante da cena da explosão de "Zabriskie Point" de Michelangelo Antonioni, mas aplicada a coisas corriqueiras como fazer bolhas num copo com água ou levar uma chapada (ver abaixo). Numa palavra, se os Monty Python fizessem ciência, por certo gostariam de trabalhar neste laboratório.

"Pesca Radical" é um programa que só cabe num canal temático de ciência (?!?!?!) como o Discovery: dentro dele, e às tantas da noite, é um relaxante reality show onde praticamente nada acontece, sem ser homens de barba rija a esvaziar armadilhas com bacalhaus e caranguejos, em pleno Mar do Norte; fora dele, não me teria como espectador, porquê? Porque se calhar o Discovery é mesmo feito para os espectadores que estão fartos das reprises do "Portugal no Coração" na RTP1, das telenovelas brasileiras na SIC ou do "Levanta-te e Ri" na SIC Radical e já ganharam coragem para se aventurar, noite dentro, pelo desconhecido, sabendo como estimar cada uma das suas insignificantes conquistas. Ou pelo menos é isso que eu gosto de imaginar.

Indescritível sequência final do filme "Zabriskie Point" (1970) de Michelangelo Antonioni

Compilação da rubrica "things but very slowly" do programa "Brainiac"

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Affliction (1997) de Paul Schrader

"Affliction" (1997) é um drama humano intenso sobre um homem em debate com as difíceis memórias da sua infância, marcadas pelas bebedeiras e abusos do seu pai. Wade Whitehouse (Nick Nolte) tem medo de estar a reproduzir esse mau exemplo no relacionamento com a sua filha, que apenas vê pontualmente, devido a um sistema de visitas rígido ditado pela sua ex-mulher. Ao mesmo tempo, o seu outro papel, o de polícia numa localidade "gelada" em New Hampshire, parece estar a ser posto em xeque, devido a uma misteriosa morte ocorrida durante a abertura da época de caça.

As agressões do passado, a impotência em se afirmar como um pai responsável e afectuoso e, ao mesmo tempo, a incapacidade de pôr cobro a um conluiu local do qual resultou uma morte são os eventos que vão corroendo o juízo de Wade. A estas dimensões mental e emocional junta-se uma outra que agudiza ainda mais a tormentosa narrativa de "Affliction": o dente que provoca dores excruciantes a Wade e que este só consegue tratar, arrancado-o violentamente nos minutos finais do filme. A partir desta mutilação crua, tudo muda: o passado presta contas ao presente - um celeiro arde, como um sacrifício tarkovskiano - e a conspiração (ilusória ou não) é desmantelada com um gesto violento. Já o protagonista remete-se finalmente à sua condição fantasmática.

Paul Schrader é exímio a misturar as três dimensões da narrativa: mental (a alucinação bate a "realidade"), emocional (o passado que ensombra o presente) e física (a dor de dentes que agrava as duas outras dimensões). A câmara acompanha a queda de Wade numa cadência lenta, sem se precipitar na catalogação das personagens. Este estilo quase sussurrante é interrompido, pontualmente, pelas visões terríveis que Wade tem da infância: o seu pai, Glen Whitehouse, um homem duro, viciado em álcool, que desconsidera o papel das mulheres na sociedade e que sempre odiou a moleza e mão fraca dos seus filhos - "meninos mimados" que não servem, nem nunca serviram para nada...

James Coburn é quem interpreta esta personagem demoníaca que parece saltar do ecrã, nos seus vários momentos de ira explosiva. A opção da câmara solta nas cenas de infância resulta magnificamente: planos curtos, imagem saturada de grão, e aquele olhar perfurante, quase irrealista pela forma como nos atinge, desprevenidamente, o espírito. O porte de Coburn ajuda: é um actor de westerns - os mais duros... - que assalta um "filme de personagens", como uma águia que sobrevoa, vigilante, o habitat frágil das suas presas e que fere de morte, a cada ataque. Rouba até mesmo uma daquelas interpretações pujantes que só Nick Nolte consegue ter. Outro desempenho assinalável que acaba por ser algo obscurecido pela grandeza de Coburn é o de Sissy Spacek, que incarna o lado doce que Wade procura preservar, mas não consegue, porque nem a melhor das almas aguenta viver com alguém que padece de uma incansável auto-negação, como um simulacro inconformado do seu odioso pai.

"Affliction" é, tal como o título indica, um filme desconfortável, que se constrói com base numa realização subtil de Paul Schrader e, sobretudo, na interpretação dos seus actores (Coburn à cabeça). Ainda assim, achamos que a narração em voz-off (Willem Dafoe conta a história do seu irmão Wade) é redundante e que da relação entre as personagens de Nolte e Spacek ficou alguma coisa por explorar: por exemplo, o lado mais "secreto" e íntimo de Wade, personagem que apenas enforma numa incessante escalada demencial.

Ler mais aqui: IMDB.

Logo a abrir: uma caçada

"Hatari!" (1962) de Howard Hawks

"Vampires" (1998) de John Carpenter

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Invasion of the Body Snatchers (1956) de Don Siegel

"Invasion of the Body Snatchers" (1956) é um filme que enceta a carreira de Don Siegel; mostra um Sam Peckinpah imberbe, num pequeno cameo; e, por fim, adapta, pela primeira vez, ao cinema o conto sci-fi de Jack Finney. Este série B, filmado em poucas semanas, gerou um culto tal que, em 1978, Philip Kaufman realizou um primeiro remake, com o mesmo título, a que se seguiram mais dois: "Body Snatchers" (1997) de Abel Ferrara e, recentemente, "The Invasion" (2007) de Oliver Hirschbiegel/James McTeigue (quem o realizou mesmo? um dó li tá cara de amendoa...).

Apesar das qualidades do filme de Kaufman, a verdade é que a aura da obra "original" manteve-se intacta: um dos exercícios mais interessantes sobre o clima de paranóia que se abateu sobre os Estados Unidos, durante a perseguição anti-comunista levada a cabo pelo senador McCarthy na década de 50. A premissa poderá parecer básica, mas, no substrato, este filme de Siegel carrega uma curiosa ambiguidade política, que ora se balança para um propagandístico tom anti-comunista, ora denuncia, indirectamente, a infame política persecutória perfilhada pela administração norte-americana na época.

As sementes que lançaram o caos e substituíram os humanos por duplos sem emoções, autómatos ao serviço de uma grande conspiração que procura instituir um regime informe a nível planetário, fizeram com que, subitamente, até o next door neighbor, o típico all time american, sucumbisse a uma espécie de síndroma igualitarista, intolerante à diferença. Numa primeira parte, Siegel filma a inescapável "conversão" dos humanos em alienígenas. Contudo, pensamos que a mensagem do filme muda quando o protagonista, o médico Dr. Miles (Kevin McCarthy), se torna numa verdadeira dor de cabeça para as forças invasoras.

Com efeito, no começo do filme parecemos estar na presença de um vírus, de origem incerta..., que atacou o coração do bloco capitalista, em tempos de guerra-fria contra a ubíqua ameaça comunista. Miles recorre ao método científico para explicar o inexplicável... pelo menos, até se aperceber de que está em posição minoritária na própria terra onde nasceu. Nessa altura, o "vírus no sistema" passa a ser Miles e o amor da sua vida, a senhora Becky Driscoll (Dana Wynter). Estes recusam abdicar do seu romance a favor de um projecto não-humano com contornos obscuros: a afirmação do que sentem um pelo outro transforma-se, na segunda metade do filme, numa espécie de programa político pelo qual irão batalhar até às últimas consequências.

A partir daqui, quem parece personificar a verdadeira ameaça ao statu quo são os protagonistas; a mensagem que outrora era anti-comunista, transforma-se outrossim numa espécie de ataque subtil à fanática política McCarthista. São iguais contra iguais, numa luta surda pelo poder: "You're next!", avisa Miles, desesperado, no meio da estrada, entre carros que passam indiferentes em direcção à comunidade contaminada...

Não resultando tanto como objecto de terror, "Invasion of the Body Snatchers" mantém-se ainda (ou sobretudo!) hoje como uma muito desafiante alegoria política sobre um tempo de grandes contradições políticas, éticas e morais na sociedade norte-americana. Siegel revela uma maturidade surpreendente, usando planos arrojados para ampliar o clima de tensão: o contra-picado que nos mostra os dois amantes escondidos num closet, ao mesmo tempo que um polícia vasculha a casa à sua procura; na cena do jardim, a câmara posiciona-se em oblíquo, precisamente a partir do local onde Miles vai descobrir as sementes (seed pods), o que produz um efeito de deslocamento estranho e inquietante; na sequência em que o protagonista foge para a estrada, vociferando esbaforido o fim da humanidade, Siegel enfrenta com a câmara o fácies transmutado do antigo médico calmo e afável, agora, um corpo exausto ao qual apenas resta, como linha de acção, anunciar o Apocalipse.

Não foi fácil a Siegel fazer chegar o filme às salas. De facto, o realizador terá visto uma primeira versão da montagem chumbada pelos estúdios: em entrevista, Kevin McCarthy conta que, no primeiro test screening, a história não era contada em flashback e terminava com essa terrível sequência. A impotência final de Miles era excessivamente violenta para o público dos anos 50; logo, Siegel foi obrigado, por razões comerciais, a incluir um happy ending. Resulta forçado, mas nem por isso nos faz esquecer aqueles gritos...

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

domingo, 14 de setembro de 2008

Before the Devil Knows You're Dead (2007) de Sidney Lumet

Aos 84 anos, Sidney Lumet faz um dos seus filmes mais cruéis. As personagens de "Before the Devil Knows You´re Dead" são tratadas sem contemplações, a começar pelo patriarca mais velho: Charles Hanson, a principal vítima de uma imbricada intriga em família. Poucas palavras profere, à medida que vai mergulhando na dor pelo desaparecimento da sua mulher e raspando a superfície para descobrir quem a matou e porquê. A interpretação de Albert Finney é feita com o corpo, como poucas no cinema recente: a face e as rugas, os olhos e a postura rígida, pronta a estalar. Os nervos faiscam e nós sentimos que a morte se aproxima, mais uma vez...

Também Philip Seymour Hoffman dá uma dimensão fortemente física à sua personagem, Andy Hanson, o filho mais velho do casal Hanson. O desconforto com o seu próprio corpo está presente na aparentemente inútil cena de abertura: sexo no Rio de Janeiro, intenso, escaldante, ao mesmo tempo que disforme e animal. Percebemos, instantes depois, que os ares do Rio produziram um milagre em Andy, na medida em que este sempre tivera problemas em satisfazer sexualmente a sua mulher, Gina Hanson (Marisa Tomei). Com ela, Andy não fala de emoções: definitivamente, isso é "coisa entre homens" neste filme.

Andy procura esconder o complexo com o corpo, através do dinheiro (desviado ou não) e das drogas. Só assim consegue aliviar a dor de estar preso ao corpo que o tornou no "patinho feio" da família; que o fez partir para a vida com uma desvantagem que, por exemplo, o seu irmão, Hank Hanson, nunca teve. Com efeito, Hank (Ethan Hawke) é a antítese de Andy : um looser, sem dinheiro, divorciado de uma mulher que o desconsidera e com quem teve uma filha exemplar, mas que dificilmente se orgulha do pai que tem. Contudo, foi sempre "o menino bonito" da família Hanson; aquele a quem nunca faltou a protecção e carinho que Andy nunca teve. E, pior ainda, um amante irresistível para a mulher deste último...

Essas duas personagens, dissecadas por dentro e por fora pela câmara de Lumet, vão-se juntar para, sem esforço, poderem resolver todos os seus problemas: seja fugindo para o Brasil, onde "o corpo funciona"; seja provando à filha que não é um "falhado". Não é de admirar que o filme se inicie praticamente in media res: depois da cena de sexo no Rio, temos a cena do assalto, momento que decidirá o futuro dos protagonistas. Depois o filme recupera, em jeito de relatório policial estilhaçado, as diferentes perspectivas em causa.

O recurso a uma montagem à la "Rashômon"/"Elephant" é justificada pela complicadíssima teia de acontecimentos que se desenrola a partir da cena do assalto, o olho de um furacão que varre a família Hanson do mapa. Este artifício não retira a crueza que Lumet quis imprimir neste conto terrível sobre "a maldade que existe no mundo", como diz a certa altura a única personagem que (prescientemente?) sempre se dedicou ao crime, mas que nesta intriga apenas comete uma violação: a de contar a Charles Hanson a mais terrível das verdades.

Voltámos ao cinema duro e "sem esperança" que Lumet fez tão brilhantemente (sobretudo) nos anos 70, de "Serpico" a "Dog Day Afternoon", passando pelo próprio "Network". Na realidade, não exageramos se dissermos que a brutalidade de "Before the Devil Knows..." é tão desconcertante quanto sabemos que este poderá ser um dos últimos filmes de Lumet, realizador que fez o seu primeiro filme há 51 anos, o inesquecível "12 Angry Men".

Nada aqui parece encaixar no tradicional filme testamental: é um regresso às origens do seu cinema, certo, mas também é uma radicalização da sua visão do mundo, que não esperávamos nesta etapa da sua vida. Choca-nos pela forma como filma a personagem mais velha: Charles Hanson, repetimos, estrondosamente interpretada pelo grande Albert Finney. Esta não tem um minuto de descanso: a dor atravessa-lhe o rosto e ressoa nas poucas palavras que balbucia ao longo de todo o filme. A vingança que perpetra no fim, cheia de ódio e desespero, não traz qualquer alívio. Os seus passos finais, em direcção "à luz", são a mais difícil admissão no Paraíso. Será isso que Lumet espera para si mesmo?

Ler mais aqui: IMDB.

Serpico (1973) de Sidney Lumet

Nos anos 70, Sidney Lumet realizou, pelo menos, três grandes filmes que vinham remexer nos podres da sociedade norte-americana: em "Network", denuncia um sistema mediático sem escrúpulos, sedento de audiências; em "Dog Day Afternoon", esventra uma sociedade à beira da implosão, desorientada e ávida de redenção e, em "Serpico", um polícia honesto carrega a cruz da sua própria integridade moral num departamento criminal infestado de corrupção.

Al Pacino interpreta Frank Serpico, um muito sui generis polícia que, no decorrer da sua actividade, testemunha uma série de irregularidades perpetradas pelos seus colegas. Quanto mais Serpico se envolve na sua causa de repor a lei dentro das esquadras, mais este vai pondo em risco a sua própria vida.

Faz lembrar outro filme do realizador, posterior a este, chamado "Prince of the City", mas, por oposição, também faz lembrar "Cruising", porque o Al Pacino de Lumet é um pilar de verticalidade ética e moral, enquanto o Al Pacino de Friedkin é uma porosidade pela qual a sujidade do meio penetra. Existe um certo estoicismo mitológico na persona martirizada de Serpico e um lado trágico anunciado logo nos primeiros instantes do filme: narrativamente invertidos, em flashback.

A realização de Lumet vem directamente da escola dos movie brats (não citámos Friedkin por acaso), ainda que o veterano realizador de "12 Angry Men" seja anterior a tudo isto - ainda assim, parece que fez alguns dos seus melhores filmes nos anos 70 e "Serpico", filme quase religioso sobre a "realidade das ruas", não é excepção.

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quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Aquelas experiências...

Em "The Mist", (subvalorizado) filme realizado por Frank Darabont e adaptado de uma obra de Stephen King, uma experiência científica levada a cabo pelo exército norte-americano provoca um buraco negro para uma outra dimensão. De lá saem monstros terríveis que vão querer envolver o mundo na sua bruma. O Apocalipse chega pela mão da ciência. Mas há quem pense que seja a revolta de Deus...

A maior experiência científica do século arrancou ontem, na fronteira entre a Suíça e a França. A intenção é a de gerar uma colisão de partículas dentro de um gigantesco túnel subterrâneo, construído para recriar a explosão que deu origem ao universo: o big bang. Dizem que a ciência poderá dar um salto como nunca antes, mas também já lemos que alguns cientistas estão receosos com as consequências desta experiência: a possibilidade de que dela resulte um buraco negro que sugue toda a terra alimenta, de momento, as previsões mais catastrofistas. Descobrir a origem do universo é descobrir as suas leis e, em certo sentido, uma tentativa (arrogante?) do Homem de chegar a Deus. Uma Torre de Babel que se eleva?

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Já saiu a Red Carpet de Setembro

"Wall-E", "Hellboy II" e "Aquele Querido Mês de Agosto" terão sido as principais estreias deste mês de Agosto. Não se pode dizer que tenha sido a mais deprimente das silly seasons, mas, ainda assim, esta edição da Red Carpet está sobretudo virada para a actualidade cinematográfica. Ao folheá-la podemos encontrar: uma breve antevisão (assinada pelo Nuno Gonçalves e por mim) dos filmes mais esperados no festival de Veneza, que agora acontece; uma análise daquilo que podemos esperar da segunda edição do festival de cinema de terror MOTELx (e, por isso, José Mojica Marins é o realizador "Atrás das Câmaras" deste mês) e um artigo sobre Meryl Streep, que brevemente estreia "Mamma Mia!". Destacamos ainda os artigos sobre as grandes séries da rentrée e, na nossa secção de cinema clássico, o fascinante e terrível "Suddenly, Last Summer" (1959), de Joseph L. Mankiewicz. "Lobotomia Sem Corte" (pp. 44-46) é o seu título. Para aceder à revista, basta um clique sobre a imagem.

Suddenly, Last Summer (1959) de Joseph L. Mankiewicz

Publico aqui uma versão adaptada do artigo que acaba de sair na Red Carpet de Setembro.

(...)

"Suddenly, Last Summer" (1959) é uma das “peças filmadas” mais celebrizadas de Joseph L. Mankiewicz. A confluência de talentos neste filme desorienta qualquer cinéfilo: para além do posto de realizador, atribuído ao autor de clássicos como "The Ghost and Mrs. Muir" (1947) e "All About Eve" (1950), destaca-se o argumento de Tennessee Williams e Gore Vidal, com base numa peça do primeiro, e um dos melhores elencos dos anos 50 (Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor e Montgomery Clift). Tem um número limitado de actores e é filmado sobretudo em interiores, dois aspectos típicos no cinema de Mankiewicz, que, neste caso, ajudam a criar a atmosfera ideal para o pretendido anti-“conto de Verão”.

Aqui, “a estação de todos os amores” serve de pano de fundo a uma viagem mental pela história nebulosa de uma personagem-fantasma, Sebastian Venable. Conhecemo-la unicamente a partir de conversas e das marcas profundas que o seu desaparecimento deixou em familiares próximos, entre eles, a sua mãe: a senhora Violet Venable, uma “Deusa louca” incarnada por Katharine Hepburn. Quando esta pede ao doutor Cukrowicz (Montgomery Clift) para fazer uma lobotomia à sua sobrinha, Catherine Holly (Elizabeth Taylor), já nós estamos pouco certos da sua sanidade mental. A forma convulsa como profere palavras de veneração dirigidas ao seu falecido filho parecem sufocar-lhe a alma com a mesma intensidade com que a afastam da realidade.

Com efeito, o mundo de Violet ergue-se, logo no começo do filme, em altura: vemo-la a descer, majestosa, do ascensor que mandou instalar na sua mansão. Este fá-la subir ao primeiro andar (o céu) com a mesma facilidade com que a devolve ao andar zero (a terra) para mais uma incursão bigger than life pela mundanidade. A sua admiração pelo filho morto é perturbante: um misto de endeusamento com amor incestuoso. Diz que Sebastian era um grande poeta e que, um dia, este viu a face de Deus. Cukrowicz assiste a tudo isto, passivo, provavelmente, interrogando-se sobre as causas da morte de Sebastian e até que ponto estas terão alguma ligação com o (suposto) enlouquecimento de Catherine.

As dúvidas que nós sabemos que Cukrowicz tem na sua cabeça – espécie de enigma clínico, qual thriller freudiano – são as mesmas dúvidas que nos assaltam o espírito. A partir deste momento, a câmara de Mankiewicz posiciona-se ao nível dos olhos da persona de Montgomery Clift, como se estes fossem a fechadura pela qual nós, espectadores, espreitamos a realidade das (outras) personagens.

Esta omnipresença/omnisciência é tanto mais interessante quando sabemos, pelas palavras de Violet, que Cukrowicz incarna muito do que Sebastian foi. Com efeito, no momento em que Catherine acusa Sebastian de a ter usado e amado “à sua maneira”, o médico depara-se com um dilema terrível: ou aceita a chantagem de Violet e faz uma operação de alto risco, totalmente injustificada, ao cérebro de Catherine, em troca de dinheiro para a construção de um novo hospital ou rejeita o dinheiro de Violet e, preservando a sua ética profissional, não realiza a dita lobotomia.

Em certo sentido, Cukrowicz tem duas opções à sua frente: ajudar Catherine a ultrapassar, por si, o trauma que a persegue ou usá-la, tal qual como Sebastian fazia, em benefício “da sua arte”, que é como quem diz “amar ou não amar Catherine”.

(...)

"Suddenly, Last Summer" cheira a morte, desde as primeiras imagens: Cukrowicz mostra como se faz uma lobotomia a uma assistência formada por médicos, no precário hospital estadual de Lion’s View. Quando se prepara para fazer uma incisão no cérebro da sua paciente, um som de madeira a rachar faz estremecer os presentes, sugestão enganosa de que algo possa ter corrido mal. O auditório, parcialmente construído em madeira, parece desfazer-se lentamente, à medida que o jovem médico realiza a sua intervenção de risco. As más condições não impediram que o brilhante neurocirugião conseguisse fazer, com sucesso, a lobotomia. Apesar disso, o maior desafio daquele dia estava ainda para vir: visitar a senhora Violet. Na sua sumptuosa mansão, esta convida Cukrowicz para um passeio no seu não menos majestoso jardim, uma das criações geniais de Sebastian.

A meio da conversa com Cukrowicz, Violet coloca uma mosca morta na boca de uma planta carnívora – um dos hobbies naquela casa sempre foi alimentar “a dama” com suculentos insectos cuidadosamente seleccionados. A planta funciona como aperitivo para a proposta que levou a extravagante magnata a escrever uma carta a Cukrowicz, pedindo-lhe que a visitasse: a escandalosa chantagem em torno da (suposta) doença mental de Catherine é a primeira forma de canibalismo em "Suddenly, Last Summer".

As recordações do seu filho morto invadem a alma de Violet, enquanto esta percorre os caminhos verdejantes – algo “assustadores”, murmura para si Cukrowicz – desse templo vivo consagrado à memória de Sebastian, o homem que um dia viu Deus. Não exageramos nas palavras: de acordo com a própria mãe, Sebastian um dia declarara-lhe que vira a Sua face. Numa viagem que os dois fizeram às ilhas Galápagos, no Pacífico, o filho levou a mãe para uma zona costeira, com a intenção de contemplar um cenário dantesco produzido pela natureza.

Qualquer coisa de tão terrível que abalaria a moral humana e provaria que os valores que prezamos – como o amor, a paz e a solidariedade – não passam de um engodo que o Homem colocou a si mesmo para evitar o confronto cru com a terrível Verdade. As picadas de “pássaros devoradores” que dilaceram, na praia, a carne de pequenas tartarugas-do-mar acabadas de nascer são uma visão do inferno para nós, mas “a visão de Deus” para Sebastian. Violet diz que só percebeu isso agora: todos nós (as moscas, as tartarugas-do-mar e o Homem) somos presas de uma criação devoradora (a planta carnívora, os pássaros, Deus… e o próprio Homem). Um esqueleto com asas de anjo divide o plano em que Cukrowicz, o médico, o cientista, o agnóstico, pergunta a Violet se esta acredita que Sebastian viu, de facto, Deus. Esta responde que passou a acreditar, desde o último Verão…

A cena do encontro entre Cukrowicz e Catherine, num hospital de freiras, poderia perfilar entre o melhor Bergman: a sobrinha de Violet discorre sobre as lembranças que lhe vieram ao espírito, desde que perdeu a memória naquele dia fatídico. Flashes de uma tentativa de violação de que foi vítima, numa Primavera passada, misturam-se com os factos de Cabeza de Lobo, povoação perdida onde o protagonista ausente morreu ou foi morto. Catherine está lúcida, mas perturbada. O seu estado não é tão grave como o da sua tia Violet; logo, a hipótese da lobotomia surge como um pau de dois bicos para o jovem médico.

Sem saber ao certo o que fazer, Cukrowicz transfere Catherine para o hospital de Lion’s View. Lá, a rapariga, pensando que está a ser usada, tenta o suicídio, uma espécie de mergulho num lago humano feito de doentes mentais crónicos. A morte chega pouco depois – o esqueleto com asas de anjo volta a aparecer, desta feita, à direita da imagem –, na magnificamente filmada/montada cena da epifania de Catherine. Quando a câmara penetra na sua mente, como um bisturi, o ecrã divide-se em dois: de um lado, a expressão dolorida de Catherine e, do outro, Cabeza de Lobo. Bruscamente, ficamos a saber o que aconteceu naquele Verão. Qualquer coisa de terrível, que dificilmente caberia nestas linhas...

Ler mais aqui: IMDB e Senses of Cinema.

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