domingo, 29 de junho de 2008

Winchester '73 (1950) de Anthony Mann

O cinema de Mann é profusamente simbólico: desde o sininho de "The Far Country" (1954), que, na última cena, desvia o "olhar da câmara" do casal para a lembrança trágica dos que partiram, até às folhas soltas - do dead or alive e do diagnóstico perigoso imputado à personagem de Ralph Meeker - de "The Naked Spur" (1953), que nos recordam do carácter obsessivo e traiçoeiro das personagens, passando por essa figura-síntese de todo o western norte-americano: a arma de fogo. É esta que desperta, puxado o gatilho, sentimentos de ódio e vingança, mesmo entre iguais (irmãos contra irmãos, pai contra filho, homem contra mulher, branco contra branco...).

Em filmes como "The Man From Laramie" (1955) e, acima de tudo, "Winchester '73" (1950) estão lá todos estes condimentos. Neste último, uma obra-prima visual como poucas, Mann atreve-se a transformar a arma numa personagem - afinal, o filme tem o seu nome. Vemo-la a percorrer várias mãos – inclusive, as de um chefe índio – até regressar ao seu legítimo dono (James Stewart), um cowboy atormentado que persegue o misterioso assassino do seu pai.

A espingarda winchester é o fio condutor de todo o filme: todas as demais histórias são construídas em torno do percurso que a arma vai traçando, "de mão em mão". Entre elas, destacam-se duas muito diferentes pequenas narrativas de amor.

A primeira desenrola-se entre a personagem de James Stewart, o actor-fétiche de Mann entre 1950 e 1955, e a de Millard Mitchell, que voltaria a trabalhar com o realizador em "The Naked Spur". São os típicos buddies do faroeste, que fazem, há muito, uma vida juntos, qual casal em eterna "lua de mel" - vemos o mesmo em "The Far Country", mas, desta feita, com o mítico Walter Brennan ("Red River" e "Rio Bravo"), em vez de Mitchell.

A outra narrativa de amor, mais convencional, constrói-se entre um homem, Steve Miller (Charles Drake), e uma mulher, Lola Manners (Shelley Winters). O relacionamento entre eles sofre um revés, depois de Steve se ter acobardado perante um ataque índio e deixado a sua frágil donzela à mercê do inimigo. Apesar de ter regressado ao seu socorro, a verdade é que o marido, revelando-se fraco e covarde (yellow), perdeu a confiança (e o amor?) da sua mulher.

Há um momento estranho no filme, em que um rufia assassina à queima-roupa Steve e, a seguir, Lola, quase insensível ao sucedido, deixa-se tomar como se fosse um troféu. A partir daquele momento, sentimos que há qualquer coisa de instrumental no amor entre homem e mulher nos filmes de Anthony Mann - recordo que em "The Naked Spur" esta ambivalência está mais do que patente, o mesmo para aquele "casamento", quase que conjurado pelo destino, no fim de "The Far Country".

Não é só ao nível diegético que "Winchester '73" se assume como um western genial: em matéria de realização, temos uma câmara clássica, suave e subtil, que adora colocar-se atrás das costas das personagens - "manobra" típica em Mann... -, conferindo ao espectador uma "visão de espaço" esteticamente assombrosa. A fotografia a preto-e-branco de William H. Daniels é outro triunfo deste brilhante filme de Anthony Mann.

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

quinta-feira, 26 de junho de 2008

The Naked Spur (1953) de Anthony Mann

Publico aqui a primeira parte do artigo que escrevi para a Red Carpet de Julho.

Anthony Mann não foi, e continua a não ser, tão tido em conta como um John Ford ou um Howard Hawks. Mas o seu brilhantismo, polvilhado ao longo de uma carreira riquíssima, marcada sobretudo pelo género western, mereceu o devido reconhecimento por grandes nomes do cinema mundial: desde Jean-Luc Godard, que um dia posicionou Mann como um dos mais modernos realizadores de western, a Martin Scorsese, que já afirmou ter sido uma das suas maiores influências, passando por John Carpenter, que apenas adivinhamos não dizer o contrário. Este “The Naked Spur” (1953), western naturalista com apenas cinco personagens, é, para muitos – como Jonathan Rosenbaum, célebre crítico norte-americano, agora, retirado –, o mais elementar filme de Anthony Mann. Descubramo-lo.

Howard Kemp (James Stewart) cavalga pelo oeste à procura de um homem: Ben Vandergroat (Robert Ryan), um criminoso que, uma vez capturado – dead or alive –, dá direito a uma recompensa monetária significativa. Nessa viagem persecutória, Kemp cruza-se com dois estranhos, a quem se vê forçado a pedir ajuda na captura do fugitivo: um velho prospector (Millard Mitchell), que tem visto frustradas todas as suas tentativas para encontrar ouro, e um ex-soldado (Ralph Meeker), recentemente expulso do exército.

A história é contada a ritmo galopante. Logo nos primeiros vinte minutos, parece que o filme chega precocemente ao fim: Ben é apanhado. Mas a acompanhá-lo está uma rapariga chamada Lila Patch (Janet Leigh) – não “a sua rapariga”, mas apenas "uma rapariga"… –, que se juntou a Ben, na promessa de que este a levaria à Califórnia. Para os três, está encontrada a solução para as suas vidas: o dinheiro. Com ele, o velho prospector abandonaria essa actividade em que sempre malograra; o ex-soldado, que também é um playboy incurável, ganharia finalmente alguma boa reputação e Kemp poderia recuperar a propriedade que perdera, depois da sua ex-mulher a ter vendido, sem o consultar, para fugir com outro homem. Mas, antes, é preciso entregar Ben a um xerife. E a viagem ainda nem sequer começou…

Apesar das aparências, o filme começa precisamente a partir deste momento: “Pura aritmética. O dinheiro divide-se melhor em dois do que em três”, assevera cinicamente o criminoso. Ben está pronto a explorar, num jogo de manipulação mental, as fraquezas de cada um dos seus três captures. O seu jogo retórico “sujo”, mas assaz persuasivo, cedo causa estragos nas morais instáveis dos três protagonistas, que, sugestionados pelas palavras de Ben, começam a fazer contas à vida. A equação é simples, mesmo para um rude westerner: quanto menos se divide, mais fica. Dinheiro, claro.

Com tão poderosa premissa lançada, Mann começa a urdir uma atmosfera mortificante em que todos suspeitam de todos: interessa-lhe tanto a consumação da traição fratricida como a paranóia, febril e degenerativa, que a precipita. Por exemplo, em filmes como “Winchester ´73” (1950) e “The Man From Laramie” (1955), Mann radicaliza (ainda mais) essa visão, filmando histórias de ódio e vingança entre irmãos.

Às personagens de “The Naked Spur” impõe-se, desse modo, um jogo de resistência quase cerebral: quem melhor conseguirá domar a ganância que lhes corre nas veias? Fatalmente, sabemos que nem todos poderão sobreviver à viagem: o dinheiro dividido por três não é suficiente para preencher os seus “sonhos de uma vida”.

Entretanto, Kemp é ferido na perna, na sequência de um ataque índio. A febre e as dores excruciantes sensibilizam a jovem rapariga, loira e delicada como uma virgem, que sonha com a Califórnia. Quando, numa alucinação febril, Kemp a confunde com a sua ex-mulher, Lila Patch não se importa de ficar com o papel. De súbito, nasce um amor que o feminiza – afinal, ele é “a personagem que sangra”. O coração amolece, relativizando os vícios que o moviam: Kemp dá um passo atrás na disputa pelo dinheiro, mas um passo em frente na conquista do amor – que, não sabe, também busca.

Para os seus adversários directos – o prospector, o soldado e o criminoso frustrados – este é um sinal de fraqueza “a explorar”. Cada um começa a congeminar esquemas para afastar Kemp da liderança do grupo, mas todos eles se vão guiar por um pressuposto errado: o amor não fragilizou Kemp; pelo contrário, funcionou como a injecção de força de que necessitava para superar a dor física – a mesma que, no cinema de Mann, funciona, muitas vezes, como “ponto de ebulição” da narrativa.

No fim, temos a confirmação disso mesmo num momento de estranho romantismo, em que Kemp, cedendo às preces de Lila, aceita dar um “funeral condigno” ao último cadáver…

Ler mais aqui: IMDB, DVDbeaver e Senses of Cinema.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

O Poder da Imagem V: Videodrome ou Quando o Olhado Rouba o Olhar (I)

3. Videodrome ou Quando o Olhado Rouba o Olhar (I)

Na era do vídeo, ao que parece, somos aquilo que vemos

Alan Stanbrook (2006: 52)

Quantas vezes sofremos? Quantas vezes morremos? Quantas vezes matámos? Quantas vezes vivemos? … Para responder a tão arbitrárias e imponderáveis questões, qualquer um de nós, Homens do Ocidente, forjados num grande e borbulhante caudal mediático, teríamos de embarcar num exercício mnemónico de proporções abismais. No fundo, todos nós morremos, ceifámos vidas; fomos carrascos e massacrámos iguais… A resposta à pergunta “quantas vezes passamos por tais experiências?” só poderá ser acautelada se atendermos à longa lista de imagens que nos entraram pelos olhos dentro e às recordações que nos foram sub-repticiamente implantadas no córtex cerebral; ao acervo de experiências que vivemos na pele de outros, sobretudo, de outros imaginários – com efeito, confirma-se que “a realidade do homem é semi-imaginária” (Gorki) (Morin, 2001: 236).

Mais do que testemunha dos inomináveis crimes que se perpetram mesmo à sua frente, no grande e pequeno ecrã, o espectador, ou o “spect-acteur” [espect-actor] (Weissberg) (Nel, 2004: 82), é um dos seus mais conscienciosos executo­res. Perante o surgimento daquilo que Mongin definiu como “nova economia das imagens da violência”, até que ponto podemos falar de um fenómeno generalizado de dessensibilização do indivíduo?

Em Videodrome (1983), um filme de David Cronenberg, Max Renn, o “director de uma cadeia de televisão especializada em pornografia hard core” (António, s.d.: 67), procura um novo programa que explore limites nunca antes explorados em televisão, com vista a destronar a concorrência – a pornografia já não é suficiente para atrair espectadores, daí que seja imperioso encontrar uma fórmula ainda mais radical (“I´m looking for something that will break through – something tough”, diz Max Renn). A acção decorre numa era em que subsistem poucas restrições, éticas e morais, no espaço mediático. (...)

(alerta para spoilers, a partir daqui)

Em "Videodrome" (1983), encena-se um talk show impossível em que a televisão fala de facto sobre... televisão

Num talk show em que participa juntamente com uma vedeta da rádio, a enig­mática Nicki Brand, e o “profeta da comunicação”, Brian Oblivion, Max nega que os programas do seu polémico canal 83, a Civic TV, contribuam para um clima social de violência e vício sexual: “eu ofereço aos meus espectadores um escape inofensivo para as suas fantasias e frustrações. Quanto a mim, isso é uma acção social positiva”. Já o professor Oblivion, personagem que apenas vemos num ecrã de televisão, perante a per­gunta “acha que os programas eróticos e violentos levam à dessensibilização?”, res­ponde: “ O ecrã da televisão tornou-se na retina da visão mental. É por isso que me recuso a aparecer na televisão, excepto através de um televisor.”

Graças ao seu “amigo” Harlan, especializado em encontrar clandestinamente sinais televisivos por todo o mundo, chega aos olhos de Max, o programa Videodrome (vídeo + dromo): uma espécie de vídeo-arena onde se realizam torturas e assassínios – não há enredo nem personagens. “É muito, muito realista. Penso que é o futuro.”, diz Max Renn a uma das suas agentes. A mesma agente que, dias depois, lhe revela a paterni­dade de Videodrome: o professor Brian Oblivion . O próximo desafio de Max será encontrar-se, fisicamente se possível, com o grande arquitecto de Videodrome, que não fala directamente com ninguém há mais de 20 anos: “eu sou o ecrã do meu pai”, afirma Bianca Oblivion.

Cena de "Videodrome" (1983), em que James Woods é engolido pelo ecrã do seu televisor

Depois do encontro com Bianca, Max Renn recebe uma cassete de vídeo do professor Oblivion: “O ecrã da televisão tornou-se na retina da visão mental. Por isso, o ecrã faz parte da estrutura física do cérebro. Portanto, tudo o que aparece no ecrã de televisão emerge como uma experiência em bruto para quem a vê. E assim, a televisão é a realidade e a realidade é inferior à televisão… Max, muito me apraz ter vindo até mim. Eu já passei por tudo isso, sabe? A sua realidade já se tornou numa meia alucina­ção em vídeo. Se não se acautelar, tornar-se-á numa alucinação total…”.

De súbito, a pequena palestra do professor Oblivion é interrompida pela aparição de um vulto enca­puzado, que prontamente o asfixia até à morte. É a partir desse momento crucial que Max Renn é acometido de alucinações inequívocas: a face da sua amante Nicki Brand revela-se por detrás do capuz, sussurrando a este para vir ter com ela… A televisão humedece, liberta gritos arquejantes de prazer – “vem”, “não me faças esperar” – a que Max Renn responde, penetrando a sua cabeça nos lábios escancarados de Nicki Brand, inscritos no ecrã do televisor.

No dia seguinte, um atordoado Max Renn volta a consultar Bianca Oblivion, que lhe revela que o seu pai morreu discretamente há 11 meses atrás, numa sala de opera­ções. A causa de morte foi o tumor que Videodrome lhe provocou :“Não creio [que esta crescença na cabeça] seja um tumor, descontrolado, despistado, pulsante, um pedacinho de carne mas que é, de facto, um novo órgão, um novo segmento do cérebro. Penso que as vastas doses de sinal Videodrome acabarão por originar uma nova excrescência no cérebro humano, que produzirá e controlará as alucinações ao ponto de alterarem a rea­lidade humana".

Afinal, "nada de real existe fora da percepção da realidade (…)”, diz Brian Oblivion numa mensagem-cassete enviada a Max Renn). Com efeito, o falecido Brian Oblivion mantém-se vivo numa vídeo-existência, ou melhor, num conjunto de cassetes de vídeo que antecipadamente gravou, para que a sua mensagem não morra.

A clivagem entre o real e a alucinação acentua-se, à medida que Max se “deixa envolver” por Videodrome. É nesta altura que entra em cena Brian Convex, “arquétipo da vulgaridade mercantil americana” (Grunberg, 2006: 42). Afirma-se director de uma empresa multinacional, de nome Spectacular Ocular, que produz óculos baratos para o terceiro mundo e sistemas ópticos ultra-sofisticados para a NATO (Grunberg, 2006: 43) … e também o programa Videodrome (que descreve como sendo uma “grande fábrica de alucinações e muito mais…”).

A convite de Convex, Max desloca-se a uma loja da Spectacular Ocular, onde irá ser examinado por uma espécie de “capacete de alucinações”, “que permite decompor; visualizar e analisar as alucinações geradas pelo sinal “videodrome”” (Grunberg, 2006: 43). A alucinação total, que Oblivion vaticinará, inicia-se aqui: Video­drome transforma-se em puro exercício psicadélico, quase surrealista, em que Max Renn é objectivado numa espécie de autómato assassino, tanto ao serviço dos interesses monopolistas de Convex e do seu (falso-)amigo Harlan, como dos objectivos ambíguos de Bianca Oblivion e da sua organização.

Depois de ter morto os seus sócios, a mando da Spectacular Ocular, e de se ter rebelado contra Convex (morto à queima roupa) e Harlan (implodido), chegamos à admirável cena final de Videodrome, e importa descrevê-la nas palavras de Serge Grunberg: “A cena final é um suicídio, primeiro reclamado por Nicki no televisor depois mimado pelo duplo televisivo de Max, e no fim “realmente” efectuado por Max, em replay (Max, nesta altura, é já um gravador)”. Nessa cena, Cronenberg leva ao extremo o complexo identificação-projecção-transferência de Morin, mostrando que Max é, como Bianca Oblivion apregoara, “a palavra vídeo feita carne” (“the word video made flesh”).

(continua)

Bibliografia citada:

  • ANTÓNIO, Lauro, «Videodrome», in Cinema e Comunicação Social, Festival Internacional do Cinema de Portalegre, s.d., pp. 67-68;
  • GRUNBERG, Serge, «alucinação ou o paradoxo do cinema», in David Cronenberg: a expressão nua, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2006, pp. 36-47;
  • MORIN, Edgar, O Cinema ou o Homem Imaginário, Relógio d´Água, 1997;
  • NEL, Noel, «A dimensão afectiva das imagens violentas nos media contemporâneos», in revista Media & Jornalismo, n.º4, 2004, pp. 73-91;
  • STANBROOK, Alan, «Os cancros criativos de Cronenberg», in David Cronenberg: a expressão nua, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2006, pp. 47-55.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Morrer na praia

A Perfeição pode ser fatal. Em "Morte a Venezia" (1971), de Luchino Visconti, Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) esteve muito próximo Dela e acabou por morrer na praia.

A Holanda, depois de eliminar, de forma contundente, a Itália e França, caiu aos pés de uma Rússia quase perfeita (3-1). Morreu na praia. Portugal, afastado pela Alemanha (3-2), nem isso.

domingo, 22 de junho de 2008

Gun crazy

"Deadly is the Female" (1950) de Joseph H. Lewis

"Winchester '73" (1950) de Anthony Mann

quarta-feira, 18 de junho de 2008

terça-feira, 17 de junho de 2008

Ghosts of Mars (2001) de John Carpenter

Para muita gente, Carpenter tem dado sucessivos passos em falso com os seus últi­mos filmes: "Vampires" (1998) e este "Ghosts of Mars" (2001). Talvez a sua estética, mais trashy e gótica, tenha confundido os menos atentos, porque, na realidade, Carpenter nunca foi tão bem sucedido... a arriscar tanto.

Comecemos pelo que (praticamente) não mudou: a obsessão pelo "filme de cerco", sobretudo, o western "Rio Bravo" (1959), do seu ídolo Howard Hawks, desta vez, conjugada com um subtil piscar de olho a "Sergeant Rutledge" (1960), um courtroom western de John Ford que se vai urdindo a partir de múltiplos flashbacks.

Falemos do que mudou: a dimensão do desafio, que nunca foi tão grande. A ideia aqui redunda naquilo que poderíamos designar por um reciclagem do western clássico, já que Carpenter descontextualiza grande parte dos seus elementos, sem eliminar - pelo contrário, densificando o mais possível - os traços caracterizadores do género. A acção desenrola-se em Marte, no ano de 2176, e, logo no começo, somos introduzidos a uma sociedade humana de base matriarcal - Joan Crawford ("Johnny Guitar") tê-la-ia adorado. Logo, é o adeus definitivo, e "doloroso", à virilidade inabalável de um John Wayne; aos desfila­deiros e às planícies poeirentas dos desertos norte-americanos.

O próprio inimigo índio é substituído por criaturas satânicas, deformadas e carniceiras - réplicas de um Marilyn Manson, num dos seus piores dias e com desejos ainda mais acentuados de auto-mutilação. Assim, da mesma forma que John Wayne é uma mulher e os desertos são em Marte, também os índios não são índios.

Apesar de não parecer, isto é um western. E não são precisos mais de trinta minutos de filme para percebermos isso: a iconografia fortíssima de Carpenter (o balão, o comboio, a prisão) ajuda-nos a consolidar a evidência de que "Ghosts of Mars" é bem mais do que um, ainda assim igualmente genial, terror série B, primitivo e hardcore, passado no planeta vermelho.

Ler mais aqui: IMDB.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Assault on Precinct 13 (1976) de John Carpenter

Não me considero uma pessoa cheia de certezas, mas ninguém me demove da ideia de que "Assault on Precinct 13" (1976) é simplesmente um dos melhores filmes de sempre. Ponto. Foi a primeira obra de referência do maior cineasta vivo, John Carpenter, e funciona como o mais perfeito embrião de toda uma filmografia.

Sob influência das matrizes clássicas de Hollywood, o cinema de John Carpenter mistura a cadência de um Howard Hawks com uma visão desoladora sobre o presente-futuro da huma­nidade. As suas personagens encon­tram-se habitualmente confinadas a espaços claustrofóbicos e expostas a uma ameaça constante e indeterminada.

O medo é filmado através da sugestão e o ini­migo é quase sempre inde­finido: ele tanto pode morar lá fora como dentro de nós. A ideia de que o homem alimenta, autofagicamente, o seu próprio o fim faz escola no cinema de Carpenter - herança de um Anthony Mann?

Na senda de tudo isto, a história de "Assault on Precinct 13" desponta em quatro direc­ções: um polícia presta-se a assegurar o encerramento de uma esquadra; um carro com perigosos marginais anda à deriva pela cidade; um presidiário de alto risco, de nome Napoleon Wilson, é transferido entre duas esquadras; um pai e a sua filha circulam nas estradas sempre inseguras de Los Angeles.

O cenário é de convulsão: os tiroteios envolvendo a policia e gangs armados repetem-se e o risco de se mergulhar na total anarquia intensifica-se (não vamos por aí, mas não será por acaso que um dos "terroristas" do filme tenha na cabeça uma boina à Che Guevara... - deixamos escapar esta, estás perdoado Carpenter). O homicídio totalmente arbitrário daquela menina inocente, que apenas queria comer o seu gelado, é o "acender de pólvora" de toda a narrativa. Espécie de episódio-charneira que liga as pontas soltas da história.

As referências ao western são evidentes: desde a forma como Carpenter filma as movimentações rumorejantes do gang, a lembrar os índios de John Ford, até à virilidade que Carpenter inculca na personagem de Napoleon Wilson, próxima da de um John Wayne. Acima de tudo, "Assault on Precinct 13" marca a pri­meira desconstrução do clássico "Rio Bravo" (1959) por Carpenter (depois deste, fez vários "filmes de cerco", de "The Thing" a "Pro-Life", um dos dois filmes que realizou para a série de terror "Masters of Horror", passando pela sua última obra-prima, "Ghosts of Mars").

Em "Assault on Precinct 13", estamos no auge do cinema atmosférico, próximo do terror, de um equi­líbrio visual intocável, com uma câmara clássica, plena de elegância e robustez, auxiliada pelo formato scope, que empresta à história um horizonte visual único. O trabalho de realização está também em perfeita sintonia com a trilha sonora que, como se tornou regra no seu cinema, é composta pelo próprio John Carpenter: minimal, agressiva e absolutamente viciante.

Ler mais aqui: IMDB.

A grande obsessão cinematográfica (x6)

"The Seven Year Itch" (1955) de Billy Wilder

"Death Proof" (2007) de Quentin Tarantino

domingo, 15 de junho de 2008

Um domingo qualquer

...

Hoje, não foi preciso nenhum animal de circo para a Suíça fazer história frente a Portugal: o 2-0 foi a sua a primeira vitória numa fase final de um Europeu. No entanto, a Suíça fica de fora e Portugal passa para os quartos-de-final, em primeiro lugar no grupo. Entretenimento inconsequente e mole, num domingo nebuloso.

A convite dos Blues

Vá lá: Spielberg já fez coisas bem mais previsíveis do que a cena de "Close Encounters of the Third Kind" (1977) em que a personagem de Richard Dreyfuss, picada pela curiosidade, aceita o convite de umas criaturinhas d'outro mundo para uma viagem intergaláctica a bordo de um espalhafatoso disco voador - coisa bem capaz de pôr num chinelo o iate do multimilionário russo Roman Abramovic.

Parece que foi do nada - diria Madaíl? Disse Eusébio - que o space cowboy da selecção nacional partiu, à velocidade da luz, para o Chelsea. Scolari falou da idade como um dos principais motivos para tão inesperada fuga: em breve, fará 60 anos, o que significa que a sua carreira está praticamente no fim. Repito: mais hawskiano que isto é impossível.

O western

"Rio Bravo" (1959) de Howard Hawks

"Ghosts of Mars" (2001) de John Carpenter

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Shyamalan: o fenómeno? (VI - fim de votação)

No CINEdrio, 21 cinéfilos escolheram o seu Shyamalan favorito - muito obrigado a todos eles. Passo a publicar os resultados finais desta pequena sondagem (que durou menos de um mês):



Pode-se dizer que o filme tido como o primeiro fracasso de crítica e comercial de Shyamalan acaba por reunir o maior número de preferências entre os votantes. Falo da parábola política "The Village" (com quase metade dos votos), filme desprezado pela crítica e público norte-americanos. E, assim, como já manda a tradição (exemplos de Clint Eastwood, Brian De Palma e John Carpenter), Shyamalan conquistou a Europa (a revista Cahiers du Cinéma considerou "The Village" o melhor filme norte-americano do ano, o mesmo aconteceu com "Lady in the Water", há dois anos). Foi uma cisão com o mainstream fundada numa visão refrescantemente livre do cinema e do mundo. Estava confirmada a descoberta de um dos mais inventivos auteurs do início do século XXI.

"Unbreakable", o segundo classificado (19%), é um excelente cult movie, que tem ganho significância com o passar do tempo, à medida que o universo de Shyamalan se constrói. O filme seguinte, "Signs" (14%), é provavelmente o seu mais claro tributo a Hitchcock e permanece como um dos mais atmosféricos, tensos e assustadores, filmes dos últimos anos.

"Lady in the Water" (10%) fica sem grande destaque no quarto lugar com mais um voto que o popular "The Sixth Sense" (5%), obra de género facilmente identificável - o terror -, sem a complexidade filosófica dos seus últimos filmes.

Aos que não gostam de nenhum filme de Shyamalan (5%), resta-me desaconselhar "The Happening" , o mais desinspirado filme do jovem realizador de origem indiana, e reiterar o aviso: beware...

quinta-feira, 12 de junho de 2008

quarta-feira, 11 de junho de 2008

The Happening (2008) de M. Night Shyamalan

Muito curioso: Shyamalan não mostra a cara neste filme. Talvez não tenha coragem de assumir que ficou sem ideias. Com efeito, "The Happening" é o seu filme mais certinho, na forma e no conteúdo (vazio), mas mesmo como entretenimento resulta frouxo. Em cada cena, esperamos pela próxima, rezando para que Shyamalan esteja a enganar-nos com sucessivos MacGuffins. Mas não, não há cartas na manga: é desinspiração pura, espécie de fac-simile ecológico, gráfico (o único R rated movie do realizador) e pateticamente lacrimejante de "Signs".

Claro que é melhor que a maioria dos filmes que vamos vendo no cinema, porque a câmara de Shyamalan, mesmo quando domada por... um qualquer objectivo encapotado de relançamento comercial de uma carreira, tem sempre momentos de alguma inventividade (exemplo da forma como enquadra várias personagens no mesmo plano).

Normalmente, os seus filmes fazem-nos rir, comovem-nos e arrepiam-nos. Em "The Happening", todas estas características são relativizadas: raramente nos faz rir, nunca nos comove e arrepia-nos tanto quanto nos entedia.

O argumento pode ter sido escrito a pensar em Mark Wahlberg, mas este não deixa de ser um dos pontos mais apagados do filme: para começar, Mark Wahlberg na pele de um professor de biologia é, desde logo, pouco credível; depois, chora perdidamente cena sim, cena não - uma "flor de estufa" que nada tem a ver com esses poços de energia viril, fria e quase boçal, que eram as personagens que interpretou, por exemplo, nos filmes de James Gray e, acima de tudo, em "The Departed", de Martin Scorsese. O mesmo para John Leguizamo, que nunca entra no papel.

A excepção (sim, aquela que confirma a regra) é garantida por Zooey Deschanel, cujo fácieis alucinado empresta ao filme um toque estético de estranheza, espécie de ponto de luz na fotografia banal de Tak Fujimoto (o mesmo director de fotografia de "Signs"). Ainda assim, Zooey está a anos-luz da magnífica Bryce Dallas Howard ("The Village" e "Lady in the Water").

Não gastemos mais palavras: "The Happening" é o pior filme de Shyamalan.

Ler mais aqui: IMDB.

Das Testament des Dr. Mabuse (1933) de Fritz Lang


Tal como o assassino de crianças de "M" (1931), Hans Beckert (Peter Lorre), Mabuse é um dos mais aterradores vilões da Sétima Arte. Um criminoso louco que vive aprisionado num hospício há dez anos, escrevinhando, compulsivamente, em folhas de papel, planos para crimes futuros – os seus "testamentos". A um desses trabalhos deu o título "O Império do Crime" e começa assim:

A Alma do Homem tem de ser abalada até às suas profundezas, através de crimes imperscrutáveis, e aparentemente sem sentido. Crimes que não beneficiam ninguém, cujo único objectivo é instalar o medo e o terror.

Para passar da teoria à prática, Mabuse faz uso de uma espécie de poder telepático, post-mortem, tão terrífico quanto enleante. O perigo que representa para a sociedade é enorme. Que o diga o inspector Lohmann: personagem que anda perdida em quase todo o filme, alheia "àquilo" que está por detrás da onda de violência que assola a cidade.

Para ler o substrato deste fantasmático filme de Fritz Lang, pedia que se esquecessem do facto de este datar de 1933, ou melhor, para porem de lado, por instantes, a alusão visionária ao horror nazi: visto de perto, este é um filme que fala sobre a ubiquidade do terror, como se fosse uma obra do pós-11 de Setembro. Afinal, da filosofia de Mabuse parece germinar aquela que, hoje, volvidos mais de 70 anos sobre este filme, comanda as operações de uma célula terrorista: o terror ao serviço de uma luta com fins políticos, embora marcadamente auto-destrutiva.

Os media omnipresentes como instrumentos de transmissão da mensagem violenta e da imagem de um Deus messiânico: Mabuse, que é todo ele um contagiante "programa do mal", podia ser Hitler e Goebbels, mas também Osama Bin Laden e os media modernos. Para isso, muito contribui o endeusamento que a câmara de Fritz Lang faz dele: raramente o filma, não o explica, não o julga.

Repare-se como, no fim, o bom Lohmann desiste do caso, dizendo: "não há nada aqui que um mero inspector possa fazer". A sua impotência final é um alerta, expurgado do moralismo fácil que, na tela, pune os malfeitores, mas que depois, fora dela, é de uma inutilidade atroz. É que, para aflição das audiências, Mabuse não morre, porque é indestrutível; vive dentro de nós e usa-nos como fantoches. Resta-nos fazer ouvidos moucos aos sussurros manipuladores desse génio do mal. Para que, assim, não se cumpra "O Império do Crime".

Ler mais aqui: IMDB.

Duelos silenciosos

Não sabemos a opinião de "Harmonica" (Charles Bronson) sobre índios, nem tão-pouco sobre o República Checa-Portugal, mas sabemos que é lacónico, tem um olhar perscrutador e transforma o instrumento que lhe dá nome numa arma mortífera. "C'era una volta il west" (1968), de Sergio Leone, não seria uma obra-prima sem ele.

Karel Brückner é o seleccionador da República Checa, desde Dezembro de 2001. Dizem que falou muito pouco na última conferência de imprensa antes do jogo frente a Portugal. Apenas o vimos, sereno, a apontar a selecção nacional como a favorita para o jogo de amanhã. Tem uma presença nobre, rosto contemplativo e dá peso a cada palavra que profere. Como um chefe índio que lança, sem pestanejar, a seta envenenada.

domingo, 8 de junho de 2008

Shyamalan: o fenómeno? (V)

M. Night Shyamalan não tem meias medidas na leitura que faz das suas principais influências cinematográficas. Os papéis que o próprio, por regra, desempenha nos seus filmes são disso exemplo: a inspiração vem dos curtos, e habitualmente cómicos, cameos de Alfred Hitchcock, ainda assim, Shyamalan tem vindo a desempenhar papéis cada vez mais centrais na narrativa.

Em "Signs" e "Lady in the Water", o realizador ocupa vários minutos da acção a encarnar personagens em torno das quais gira o "sentimento do filme". Há quem diga que este é um dos mais evidentes sintomas do seu insanável narcisismo, mas também existem aqueles que defendem ser uma genuína apropriação dessa célebre marca autoral do realizador de "The Birds".

Quanto a nós, trata-se, em primeiro lugar, de uma opção formal consciente que vem acentuar uma certa estética home movie, cara ao realizador, que serve para moldar as suas alegorias fantásticas, altamente politizadas, sobre Deus e o Homem.

Em segundo lugar, é uma assinatura viva, orgânica, por vezes quase naive de tão melodramática, ainda que de grande coragem: afinal, Shyamalan aparece despido, perante o mundo, na sua desesperante procura pelas "grandes respostas"...

sábado, 7 de junho de 2008

Personagens hawksianas

Os filmes de Clint Eastwood, como os de Howard Hawks (mais do que John Ford, a meu ver), falam-nos muito de homens e das relações, fortes e inquebráveis, que entre eles se estabelecem. São exemplos de uma cumplicidade rara que não encontramos nas mulheres. O epítome disso é "Million Dollar Baby" (2004), em que temos essa ligação feita de aço que une Clint Eastwood (o treinador) a Morgan Freeman (o seu ajudante). É uma amizade que não se deixa desgastar com palavras. Os silêncios bastam. Muito Old school, portanto.

"Felipão" é teimoso e impulsivo, mas também tem um coração de manteiga. É o homem que levanta os punhos com a mesma facilidade com que verte uma lágrima só de ver os seus "meninos". A cumplicidade com os jogadores é total, mas a chave do sucesso também está na relação de enorme proximidade que tem com Murtosa, o treinador-adjunto. Reforçamos esta impressão num anúncio publicitário que por aí anda...

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Shyamalan: o fenómeno? (IV)

Os filmes de Shyalaman são férteis em ressurreições e avatares. Neles, a morte é tão inevitável quanto a força regenerativa, qual Deus ex machina, do amor. Carl Th. Dreyer revisitado?

O espírito do psiquiatra de "The Sixth Sense" (1999) vive desinquietado num corpo morto, que se move no sentido da reconciliação impossível com a mulher que deixou.

A fé é o tema de "Signs" (2002), história de um padre que desistiu de "acreditar" depois de assistir à morte lenta da mulher, que ficou com o corpo dilacerado por causa de um aparatoso acidente de viação. A experiência de quase-morte do seu filho parece tocada por Deus e, por isso, o padre recupera a fé.

"É o amor que faz o mundo girar", diz a personagem de William Hurt em "The Village" (2004). Nesse filme, a protagonista, Ivy Walker, parte numa viagem abismal pelos bosques para salvar a vida de Lucius Hunt, o homem que ama.

Em "Lady in the Water" (2006), Cleveland Heep, num momento pungente de libertação emocional (ver vídeo abaixo), cura as feridas de Story, a ninfa do "Mundo Azul" que tem por missão salvar a humanidade (da guerra e da apatia).

No cinema de Shyamalan, o amor é o grande super-poder dos seus heróis terrenos - não, não me esqueci do thriller mental "Unbreakable" (2000).

quarta-feira, 4 de junho de 2008

O sobrevivente

Depois de vários bombardeamentos e confrontos, a batalha de Iwo Jima contabiliza apenas um sobrevivente entre as forças nipónicas: o jovem soldado Saigo (Kazunari Ninomiya). Sobre ele pesa a memória de um admirável general: Kuribayashi (Ken Watanabe). A mensagem final do filme "Letters From Iwo Jima" (2006) é uma mensagem de esperança em toda uma geração, que da experiência inumana da guerra deverá apenas resgatar os exemplos de coragem e dignidade.

Está decidido: Barack Obama é o vencedor da nomeação democrata às eleições presidenciais. Apesar de não ter vencido no Dacota do Sul (resultado surpreendentemente positivo para Hillary Clinton), o ex-senador do Illinois atingiu ontem o "número mágico" de 2118 delegados. O seu discurso foi novamente revigorante, falando mais do país, de John McCain e de Hillary Clinton do que de si: afinal, é o primeiro candidato presidencial afro-americano na história dos Estados Unidos. Com efeito, uma parte substancial do seu discurso foi ocupada com elogios à sua adversária: a sua luta por um sistema de saúde "universal" e a forma destemida como travou esta campanha foram alguns dos pontos realçados por Obama. Um acto de puro cavalheirismo ou um sinal de que o tal make up sex já está em curso? Hillary, por sua vez, insistiu em não sair da corrida, dizendo que precisava de tempo para pensar. Mas, sabendo nós que as possibilidades de ganhar esta corrida na secretaria são remotas, provavelmente a ex-primeira-dama estará a ponderar retribuir os elogios a Obama e juntar-se a ele num novo combate chamado John McCain.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

All the King's Men (2006) de Steven Zaillian

Steven Zaillian tem-se notabilizado sobretudo como argumentista, tendo participado na escrita de filmes como "Schindler's List" (1993), com o qual ganhou único Óscar da sua carreira, "Mission: Impossible" (1996) e "Gangs of New York" (2002). Como realizador, tem uma carreira ainda curta, com apenas três filmes, entre eles, este remake da obra-prima de Robert Rossen de 1949, a tragédia política "All the King's Men". Como fazer jus a um filme com 59 anos, que mantém uma frescura notável?

Raramente os remakes resultam, já sabemos isso. Neste caso, quanto a nós, havia, pelo menos, duas hipóteses: apostar numa recriação, sobretudo formal, do original ou transportar alguma da sua acutilância para uma narrativa nova, ainda mais adaptada aos nossos dias (como o que aconteceu no "The Manchurian Candidate" de Jonathan Demme).

No caso de "All the King's Men", a aposta certa seria a primeira, porque, como dissemos, e repetimos, o filme de Rossen podia ter sido feito hoje: o retrato que faz do mundo da política é dos mais desassombrados da Sétima Arte. Contudo, ao mesmo tempo, também a realização de Rossen é de uma modernidade extraordinária, facto que complica ainda mais o desafio de um remake.

Gostamos de ver a actualidade do filme de Rossen premiada, mas esta versão de "All the King's Men" ("O Caminho do Poder", em português) é quase terrorista: lança, sem pedir licença, o título de uma obra-prima para a lama. Em primeiro lugar, é esteticamente horrenda: a fotografia parece ser excessivamente retocada a computador e as opções de câmara são de uma previsibilidade atroz. Em segundo lugar, comete a proeza de transformar uma montagem simples e equilibrada numa completa salganhada, repleta de flashbacks e flashforwards que só baralham.

Em terceiro lugar, é sentimentalista, quando tinha obrigação de ser tão ou mais político quanto o original. Em quarto lugar, os actores estão péssimos muito por culpa de um casting idiota: como é possível porem Sean Penn na pele de Willie Stark? O resultado é, no mínimo, grotesto: espécie de cruzamento entre o atrasado mental de "I Am Sam" (2001) e Mussolini em versão redneck. Importa relembrar que o primeiro Willie Stark foi Broderick Crawford, numa interpretação poderosa que lhe valeu o Óscar da Academia.

Os outros actores também estão parcial ou completamente desasjutados em relação às respectivas personagens: Jude Law intepreta o papel do jornalista que apoia Stark, mas ganha um protagonismo excessivo neste filme, o que acreditamos ser mais fruto da sua aparência do que das suas aptidões enquanto actor; Patricia Clarkson é demasiado velha para desempenhar o papel de assessora; Jackie Earle Haley e Kate Winslet marcam uma presença tão insignificante quanto decorativa, já Mark Ruffalo e Anthony Hopkins, apesar de encarnarem personagens importantes na intriga, não têm sequer minutos suficientes para existirem.

Zaillian revela total falta de tacto: a história nunca chega a arrancar verdadeiramente e quase todas as personagens estão reduzidas a pequenas aparições mal amanhadas, que produzem inflecções abruptas na narrativa. Em suma, este "All the King's Men" é o oposto do filme homónimo que lhe serve de base: piegas, inconsistente e confuso.

Ler mais aqui: IMDB.

Lutar, lutar, lutar... mas a guerra não acabou já?

Na obra-prima de Clint Eastwood, "Letters From Iwo Jima" (2006), o general japonês Kuribayashi (Ken Watanabe) comandou os seus homens na célebre batalha de Iwo Jima, mesmo quando a derrota era mais do que certa. Um exemplo de persistência e sacríficio. Até ao fim.

Hillary Clinton mantém-se na corrida, mesmo quando toda a imprensa já deu Barack Obama como o vencedor da nomeação democrata às presidenciais. Muito se especula sobre o porquê da insistência de Hillary em permanecer na corrida: há quem diga que é para abater a dívida de 20 milhões de dólares que contraiu durante esta longa campanha eleitoral; porque está em negociações com Obama para definir o seu lugar na futura administração - os jornais não enjeitam a possibilidade de uma espécie de make up sex entre os candidatos -, mas ainda há quem escreva que Hillary está simplesmente à espera que Obama seja assassinado (!). De qualquer modo, Obama deverá fazer amanhã, logo depois das eleições no Montana e Dacota do Sul (que deverá vencer, sem dificuldade), o discurso da vitória.

Já saiu a Red Carpet de Junho

A edição de Maio da Red Carpet já está disponível. São mais de 70 páginas com críticas a vários filmes que estiveram em cena no mês de Maio, artigos sobre festivais (Monstra e Indie Lisboa), uma análise pormenorizada à série "Lost", ciclos em papel sobre casamentos, a II Guerra Mundial e alguns dos maiores flops da Sétima Arte e muito mais. Destaco ainda o especial sobre M. Night Shyamalan (para o qual contribui com um pequeno texto sobre "Lady in the Water") e, se me permitem, o texto que redigi para a secção "Cinema Clássico" (pp. 44-46): desta vez, falo de "The Asphalt Jungle" (1950), a obra-prima de John Huston da qual retirei a imagem que dá vida ao cabeçalho deste espaço. Para ler, basta clicar na imagem.

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