segunda-feira, 31 de março de 2008

La Chinoise (1967) de Jean-Luc Godard

Nas vésperas da revolta dos estudantes em Paris, Jean-Luc Godard já havia feito um filme sobre o seu desenlace. Um grupo de estudantes universitários discute os contornos de uma revolução à imagem da que assolava a China de Mao na época. Expulsar os estudantes e professores da universidade, para finalmente pôr fim a uma sociedade baseada num ensino exclusivista, é o fim de uma clique intoxicada pelo ódio anti-americano e a utopia marxista-leninista, sob a forma maoísta ou não.

O Maio de 68 é matéria infinitamente poética para qualquer filme, mas em "La Chinoise" estamos no centro do turbilhão ideológico que engoliu a França na altura. O pensamento fragmentado e efémero; a impossibilidade de um consenso (até há deserções num grupo composto por meia dúzia de estudantes); o ardor pela mudança como prenúncio; a luta por uma revolução violenta, alicerçada em grandes causas, mas sem programa, são os sentimentos e ideias-força que comandam esta corrosiva farsa política.

O registo do filme é semi-documental, com as "nouvelle vagueanas" sobreposições na montagem, e dois actores notáveis (que são rostos incontornáveis do movimento): Anne Wiazemsky (que se casou com Godard precisamente em 1967, um anos depois de "Au Hasard Balthazar") e Jean-Pierre Léaud.

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sexta-feira, 28 de março de 2008

All the King's Men (1949) de Robert Rossen

Pensamos que "All the King's Men" nasce da intenção do realizador Robert Rossen em: retratar a perda da inocência de um político local, que tem a veleidade de querer ascender impoluto aos grandes lugares de decisão; provar que a boa vontade, o sentido absoluto de justeza e a prática indefectível do bem não são virtudes que resistam à sempre difícil escalada rumo ao poder ou encenar a mais falida queda de toda a mitologia, tão cândida quanto irreal, que reveste, ou revestia, o mundo da política.

Em suma, "All The King's Men" é o anti-"Young Mr. Lincoln" perfeito: um homem, de origem humilde, auto-didacta, que promete manter-se fiel às suas raízes e combater, até à morte, uma sociedade iníqua que se alimenta da ignorância dos pobres e da corrupção dos ricos, tomba perante a grandeza das suas próprias palavras - é o fim do jovem Lincoln e o arranque de uma máquina política feroz.

Por sorte ou azar, Willie Stark, o nome do homem de quem falamos, torna-se um dos mais poderosos, e temíveis, políticos nos Estados Unidos. Conquista votos a construir estradas, estádios e hospitais; cala a oposição, usando a força; e, sem perder a imagem de "pai de família", atrai jovens mulheres, que se deixam enfeitiçar pelo seu carisma. Em pouco tempo, a transparência dá lugar à fachada.

Jack Burden, o jovem jornalista que assinou a primeira peça sobre o intrépido "político de rua" Willie Stark, é a personagem que serve de "guia moral" ao espectador, acompanhando o lento apodrecimento de Stark e do seu sonho. Sem ele, rapidamente nos sentiríamos condenados pela visão de Rossen sobre o lodoso mundo da política, uma vez que a personagem de Stark, muito graças à interpretação brilhante (e oscarizada, como o filme) de Broderick Crawford, foge aos estereótipos fáceis, elevando a um novo patamar tudo aquilo que há de ambíguo e contraditório no poder - fazer bem? sim, sempre, mas... a que custo?

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A actualidade de "All the King's Men" foi recentemente premiada (ou não) com um remake homónimo, protagonizado por Sean Penn, o novo Willie Stark, que em Portugal passou directamente para o mercado DVD, com o título "O Caminho do Poder" .

quinta-feira, 27 de março de 2008

terça-feira, 25 de março de 2008

Chikamatsu monogatari (1954) de Kenji Mizoguchi


Feito no mesmo ano que "Sanshô dayû", e um ano depois de "Ugetsu monogatari", "Chikamatsu monogatari", conhecido pelo seu título anglo-saxónico "The Crucified Lovers", materializa o novo sonho desolador de Mizoguchi sobre o passado do seu país, mais concretamente, a sociedade japonesa do século XVII, onde o adultério era considerado um crime punido com crucificação, para além de um estigma social indelével para qualquer família.

Apesar de "Sanshô dayû" ser um duro retrato da escravatura no Japão medieval, a fazer lembrar, a espaços, o horror do Holocausto, e de "Ugetsu" falar da desintegração familiar num cenário de guerra, "Chikamatsu monogatari" consegue ser um dos mais amargurados filmes sobre um país e um tempo.

Em vez de termos uma história previsível de um amor adúltero entre um homem e uma mulher de classes sociais diferentes, que acabam vítimas de uma sociedade regida por leis desumanas, Migozuchi resolve complicar a equação, filmando a fatídica viagem de um homem e uma mulher que, depois de injustamente acusados de adultério, se rendem a uma paixão primordial provocada pela angustiante fuga a uma morte certa.

Tal como em "Ugetsu", a morte e o amor são elementos que se cruzam, produzindo a libido que une os protagonistas. De facto, só Mizoguchi tem a capacidade de imbuir de erotismo um filme trágico, "sem sexo", contra a vergonha e a opressão.

Por outro lado, ao mesmo tempo que o Estado aparece como uma figura castradora da liberdade de amar, é da repressão que nasce o amor imortal - "ela parece tão feliz e ele tão sereno", diz alguém que observa os dois amantes cativos a serem conduzidos ao crucifixo.

Como se Mizoguchi, num golpe cínico de génio, nos fizesse ver que não precisa de destruir o sistema, se consegue evidenciar a sua natureza degenerativa. Com efeito, no fim, para os dois amantes, a opressão significou libertação; a morte, eternidade.

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sexta-feira, 21 de março de 2008

Young Mr. Lincoln (1939) de John Ford

Antes de mais, convém contextualizar historicamente "Young Mr. Lincoln": ano de 1939, ou seja, na Europa estala a II Guerra Mundial e, nos Estados Unidos, campeia um sentimento culpabilizante de impotência e desilusão, escudado pelos tradicionais pressupostos da sua política isolacionista.

A guerra não era, ainda, um problema que pusesse em causa a unidade interna do país, que apenas fora interrompida, entre 1861 e 1865, com o decurso da sangrenta guerra civil norte-americana; era, antes, o catalisador de um sentimento misto de culpa e insegurança que acometia a opinião pública norte-americana, a mesma que, no fim da I Guerra Mundial, decidiu pressionar o Congresso a chumbar o Tratado de Versalhes, isto é, a paz que ela própria ajudara a conquistar, aqui, na Europa. É que os Estados Unidos são uma democracia relativamente sólida desde Lincoln e do trauma fratricida e, nela, o povo, e o seu mood oscilante, determinam o curso da política externa.

Foi importante, para os criadores desse tempo, recuperar os grandes símbolos da mais velha democracia do mundo, reafirmando-a, como forma de resistência firme - ou contra-propaganda? -, em face da perversa mudança que operava no outro lado do Atlântico. Com "Young Mr. Lincoln", mas também com "Mr. Smith Goes to Washington", dois clássicos de 1939, ressuscitava-se Abraham Lincoln, o Presidente perseverante e humanista que lutou pela unidade do país durante a guerra civil e que, por isso, foi morto.

O filme de Ford centra-se nos primeiros anos de Abe Lincoln, já o de Frank Capra homenageia uma certa "ideia de Lincoln". No primeiro, encerra-se um gesto deificador do homem e político; no segundo, eleva-se tudo aquilo que a ideologia democrática representa e que, aos olhos do protagonista, se sintetiza na figura de Lincoln. Capra é um realizador que põe as suas personagens a sonhar - e nós com elas -, mas não filma com a sofreguidão de Ford.

Todavia, não nos equivoquemos, "Young Mr. Lincoln" é tão propagandístico como "The Great Dictator" (1940); é tão carregadamente simbólico (a analogia rio/passagem do tempo ou o anúncio trágico dos céus, nos últimos instantes) como os filmes de Sergei Eisenstein, realizador que um dia, sobre "Young Mr. Lincoln", disse: "de entre todas as obras que possuem uma harmonia quase clássica, esta ocupa o lugar de honra" – neste caso, não é a mensagem, mas a força intemporal da Arte que os une.

As imagens que produziram - e que, no caso de Ford, atingem o seu pico neste filme - são a expressão mais harmoniosa, radical para o seu tempo, de uma linguagem universal, capaz de esmagar qualquer opúsculo ideológico arcaizado pelo tempo.

No entanto, John Ford foi dos poucos cineastas a conquistar uma espécie de simplicidade divina, fazendo do plano fixo, por vezes distante, misterioso e perscrutador (exemplo da incrível sequência do homicídio), um canal privilegiado para o seu génio.

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O Regresso ou a Ressurreição

"O Regresso" (2003) de Andrei Zvyagintsev

"Cristo Morto" (c. 1500) de Andrea Mantegna (c.1431-1506)

O paralelismo formal é claro. No filme "O Regresso" muitas cenas parecem construídas de acordo com os cânones classicistas do belo, amplamente codificados pelo Renascimento italiano, de que o pintor Mantegna é só mais um exemplo. Nelas, como a cena da refeição, vemos a preocupação pela simetria, pelo equilíbrio e, neste caso particular, um exercício perspéctico que tende a beber na representação quase escultórica do "Cristo Morto" de Mantegna. Apesar da origem russa, o realizador parece, assim, ceder a uma das imagens que melhor define a tradição pictórica ocidental, posta em causa a partir do século XIX, e que se caracteriza pela obsessão em representar uma realidade objectiva, a três dimensões, em contraposição ao ícone oriental.

Mas a metáfora cristológica, que parece percorrer toda a narrativa do filme, acaba por clarificar-se no recurso a este paralelismo: o pai em o "Regresso", que os dois filhos desconheciam até o verem pela primeira vez nesta cena, funciona quase como uma aparição, tão fugaz, misteriosa e não corpórea como a de um Cristo que, de morto, passa a ressuscitado. E talvez não seja por acaso que, depois de verem o pai deitado a dormir, as duas crianças procurem a fotografia de família, onde poderiam confirmar a identidade paterna do homem que acabavam de observar, num livro com imagens de pintura religiosa.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Tsubaki Sanjûrô (1962) de Akira Kurosawa

O sucesso comercial e de crítica de "Yojimbo" foi tal que Akira Kurosawa foi pressionado a escrever, contra vontade, uma sequela. Os elementos marcantes no primeiro filme (mistura inusitada entre comédia, tragédia e ultra-violência) mereceriam um novo doseamento em "Sanjuro": em termos de swordplay, menos quantidade, mais qualidade; o negrume seria quase extirpado, em virtude de um acréscimo de humor físico, entre o slapstick e a auto-caricatura.

"Sanjuro" é um entretenimento assumidamente light, ao pé de "Yojimbo", sem, no entanto, fugir àquilo que é apanágio desta faceta da obra de Kurosawa: narrativa inteligente e simples, acção minuciosamente coreografada e personagens carismáticas.

Na realidade, apesar de ambos serem autênticos cocktails cinematográficos (western + musical + filme de acção puro e duro), "Sanjuro" é assumidamente mais directo e acessível que "Yojimbo": a acção e a comédia consomem cada partícula do filme, não havendo tanta preocupação em retratar as personagens e o seu modus vivendi na sociedade japonesa de meados do século XIX.

O filme começa com um grupo de 9 jovens, e inexperientes, samurais dispostos a arriscar as suas vidas no combate contra a corrupção. A sua reunião é interrompida pela intromissão de Sanjuro, que, aparentemente de forma desinteressada, se junta ao grupo. O seu sangue-frio e argúcia tornam-no num líder incontestável no seio do movimento, mas, do lado dos "maus", haverá quem lhe faça frente. E é o duelo final, aquele que Kurosawa descreveu no seu argumento como sendo "inefável", o zénite de "Sanjuro": a simetria e a suspensão irrespirável que se estilhaçam num golpe relampejante.

Kurosawa não cedeu, mesmo após dois filmes, e manteve Sanjuro, ou o "homem sem nome", que vai e vem, deixando um rasto de sangue atrás, como um invencível Deus da guerra. Não me interpretem mal, Sanjuro é justo e bom, mas também é alguém que odeia a paz: enquanto esta subsistir, ele diz "See ya later".

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quarta-feira, 19 de março de 2008

Sobre o racismo: diferentes registos, o mesmo problema


Cena de "25th Hour" (2002), de Spike Lee, em que o protagonista Monty (Edward Norton), um traficante de droga com apenas um dia de liberdade pela frente, tem um momento de esmagadora clarividência, quando confrontado com o seu próprio reflexo.


Discurso de Barack Obama, que teve lugar ontem, dia 18 de Março, e que poderá ficar na história como o grande discurso sobre o racismo depois de "I Have a Dream" de Martin Luther King. Esta pungente dissertação sobre o racismo nos Estados Unidos surge na sequência da divulgação de imagens nas quais aparece o pastor Jeremiah Wright, o amigo e conselheiro religioso que baptizou as filhas de Obama e oficializou o seu casamento com Michelle Obama, a proferir um raivoso sermão em que apelida a população branca de "inimiga", ao mesmo tempo que incita ao voto em Obama.

Sogni d'oro (1981) de Nanni Moretti

"Sogni d'oro", filme vencedor do Leão de Ouro em Veneza, conta a história de um realizador e professor despótico, temperamental, egocêntrico e as suas aventuras sonhadas com uma sua aluna.

É uma espécie de ensaio sobre a "depressão do criador", tal como "Aprile" ou "Il Caimano", dissertando, sem espaço para redenção, sobre a implacabilidade do ser humano. "Sogni d' Oro" é um filme selvagem e violento (até fisicamente) sobre o meio artístico (colegas, público, crítica...), qual palco escabroso consumido pela inveja e o ódio.

A revolta que devora este filme de Moretti é tanto mais impressionante, quando sabemos que esta é uma das suas primeiras longas-metragens – será impressão minha ou Moretti entrou para a "indústria" com um desencanto terrível e foi "suavizando" com o passar do tempo? É que em "Il Caimano" ainda há esperança; aqui esta está mais que exaurida.

Tem a visão truculenta e sarcástica de um Buñuel (diria até mais, a certa altura, a "sitcom com coelhos" de "Inland Empire" de David Lynch parece vir beber aqui), sem contudo se desligar da realidade social e política do país que lhe serve de cenário: a Itália dos anos 70 e 80, ou melhor, a Itália (ainda) sob o efeito dos "sonhos" de 68.

Está vista uma das mais brilhantes obras do cinema europeu moderno. Bravo Moretti!

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terça-feira, 18 de março de 2008

O Poder da Imagem II: O Olhar em Un Chien Andalou e Film


1. O Olhar em Un chien andalou e Film

"Un Chien Andalou" (1929) de Luis Buñuel (cena do olho cortado)

Logo nos primeiros instantes de Un chien andalou (1929), Luis Buñuel, na posição de actor sob a sua própria direcção, faz uma incisão no olho de Simone Mareuil. A câmara filma esta impressionável operação cirúrgica num plano rasgado, ampliando a imagem do olho e os efeitos da acção da lâmina de barbear, até que a retina se extravase sob a forma de pus. Antes da efectivação do corte, Buñuel refreia o gra­fismo chocante da cena, com uma imagem de contemplação quase metafí­sica da Lua (afinal, ao mesmo tempo que Buñuel executa impetuosamente a referida intervenção, a Lua é atravessada por uma nuvem fina e cortante). Se não fosse a sua enorme sugestibilidade, esta célebre cena de Un chien andalou não teria efeito. Não resultaria. (...)

O surrealismo é isto: a passagem de uma realidade para uma nova realidade, em que o pensamento humano se desembaraça dos ditames da razão, “alheio a qual­quer preocupação de ordem estética ou moral” (Geada, 1985: 21). Da mesma forma, ali­cerça-se num certo automatismo psíquico; na recusa das barreiras psi­cológicas que se abatem sobre o inconsciente. (...)

O filme de Luis Buñuel não pretendia ser a transcrição do sonho, mas um simu­lacro deste; respeitava os “mecanismos estruturais do sonho”, mas não se entregava total­mente à espontaneidade da escrita automática. (...) Fiel a esta ideia, Buñuel recorre aos dispositivos convencionais de fazer cinema para “provo­car e desorientar a capacidade racional e lógica do espectador” (Geada, 1985: 27) – o intuito é o de repro­duzir virtualmente os efeitos do automatismo psíquico. (...)

Assim, retomando a cena do olho esquartejado de Simone Mareuil, por que Buñuel cega a rapariga, logo nos primeiros instantes do filme?

Entendendo a imagem na óptica de Edgar Morin (1997, 197-198), segundo a qual a “imagem (…) é simbólica por natureza, por função” e que “simbólico é tudo aquilo que sugere, contém ou revela outra coisa, ou algo mais que a si próprio”, a imagem-simbolo do olho rasgado merece mais do que uma simples análise descritiva; compele-nos à leitura do seu subtexto, onde, muito subjectivamente, jaz o esboço de uma resposta à pergunta acima formulada: talvez, simplesmente, porque o olho é supér­fluo.

A vista é excedentária, e até potencialmente perigosa, para que o homem atinja a dita supra-realidade, ou surrea­lidade. Se a submersão no inconsciente libertará o Homem, a vista só poderá enfraquecer a percepção da realidade intrínseca ao ser. Sem olho, a rapariga podia, agora, ver-se melhor – “olhar para dentro” – e conhecer o “verdadeiro” mundo que a rodeia (...).


"Film" (1965) de Samuel Beckett e Alan Schneider (Parte III)

Algo semelhante se passa em Film (1965), obra conjunta de Samuel Beckett e Alan Schneider, em que Buster Keaton tapava os espelhos e os olhos que o rodeavam (os animais e a luminosidade intrusiva da janela) com o fito de evitar o seu próprio reflexo. Quando olhou para den­tro, ou melhor, quando cerrou as pálpebras, Keaton viu-se a si mesmo e libertou um grito mudo de assombração.

Ora, esta interpretação, numa primeira análise, poderá contrastar com a metáfora oftal­mológica de Theodor W. Adorno. Este, sendo um dos expoentes máximos do pen­samento crítico de Frankfurt, advogava a existência de uma realidade externa ao homem, que, sem este o saber, o contro­lava – a indústria cultural, onde a cultura era mercadoria transaccionável, servia-se de uma bateria de estereótipos, impeditiva da desor­ganiza­ção mental, ou de qualquer esforço reflexivo por parte do espectador face a algo que, sem a predominância de certos estereótipos e clichés, seria alvo de incompreensão (Wolf, 2003: 91-92).

Adorno receava que os mass media, fenómeno recente e atordoante, tivessem “o efeito de produzir uma geral homologação da sociedade, permitindo e até favorecendo, por uma espécie de tendência demoníaca intrínseca, a formação de ditaduras e governos totalitários capazes, como o «Grande Irmão» de 1984 de George Orwell, de exercer um controle minucioso sobre os cidadãos (…)” (Vattimo, 1992: 11).

Os mass media assumiam, assim, um papel vital na manutenção do statu quo, que se traduziria na eternização hegemónica da classe burguesa, ideia também ela cara à imagética “de esquerda” buñueliana. Assim, segundo Adorno, “as pessoas podem não só ser privadas da verdadeira compreensão da realidade como também a sua capacidade de entenderem a experiência da vida pode ser fundamentalmente enfraquecida com uso constante de óculos fumados” (Wolf, 2003: 92). Isto é, a libertação só se dá no Homem clarividente, enquanto que aquele que “vê mal” continuará a sua via-sacra de submissão às ordens subliminarmente transmitidas pelos mass media.

Penso que, na metáfora oftalmológica, Buñuel inverte a situa­ção: o cego vê mais que o clarivi­dente. Porquê? Porque se “vê mais" a si mesmo (...). O primeiro, Adorno, pede às massas que abram os olhos e o segundo, Buñuel, numa perspectiva naturalmente diferenciada, e muito mais idiossin­crática, pede ao Homem que feche os olhos para que se confronte com os medos e traumas que povoam o seu interior obscuro, ou seja, para que aceite o seu “eu” reflec­tido, segundo Beckett em Film.

(continua)

Bibliografia Citada:

  • GEADA, Eduardo, O Poder do Cinema, Livros Horizonte, Lisboa, 1985;
  • MORIN, Edgar, O Cinema ou o Homem Imaginário, Relógio d´Água, 1997;
  • VATTIMO, Gianni, A Sociedade Transparente, Relógio de Água, 1992;
  • WOLF, Mário, Teorias da Comunicação, Editorial Presença, 2003.

segunda-feira, 17 de março de 2008

O reflexo (na TV)

"North by Northwest" (1959) de Alfred Hitchcock

"Signs" (2002) de M. Night Shyamalan

Bianca (1984) de Nanni Moretti

Tomo II de "Sogni d'oro" (com genérico de abertura azul, em vez de vermelho). Filme tragicómico, com o (falso) bucolismo típico do cinema de Moretti, mas também com o seu alter ego levado ao cúmulo da obsessão-compulsão.

Moretti é o novo professor de matemática da escola Marylin Monroe, um colégio com um método de ensino pouco ortodoxo e um corpo docente inusitado. Para o professor, a solidão é vivida com zelo e dedicação, preenchida por espreitadelas indiscretas aos vizinhos da frente e intromissões descaradas na vida amorosa dos amigos. Quando conhece Bianca, a outra "recente aquisição" do colégio, esse misantropo voyeur vê-se obrigado a rever a sua vida.

"Bianca" é um tratado sobre a loucura e a solidão, que resulta maravilhosamente graças à total imersão de Nanni Moretti numa personagem difícil e complexa. Muitos elementos (e actores) vêm do seu anterior filme, como o gosto por doces (especialmente a sachertorte, que até dá nome à sua produtora) e a verdadeira devoção à prática do desporto (que está presente em quase todos os seus filmes). Mas o que ressalta é o interesse do realizador por personagens inadaptadas por vontade própria, que compulsivamente questionam, do lado de fora, o mundo que as rodeia.

O cinema de Moretti prova, em "Bianca", que a comédia (negra) pode ser feita com base nas pequenas coisas da vida: as banalidades são a grande matéria-prima do realizador italiano, como se nuns sapatos de senhora estivesse escondida uma componente bigger than life que explicasse toda a existência humana.

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domingo, 16 de março de 2008

Palombella Rossa (1989) de Nanni Moretti

Claro que é o mais complexo filme de Moretti; tão ligado a questões políticas do passado recente da Itália que se torna, para um português médio, de muito difícil leitura - faço-a aqui, ciente que o filme pede para ser revisto, com um olhar mais informado.

Com este filme, o cinema de Moretti politiza-se como nunca antes, contando a história fragmentada e surreal de um dirigente do Partido Comunista Italiano (PCI) que joga pólo aquático e que, durante um jogo decisivo para o campeonato, procura reconstituir o seu passado (os medos e obsessões que vêm da infância e as opções ideológicas da adolescência e... o "Doutor Jivago" que passa ininterruptamente na TV).

"Palombella Rossa" é revolto, agitado e destrutivo, ao mesmo tempo que encantador e estranhamente comovente, mas revelando, agora mais do que nunca, um Moretti profundamente preocupado com o rumo político de Itália.

Não que se trate de uma espécie de epifania ideológica para o realizador: já antes Moretti revelava uma atitude política devastadora, lançando a dúvida, em forma de caos e violência, sobre o sistema político e, acima de tudo, sobre o dito "quarto poder". "Palombella Rossa" é mais literal: Moretti não é realizador ("Sogni d'oro"), não é professor ("Bianca"), não é padre ("La Messa è finita"); é, antes, um líder comunista em auto-questionamento.

Entre o musical político-filosófico e a crónica desportiva anti-heróica, "Palombella Rossa" é uma explosão furiosa agridoce, com alvos em todas as direcções. Veja-se o público que assiste à arena líquida: a massa que fermenta o sonho-pesadelo de Moretti.

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sexta-feira, 14 de março de 2008

Lola (1981) de Rainer Werner Fassbinder

Apesar de ter sido feito antes de "Veronika Voss" ,"Lola" é, para muitos, a última parte da trilogia do pós-guerra BRD (Bundesrepublik Deutschland).

Estamos nos anos 50, a década preferida de Fassbinder, e a Alemanha traumatizada vive um súbito período de graça no plano económico e financeiro. No entanto, o poder político, profundamente conotado com o seu trágico passado recente, mantém-se nas mãos daqueles que, mais ou menos oportunisticamente, deram o passo em frente para liderar a reconstrução da Alemanha. O poder aparece, tal como em "The Marriage of Maria Braun", como coisa intrinsecamente corruptora.

Lola (grande interpretação de Barbara Sukowa) é a principal atracção de um luxuriante lupanar, que serve de ponto de encontro dos homens poderosos (incluindo o presidente da Câmara) de uma localidade alemã. A chegada de Von Bohm (Armin Mueller-Stahl), o novo director de urbanismo, um homem da velha guarda com valores sólidos e uma visão para o país ("moderno e antiquado"), vem desorganizar o mundo de Lola e dos seus conspícuos clientes.

"Lola" é um filme dividido entre o glamour e o romantismo naive de Hollywood dos anos 50 (mais uma vez, Douglas Sirk, pese embora tenha como principal fonte de inspiração "Blue Angel" de Josef von Sternberg) e um ambiente histórico carregadamente político. É mais uma obra de Fassbinder que se constrói "entre extremos": num momento, é encantador, mágico e frenético; noutro, cruel, negro e intempestivo.

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quinta-feira, 13 de março de 2008

É sexo, estúpido

"Såsom i en spegel"/"Through a Glass Darkly" (1961) de Ingmar Bergman

"Repulsion" (1965) de Roman Polanski

terça-feira, 11 de março de 2008

Die Sehnsucht der Veronika Voss (1982) de Rainer Werner Fassbinder

Esqueçam Douglas Sirk e pensem em "Sunset Boulevard". Agora esqueçam Hollywood e relembrem a extinta UFA, os estúdios alemães onde nasceram nomes como Fritz Lang, F.W. Murnau, Josef von Sternberg, entre outros.

Passemos subitamente para 1982, ano da morte do prolífico cineasta Rainer Werner Fassbinder, o pai do "novo cinema alemão", onde se incluiu também Wim Wenders. Nesse ano, Fassbinder faz, na sua penúltima obra, uma viagem temporal pelo cinema e pela história até chegar a uma diva decadente do cinema mudo que pôs termo à própria vida, Sybille Schmitz. Fassbinder não quis ser literal (como já se viu, nunca é) e reapelidou-a de Veronika Voss.

Em "Veronika Voss", encontramos a estética noir do filme de Billy Wilder, mas a sua diva é (ainda) mais tétrica que a larger than life Norma Desmond. O papel masculino fica a cargo de um jornalista desportivo enfeitiçado pela beleza, e história, da antiga deusa da Sétima Arte.

Se Wilder não teve coragem de matar o sonho - Norma acaba por ter, no final, o seu "renascimento" -, Fassbinder fá-lo, sem remorsos, neste filme e revalida o jornalista, que, ao contrário da maior parte dos jornalistas de Wilder ("Ace in the Hole" e "The Front Page"), tem princípios fortes... salvo no amor.

"Veronika Voss" é um drama excessivo, muito plástico e frio, ou seja, distante da obra-prima homenageada.

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segunda-feira, 10 de março de 2008

Yojimbo (1961) de Akira Kurosawa

Sanjuro, o samurai solitário, qual John Wayne nipónico, chega a uma pequena comunidade, dividida entre dois gangs, com um objectivo em mente: negociar o seu futuro. A sua chegada é notada, depois deste exibir uma extrema agilidade no manejo da espada, deitando abaixo, sem pestanejar, um punhado de malfeitores. O sangue-frio e a forma implacável como ceifa vidas - "uma morte por segundo", queria Kurosawa - fazem deste o mais cobiçado guerreiro da vila. Mas Sanjuro é arguto, tacteando cinicamente o terreno nos dois lados da barricada, antes de tomar partido.

"Yojimbo" é um filme de acção, pincelado com um humor negro mordaz, ou um western tresloucado e, para o seu tempo, ultra-violento (membros decepados e algum sangue jorrado) desenrolado em pleno Japão do século XIX. O (anti-)herói desta trama é apresentado como sendo o mais consciencioso "homem de guerra", enriquecendo à custa dos autênticos massacres que executa. Mas até tem, vamos descobrindo, o coração no sítio...

Na senda de "Seven Samurai", Akira Kurosawa cria um objecto raro: visual e sonicamente assombroso, com a utilização magistral do widescreen e de efeitos sonoros inovadores (para além dos temas musicais desconcertantes, o som do esquartejar da espada e do vento empoeirado são elementos fulcrais nas cenas de acção) e exemplar na escrita, pejada de reviravoltas, jogos mentais e algumas deliciosas bizarrias (exemplo da buñueliana "mão de boas-vindas" que Sanjuro vê na boca de um cão vadio, mal entra na conturbada vila).

Para mais, "Yojimbo" vai beber ao carisma imenso do seu actor principal, o braço direito de Kurosawa: Toshirô Mifune. Ele reinventa o género do cowboy solitário, lacónico (falando, sem falar), cerebral e, acima de tudo, cool. Em certa medida, esta composição de Mifune esteve na origem da carreira de Clint Eastwood, já que "Per un pugno di dollari" de Sergio Leone, o seu primeiro grande sucesso, é um remake de "Yojimbo".

O círculo completou-se em 2006, quando Eastwood homenageou o legado Kurosawa-Mifune com uma obra colossal: "Letters From Iwo Jima".

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Fantasmas

"Sunset Boulevard" (1950) de Billy Wilder

"Die Sehnsucht der Veronika Voss" (1982) de Rainer W. Fassbinder

Die Ehe der Maria Braun (1979) de Rainer Werner Fassbinder

Fassbinder queria que a sua trilogia do pós-guerra, ou a BRD (Bundesrepublik Deutschland), fosse protagonizada por personagens femininas, vítimas, mais do que da guerra, dos efeitos da paz.

O fim da II Guerra Mundial representou, para Maria Braun, o início de um casamento formalizado entre as ruínas da Alemanha nazi. Foi o começo, na realidade, de uma espécie de tragédia sentimental e política, que se constrói à medida que Braun sobe a escada do poder, por forma a conservar intacto o amor que sente pelo seu marido, um militar alemão preso por homicídio...

É um melodrama com os incontornáveis laivos "sirkianos" (o ídolo de Fassbinder), isto é, de fotografia radiosa a enformar uma realidade política e social contraditória. Trata-se de uma obra cruel, desencantada, fria à maneira alemã, sobre uma mulher que se serve de amantes para preservar o amor utópico ou um matrimónio adiado.

Claro que em Fassbinder também não há finais felizes, nem tão-pouco uma visão leve e optimista sobre a forma como a Alemanha lidou (e continua a lidar) com os fantasmas da II Grande Guerra. Ou não seria "The Marriage of Maria Braun" uma história de amor, em tempos de paz (?), que começa e acaba com uma explosão.

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domingo, 9 de março de 2008

Sociedades (ainda) de massas

"Modern Times" (1936) de Charles Chaplin

"Playtime" (1967) de Jacques Tati

Pubblico di mmerda


"Sogni d'oro", de Nanni Moretti, é uma obra-prima violenta, colérica, quase terrorista, contra o cinema, a televisão, quem dela faz parte, dos realizadores, aos produtores... ao próprio público.

O filme data de 1981, mas lança uma pergunta, que ainda hoje carece de uma resposta clara: a quem devemos atribuir a responsabilidade pela mediocridade generalizada da televisão? Por regra, quem nela trabalha diz - e não duvido que acredite piamente nisso - que a televisão dá aquilo que o público quer, refugiando-se, ao mesmo tempo, na argumentação auto-vitimizante da "ditadura das audiências" ou de "os malefícios da concentração".

No fundo, como a televisão depende da publicidade e o investimento publicitário é directamente proporcional aos níveis de share, a forma mais segura que cada canal tem para ser visto é apostar em programas feitos à medida da sua audiência. Mas, do lado de fora, questionamo-nos se a televisão não deverá ter, afinal, uma função pedagógica, formadora, que eduque o seu público, fazendo-o evoluir - e será que assumir essa função torna a televisão num meio elitista, economicamente inviável?

Ao mesmo tempo, não se pode fugir a este facto: se a maioria da população portuguesa gosta de coisas como os "Malucos do Riso" foi porque, numa primeira instância, a televisão lhe tentou a ver coisas como os "Malucos do Riso".

Estamos a poucos (?) anos da implantação da Televisão Digital Terrestre (TDT) em Portugal e o poder de "fazer televisão" continua concentrado num conjunto restrito de pessoas, que pouco tem feito para evitar a perpetuação de uma "tele-socialização" estupidificante, alimentando os espectadores com programas enlatados, que exploram sucessivamente as mesmas fórmulas - aquelas que eles chamam "de sucesso".

Apesar das aparências, a TV Cabo não veio melhorar esta situação. Pelo contrário, actualmente, calam-se os chatos dos "intelectuais" com canais pagos, que não são mais do que arquivos desordenados de programas dispensados pelos canais de sinal aberto, e, no mainstream, insiste-se numa política de "engorda do porco".

Dir-me-ão que o público deve impor "as regras do jogo" e não ser passivo; que o público é uma merda e eu dir-vos-ei apenas isto: só em "Animal Farm", de George Orwell, os porcos tomam as rédeas do poder.

sábado, 8 de março de 2008

I just don't care


(Ver do minuto 1:54 a 2:51)

As suas experiências petrolíferas fracassavam umas atrás das outras e, caído na penúria, resolve forjar uma ligação fraterna com Daniel Plainview, que enriquecia a cada dia. Foi um golpe desesperado de um pobre solitário.


Anteontem, George W. Bush baptizou a vitória, que há uns meses ninguém previa - na realidade, a sua mera suposição era implacavelmente ridicularizada -, de John McCain. Foi o (re)encontro de dois co-partidários que, pese embora tenham algumas ideias em comum (por exemplo, a continuação das tropas no Iraque), estão longe de ter uma relação amigável. Na origem da zanga terão estado as artimanhas que fizeram com que a candidatura de George W. Bush, nas primárias de 2000, levasse a melhor sobre a de McCain. Desde aí, McCain tem-se destacado como um "independente" dentro do partido, criticando a administração Bush, nomeadamente em programas televisivos (de esquerda) como o "Daily Show com Jon Stewart". O encontro de há dois dias foi uma irrecusável oportunidade para Bush, que nunca foi tão impopular, beber um pouco do momentum de McCain. O pobre até dançava. McCain lá fez o frete.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Bug (2006) de William Friedkin

William Friedkin é, quanto a mim, um dos mais interessantes realizadores norte-americanos da actualidade. Porquê? Em primeiro lugar, devido à sua indisfarçável aptidão para criar uma atmosfera cinematográfica própria em cada filme que realiza; em segundo lugar, porque filma como poucos e, em terceiro, porque preserva desavergonhadamente a aura de realizador maldito.

O eclectismo temático da sua filmografia é prova disso: desde o começo, Friedkin podia-se ter agarrado ao rótulo de "realizador de acção", mas o brilhante "French Connection" nada teve a ver com o seu outro (na realidade último) sucesso de bilheteiras: o tétrico e cavernal "The Exorcist". Desde aí, a derrapagem tem sido notória, muitos dos seus filmes caíram no esquecimento e, só agora, alguns deles estão a ser recuperados, graças ao DVD (como "Cruising").

É um realizador tão subvalorizado que poucos foram aqueles que levaram a sério o filme que precede este "Bug", de nome "The Hunted". Por acaso, filme de acção animal a fazer lembrar, a espaços, "French Connection", com o estilo frontal e ultra descarnado (sem um efeito CGI) próprio de Friedkin. "Bug" leva tudo isto a um novo extremo: desta vez, temos a câmara e pouco mais do que cinco personagens num único cenário (um motel isolado no deserto).

Em suma, parece contemplar tudo aquilo que se poderia apelidar de cenário "à la Roman Polanski", com uma história que resultaria do cruzamento entre Cronenberg e a sequência da personagem de Sterling Hayden em "Dr. Strangelove" (aquela que julgava que a água estava contaminada...).

"Bug" lembra ainda a dinâmica das "peças filmadas" de Alfred Hitchcock, ainda que a montagem se sobressaia para enfatizar o delírio e a loucura (com um punhado de flashes atordoantes a intercalar cenas). Mas estas referências são apenas pontuais e nunca "Bug" envereda pela homenagem cinematográfica ou a lógica do filme-filme meramente citatório: as marcas de outros universos cinematográficos estão lá, mas devidamente digeridas e transformadas numa linguagem inusitada, entre o cinema e o teatro, como entre a realidade e o delírio, que não localizamos com facilidade noutro filme.

A paranóia securitária pós-11 de Setembro pulsa em cada cena de "Bug", como os bichos que mordem por baixo da pele dos dois protagonistas (Ashley Judd e Michael Shannon, ambos óptimos). A câmara nunca se desliga da acção, criando uma sensação de desajustamento, que se acentua dramaticamente na última meia hora. Aí percebemos que "Bug" não é só política; é também uma das mais estranhas e trágicas histórias de amor.

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Sorry, Bill

Não vamos complicar: "Jungle Fever" (1991), de Spike Lee, é a história (datada?) de um amor socialmente incompreendido entre uma mulher branca (Annabella Sciorra) e um homem negro (Wesley Snipes).

Hillary + Obama. Foi a própria Hillary que sugeriu a fórmula que poderá servir de consolação a Obama, e ao meio mundo que ele já conquistou. O facto de ser Hillary a propor esta coligação é decisivo. Se Obama ganhar a nomeação, a partir de agora, dificilmente Hillary impedirá a realização daquele que poderá ser o casamento político mais celebrado, e imbatível?, da História: Obama + Hillary. É que se ele tem a frescura e o arrebatamento, ela tem a experiência e a frieza intelectual. John McCain (+ Mike Huckabee ou... Condoleezza Rice?) que se cuide.

Death to birth

"Au hasard Balthazar" (1966) de Robert Bresson

"Last Days" (2005) de Gus Van Sant

quarta-feira, 5 de março de 2008

Changing


Em “Zelig” (1983), um "falso-documentário" de Woody Allen, o protagonista Leonard Zelig, numa ânsia de querer permanentemente agradar, começa a assumir características não só físicas como psíquicas e intelectuais daqueles que o rodeiam.

Hillary Clinton reconquistou, ontem de madrugada, na "Super-Terça-Feira II", o momentum que perdera desde New Hampshire. Depois de doze derrotas consecutivas, ganhou nos importantes estados de Ohio e Texas, sendo que neste último, onde houve primárias e caucus, a luta com Obama foi renhida até ao último instante. O voto da população latina - "a que fala latim", disse uma vez George W. Bush - do Texas terá sido decisivo para a vitória da ex-primeira-dama de Bill Clinton, aquele que foi, diz-se com graça, "o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos".

Barack Obama, por sua vez, parece estar a perder algum fôlego face à máquina eleitoral de Clinton, que tem mais dinheiro e gente influente ("lobistas"?) a apoiá-la. Obama, que já foi acusado de ser "pouco negro", deverá extremar, nos próximos tempos, os ataques contra Hillary, que já foi criticada por ser "pouco feminina", e tentar cativar finalmente o "coração" do eleitorado latino, ainda que o seu discurso de ontem, a insistir em assuntos como a educação ("pôr um livro na mão de uma criança, em vez de um videojogo"), a guerra no Iraque e a imagem da América no mundo, continue a ter como principal alvo o eleitorado jovem, qualificado e de classe média. Com um empate problemático no horizonte (que só será desfeito numa obrigatoriamente polémica Convenção Nacional Democrata, a realizar entre 25 e 28 de Agosto), os dois candidatos apressam-se a plasmar na sua imagem todos os micro-elementos que fazem da América um melting pot cultural.

terça-feira, 4 de março de 2008

Tyranny of oil

Daniel Day-Lewis na persona de Daniel Plainview, em "There Will Be Blood" (2007), o magnata do petróleo que perfurou o terreno de onde floresceu uma comunidade e, depois, uma cidade: Little Boston, California. Um businessman obsessivo que antecipou o poder político - a origem desse espécime particular chamado "lobistas"?



O carismático candidato democrata, Barack Obama, tem insistido no combate aos "lobistas", que, segundo este, estão a controlar, à distância, a governação dos Estados Unidos. É um candidato novo, refrescante e incómodo, tal como, em tempos, foi Bob Kennedy - talvez seja por isso que a nóbel Doris Lessing tenha referido que Obama está em risco de vida. Hoje, a América poderá decidir o seu futuro.

O Poder da Imagem I: Breve Antevisão

O pequeno texto "O Poder da Imagem" foi desenvolvido há dois anos, no âmbito do segundo ano do curso de Comunicação Social. Foi pensado, escrito, publicado e avaliado no formato blog, dentro dos parâmetros de avaliação previstos para a disciplina em causa, Comunicação Social e Educação.

Pese embora não chegue a conclusões revolucionárias sobre nenhum dos filmes em análise ("They Live", "Videodrome", "Film", entre outros), procura sistematizar, de forma sustentada, um conjunto de leituras possíveis sobre alguns dos mais ricos, e pertinentes, universos estéticos da Sétima Arte.

Nos próximos meses, torná-lo-ei disponivel neste blog, em excertos e de forma faseada, com o único objectivo de fomentar a paixão pelo cinema.

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O Poder da Imagem

Análise dos filmes Un chien andalou, Film, They Live e Videodrome, entre outros…

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Breve Antevisão

Analisar a importância do olhar num mundo cada vez mais congestionado de imagens, ordens e sugestões, é um dos principais objectivos deste trabalho.

Numa primeira instância, irei interpretar a célebre cena do “olho cortado” em Un chien andalou, primeira colaboração entre Luis Buñuel e Salvador Dali, à luz dos pressupos­tos do “movimento” surrealista.

Em Film, de Alan Schneider e Samuel Beckett, a sugestão do olho “apa­gado” vem reforçar a perspectiva surrealista, que denunciava uma realidade distractiva e aditiva, que obliterava a imersão necessária no inconsciente.Já Theodor W. Adorno, com base numa certa ideia de indústria cultural, afirmava que o homem tinha uma percepção enfraquecida da realidade, se usasse constantemente óculos fumados.

Na parte 1. deste trabalho, deter-me-ei, então, numa interrogação basilar: será melhor “fechar os olhos” (Un chien andalou e Film) ou, ao invés, “saber abri-los” (Adorno)?

Na parte 2., encontramos o esboço de uma resposta: “saber abri-los”, mas “saber abri-los” não significa “abri-los demais” … Em They Live, de John Carpenter, o protagonista só se depara com o real, quando enverga uns aparentemente banalíssimos óculos escuros. Sem eles, a realidade regressa à sua forma original, esbatida e fantasmagórica, que insistentemente se reproduz nos mass media. Mencionarei, neste ponto, a teoria da “montagem das atracções” de Sergei M. Eisenstein.

Na parte 3., último segmento do trabalho, centrar-me-ei numa análise expedita do filme Videodrome, de David Cronenberg, “uma das mais fascinantes e inquietantes histórias do recente cinema fantástico” (António, s.d.: 67), onde a palavra vídeo se metamorfo­seia num organismo vivo. A par disto, farei uma breve exposição da teoria da dessensi­bilização de Olivier Mongin, com base na qual procurarei desenvolver uma das interrogações-chave deste trabalho: a imagem é vírus?

(continua)

Bibliografia Citada:

  • ANTÓNIO, Lauro, «Videodrome», in Cinema e Comunicação Social, Festival Internacional do Cinema de Portalegre, s.d., pp. 67-68.

segunda-feira, 3 de março de 2008

(Des)construções

"No Quarto da Vanda" (2000) de Pedro Costa

"Sanxia haoren"/"Still Life" (2006) de Jia Zhang-ke

Cruising (1980) de William Friedkin

No seu tempo, milhares procuraram sabotar a sua realização com manifestações de ira ruidosas que perturbaram as filmagens. "Cruising" trouxe à tona o confronto entre os submundos organizados da vida homossexual. Na altura, a marginalidade da vida gay era imposta por um conjunto rígido de princípios que regia as sociedades ocidentais, entre elas, a norte-americana e, dentro dela, a de Nova Iorque. Aí, navegar na noite profunda significava entrar num bar sado-maso gay, onde o cabedal e as correntes representavam a pertença a uma espécie de subcultura da homossexualidade bruta.

Apesar do cenário de "Cruising" pedir um ensaio sociológico com respostas mais ou menos concretas aos "comos" e "porquês" da formação dessas subculturas, o que verdadeiramente interessou a William Friedkin foi a sua personagem principal, interpretada por Al Pacino: um polícia infiltrado a investigar uma série de crimes perpetrados sobre homossexuais na noite nova iorquina.

A "psique" do protagonista é dissecada a bisturi: a própria estrutura do filme é sinuosa e elíptica, como se esse se passasse na sua cabeça. Daí que "Cruising" abra mais perguntas do que aclare respostas. Trata-se de um filme que se debate muito mais com questões complexas, como a identidade (e, a nosso ver, a sexualidade), do que com um crime específico, recusando a lógica moralista fácil de fazer associar a um crime um castigo predeterminado.

Como é habitual em Friedkin, não há "bons e maus", sendo possível, por muito que nos perturbe, a identificação com a crise existencial de Pacino.

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

No Country for Old Men (2007) de Joel & Ethan Coen

A primeira metade de "No Country for Old Men" faz-nos recuar à sequência irrespirável do enterro do marido atraiçoado de "Blood Simple" (1984), o primeiro filme dos irmãos Coen: narrativa vaga, repleta de interrogações e com poucas respostas, o que nos obriga a ficarmos retidos na cadência das imagens, todas elas magnificamente enquadradas (belo trabalho dos Coen e de Roger Deakins, o seu fiel director de fotografia), mas, acima de tudo, bastante bem articuladas entre si, através de uma montagem cinética, trabalhada ao milímetro, que se desenrola lentamente, embalada pela repetição calculada de certos sons intercalados por momentos inquietantes de silêncio.

(É assinalável a coragem, mas acima de tudo o árduo trabalho dos Coen, ao terem evitado o uso de qualquer tema musical, mas nem por isso enjeitando a existência de uma banda sonora, já que a engenhosa manipulação de sons supostamente "naturais" resulta na potenciação de um ambiente realista de tensão.) Tudo isto pode não ser totalmente novo nos Coen (veja-se, ou melhor, ouça-se de novo a ventoinha ou o "estorricador de moscas" em "Blood Simple"), mas não nos cansamos de sublinhar que em "No Country for Old Men" a montagem funciona como um relógio suíço: mecanicamente perfeita.

Na segunda metade do filme (sensivelmente depois da primeira “confrontação” entre Javier Bardem e Josh Brolin), parece que os irmãos Coen se recostam nas páginas do romance homónimo de Cormac McCarthy e param de nos assoberbar com momentos espantosos de acção muda, directa e narrativamente descomprometida. Se antes ouvíamos apenas os passos das personagens, e as suas movimentações rumorejantes, dia e noite, no deserto e na cidade (que parece abandonada), surge na segunda parte uma dimensão discursiva, algo circular e exibicionista, que denota um certo desespero, a meu ver, precipitado, em dar profundidade literária às personagens – a “caça” dá lugar a uma intelectualização, pontualmente interessante, mas pouco original, da violência.

Para mais, notamos que a personagem de Javier Bardem muda ligeiramente: mantém-se robótica, fria, com os estereótipos de um vilão de um qualquer slasher movie, mas, na segunda parte, mais apostada em fazer valer a sua "doutrina do mal", tão simplista quanto o seu joguinho de sorte e azar - que tem um volte-face "divino" no fim, numa espécie de cedência tímida, mal disfarçada, à típica redenção hollywoodiana.

Mas não tenhamos dúvida de uma coisa: quem mantém a fasquia elevada até ao derradeiro minuto é Tommy Lee Jones (a melhor interpretação do filme) que é o rosto, marcado de dor, de uma América imisericordiosa, animal, mas também desencantada, resignada e fisicamente fatigada.

Ler mais aqui: IMDB.

Il Conformista (1970) de Bernardo Bertolucci


"Il Conformista" foi o filme que lançou Bertolucci e o director de fotografia Vittorio Storaro. Não é de estranhar: trata-se de uma autêntica lufada de ar fresco, com montagem "à la nouvelle vague" e enredo de espionagem, mais ou menos "thrillesco", nas fronteiras do cinema de Jean-Pierre Melville, mais uma das mais perfeitas composições visuais na história da Sétima Arte levada a cabo pelo mestre Vittorio Storaro (a alegoria da caverna, a cena de sexo no comboio, a luz entrecortada que envolve o interior do apartamento são expressão do génio "precoce" de Storaro).

A câmara de Bertolucci, irrequieta, convulsa e extraordinariamente sensual, filma a história de um homem, assombrado pela memória perturbante de um abuso sexual de que foi vítima em criança, que recusa a sua propensão endémica para a diferença. Para combater o vírus subversivo - é, de facto, uma epidemia no quadro do regime fascista de "Il Duce" -, o "conformista" (brilhante Jean-Louis Trintignant) entrega-se de corpo e alma aos serviços secretos do regime. A missão que tem pela frente consiste em eliminar os opositores ao regime, nomeadamente, um seu antigo professor de faculdade anti-fascista, exilado em Paris.

"Il Conformista" constrói-se numa espiral doentia que mistura um cenário histórico localizado com os fantasmas interiores do protagonista. É uma obra de arte completa: voraz, brutal e sexual.

Ler mais aqui: IMDB e DVDbeaver.

I am a false prophet and God is a superstition

Paul Dano na pele de Eli Sunday, em "There Will Be Blood" (2007), o pastor da Igreja da Terceira Revelação, que se faz passar por profeta para saciar a inextricável fome de poder. O pecado é tal que, no fim, nem Deus o socorre do calvário.

Ei-lo. Mike Huckabee, um antigo pastor evangélico que concorre à presidência norte-americana, na representação dos conservadores religiosos do partido, e que estoicamente insiste numa candidatura já perdida para John McCain. Oremos para que siga a palavra do Senhor (leia-se, dos media) e ceda ao inevitável pecado de uma vice-presidência (leia-se, da gula).

Pacto com a morte

"Det Sjunde inseglet"/"Seventh Seal" (1957) de Ingmar Bergman

"Letters From Iwo Jima" (2006) de Clint Eastwood

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