terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Recorte de falas (XXXII): Switch

A comédia datada mas saudavelmente disparatada é de Blake Edwards. Chama-se "Switch" (1991) e conta-nos a história de Steve Brooks, um mulherengo chauvinista, sem consideração pelo sexo oposto, que acaba por fatalmente sofrer na pele a consequência dos seus actos pelas mãos de três das suas conquistas femininas, sendo que do purgatório Deus e o Diabo concordam com uma segunda chance na terra, uma oportunidade de redenção, mas agora no corpo de... uma mulher. Não é preciso revelar muito mais, porque a partir da premissa estapafúrdia Blake Edwards retoma os elementos típicos do seu habitat humorístico: comédia de sexos, ou "entre sexos", estrondosamente queer (relembro "Victor/Victoria") e, sobretudo, o prazer dionisíaco pela festarola.

Por vezes, parece que Edwards recorre a todas as diligências dramáticas para conduzir a acção ao maior número possível de festas, de alta-sociedade ou de baixa-sociedade. O gag encarrega-se de mandar abaixo toda e qualquer ritualização da vida social. É a costela tatiesca de Edwards, algo que faz do brilhante "The Party" um bom cartão de visita à sua obra. Posto isto, e pondo de parte - ou não - o party animalism de Edwards, recorto aqui uma pequena cena em que Margo Brofman, uma das vítimas do charme venenoso de Steve Brooks, é abordada por um eco-transeunte que a assedia com a sua eco-consciência. Tudo por causa de um sumptuoso casaco de peles que traz vestido. A resposta a esse assédio de rua é muito pouco… como dizer? Eco-lógica?

Fur Protestor: Do you know how many poor animals they had to kill to make that coat?
Margo Brofman: Know how many rich animals I had to fuck to get this coat?

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

sábado, 28 de dezembro de 2013

Prémios CINEdrio 2013

Melhor filme: "La vie d'Adèle - chapitre 1 & 2". Sem sair do essencial de uma história de amor, Kechiche produz uma das mais belas e emocionalmente intensas imersões na existência de uma personagem, que de tão viva e autêntica que é chega, de facto, a confundir-se com a vida. O ecrã dessa viagem não é o plano mas o rosto de Adèle, é ele que "reflecte" o universo de todos os sentimentos humanos: amor, rejeição, ciúme, dúvida, angústia… fome e desejo. O resultado é de uma simplicidade de tal modo desarmante que já muitos se precipitaram em qualificar esta "Vida" de "vazia" ou até - a meu ver, incompreensivelmente, porque não há filme mais honesto com a dimensão humana, eminentemente singular e universal, da sua personagem - "exploratória". Mas não há ratoeiras nenhumas aqui: o filme só nos dá um rosto pleno, sujeito a todas as intempéries interiores. É simples, complexo, claro e denso. Tudo isto ao mesmo tempo. Não há que ter medo de um cinema que provoca emoções contraditórias, nem se deve confundir isto - a vida, enfim - com "manipulação", a palavra mais ligeiramente atribuída a esta obra-prima da autoria de Kechiche ou, antes dele, da autoria da actriz mais bela do ano: Adèle Exarchopoulos.

Melhor realização: James Wan ("Insidious - Chapter 2"). Gosto de realizadores de câmara e eles escasseiam com a dimensão experimental e concreta deste James Wan. No cinema americano, num ano sem Fincher e sem Michael Mann, Wan ocupa o lugar de destaque no lote de cineastas que pensam um filme em movimentos de câmara, em coreografias do corpo; enfim, que pensam o cinema espacialmente.  Em "Insidious - Chapter 2" e "The Conjuring", Wan filma os mesmos objectos, as mesmas situações dramáticas, mas sempre de modo - é uma questão de modo o que aqui trato - refrescante. As suas "partidas de criança", as aparições in situ - anti-CGI -, a bonecada, o jogo de hide and seek entre as "quatro paredes" da casa, tudo o que a câmara de Wan produz - o seu efeito horrífico - está na maneira como ela se move no espaço. O grande efeito especial do seu cinema é, precisamente, o seu apurado sentido de mise en scène. 

Melhor plano: logo a seguir ao incandescente lettering de "Insidious - Chapter 2", um travelling para a frente faz-nos percorrer o abismo até à nossa personagem, num quarto escuro usado para o interrogatório policial que nos relança na história da família do primeiro "Insidious". Não há medo de dizer que, num ano sem Tarr, este foi o mais engenhoso dos planos vistos em cinema. Um plano que não só nos faz "vir do abismo" como, mais inteligentemente, nos faz "percorrer o abismo" até chegarmos a este radicalíssimo "Chapter 2". Queria destacar ainda outro travelling de outro primitivo: o último plano, magistralmente encenado (digno de Cocteau), de "La fille de nulle part". É também abissal, mas o abismo tem aqui tons de dourado. O travelling como questão de moral ou o travelling como questão de mortal, frágil como o mundo?

Melhor actor: aqui escolho dois. Primeiro, Matthew McConaughey. Segundo, Matthew McConaughey. O detective-assasssino e assassino-detective Joe, de Friedkin, e o pirata dos nossos dias Mud, de Nichols. Dois mundos opostos gerados no e pelo mesmo actor.

Melhor actriz: aqui escolho duas. Primeira, Adèle Exarchopoulos. Segunda, Adèle Exarchopoulos. As duas estão em "La vie d'Adèle": a Adèle-actriz, a Adèle-personagem, as duas estão tão unidas quanto nós a elas. Fusão de peles, de "eus", de vidas. Experiência total graças a uma grande actriz com, então, 18 anos.

A revelação: Ti West ("The Innkeepers"). Howard Hawks dizia que o seu segredo estava em "filmar comédia como se fosse drama e drama como se fosse comédia". Já o escrevi: West "filma horror como se fosse comédia e comédia como se fosse horror" neste pequeno grande filme sobre dois frescos espécimes da geração precária "detidos" num hotel centenário que, azar o deles, está assombrado por espíritos inquietos. Ti West dá, a meu ver, um passo em frente em relação a "The House of the Devil" quando inscreve o burlesco, o "desajeitamento", de Sara Paxton (outra das actrizes do ano) numa história de "casa maldita" 100% convencional. O terror é palco de experimentalismo áudio/visual (muito literalmente) neste filme sempre a jogar subtilmente "entre divisões". É o paradigma de como o mais experimental pode ser, ao mesmo tempo, o mais clássico. Hawksiano, neste caso. (Isto é, também carpenteriano.)

A desilusão: "Django Unchained". Tarantino voltou ao exercício de copy pasting cinefilamente hipercalórico, uma espécie de banquete tão sumptuoso quanto enjoativo, onde o cozinheiro se esqueceu do sal. Uma desarmoniosa amalgama de referências que deleitará quem vê o cinema com uma lupa à procura dos links para o lado B da história do cinema. Na realidade, tanto quanto no sobrevalorizado "Kill Bill", Tarantino põe tudo de tal modo à vista que já nem a lupa será necessária. O que lhe interessa é a mais apolítica citação pela citação, não o exercício de degustação, de reciclagem ou transformação da matéria fílmica em confronto com uma certa realidade dramática. Estamos, por isso, longe de "Death Proof" ou "Inglourious Basterds", os seus dois melhores filmes do século XXI. O primeiro inscrevia o slasher na "escrita" lubitschiana de Tarantino, o segundo punha a matéria fílmica em confronto com uma recriação, ou melhor, com um recreação histórica. Em "Django Unchained" a saturação citacional é tal que não descortinamos exercício algum de inscrição ou assimilação de ou confronto com… Tudo é jogado ao (jogado ao, não com o) espectador como uma sucessão de piscares de olho pós-modernos que nos assediam em vez de seduzir. Aguardamos por melhores filmes vindos da forja tarantinesca.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Os rostos de 2013

Figura do ano (internacional)

Matthew McConaughey

O CINEdrio não hesita na escolha, mesmo que não tenha por hábito escolher actores (ou actrizes) nesta secção. Matthew McConaughey fez uma viragem de 180º na sua carreira sensivelmente desde "Bernie" - ou um pouco antes com "Tropic Thunder". Desde aí, como o próprio já o disse em entrevista, só aceita projectos arriscados. E se a realização é uma actividade decisória, gestão de riscos, então podemos dizer que McConaughey deixou de pensar como um actor para começar a pensar como um cineasta. Olhando para o papel que desempenha em "Mud", mas sobretudo para a sua composição em "Killer Joe" até apetece dizer que pensa como e com o cineasta, qual co-autor dos seus filmes. Não é só um bom actor para Óscar ver, é alguém que parece estar disposto a ultrapassar-se ou a desaparecer em abono do filme.

Conta Friedkin, na sua autobiografia Friedkin Connection, que McConaughey terá começado a folhear o argumento e, repugnado, tê-lo-á atirado para o lixo. A estratégia do risco, contudo, dominou a fúria e o "nojo" - acho que a palavra é essa - e McConaughey, imaginem a ignomínia, terá ido ao lixo resgatar as páginas de Tracy Letts, dramaturgo que assinou também o argumento de "Bug". O que faz depois ficará na história do cinema moderno como a composição mais, simultaneamente, calculada e histriónica que nos foi dada a ver. Num ano em que Tarantino digeriu Tarantino até ao enjoo, McConaughey e Friedkin (os dois "lobos maus") fizeram a mais radical e transgressora fábula contemporânea, fazendo uso, precisamente, do mesmo shock effect. Em "Mud", o registo é outro, o monólogo é interior e melancólico, o rosto e os gestos são igualmente seguros mas atravessados por uma descrença muito humana no futuro. Mud é um "pirata" caído, perseguido por um amor que lhe corrói a existência. A interpretação mais comovente de 2013.

Em Janeiro, McConaughey traz-nos "Dallas Buyers Club", multipremiado filme que se baseia numa interpretação que tem feito correr tinta, já que o actor terá perdido cerca de 17 quilos para dar corpo (mais osso do que pele) à história de vida de Ron Woodroof, que de redneck homofóbico e racista passou a activo combatente da "epidemia do século" nos Estados Unidos. Teremos ainda McConaughey no mais recente filme de Martin Scorsese, "The Wolf of Wall Street", e com alguma sorte ainda estreia em 2014 o próximo filme de Christopher Nolan (cujo teaser já anda a circular) e que é protagonizado por… you know who. Portanto, a figura internacional de 2013 tem tudo para ressoar no ano que aí vem.

Figura do ano (nacional)

Joaquim Pinto

As premiações de "E Agora? Lembra-me" já são várias, mas tudo começou em Locarno com a conquista do Grande Prémio do Júri (para além do Prémio FIPRESCI). Desde aí que merecidamente o público e a crítica por todo o mundo têm aplaudido este épico documentário sobre a vida, a morte, o tempo, mas também muito particularmente sobre o amor e o trabalho como forma de resistência à doença (o HIV). Foi o filme mais "total" que vi este ano, uma lufada de ar fresco no actual panorama  do cinema português. Não é de modo algum comum no nosso cinema encontrar objectos de uma honestidade e nudez tão "sem artifício". É a história de uma grande viagem, que não tem começo e que não tem fim, que não encerra nada, apenas abre a janela sobre uma vida e uma luta que, nem que metaforicamente, nos toca a todos. Aliás, "tocante" - em toda a riqueza do adjectivo - é a melhor palavra que encontro para qualificar a experiência de "E Agora? Lembra-me". Não se procura um santo ou um statement, mas apenas um registo sobre a fragilidade do corpo, mas também a sua fome inesgotável por conhecimento, por amor, pela terra, pelo toque, pela pura ruminação. Fome pela vida. 

É um ensaio, um diário, um épico sobre a existência que, quero deixar claro, TEM de passar no circuito comercial de salas. E se as distribuidoras - por causa das suas perto de 3 horas, talvez - acharem que NÃO TEM, eu acho que finalmente é tempo de se desbloquear o regime fascizante e obscurantista da RTP2 e RTP1 e usar os canais públicos supostamente de serviço público como espaços de exibição do cinema português, aquele que as salas querem passar e aquele que as salas não querem passar. Lembro-me de João Salaviza, no dia da sua premiação em Berlim, quando disse que o seu filme "Rafa" e "Tabu" de Miguel Gomes deviam estar a passar naquele dia na televisão portuguesa; quando disse que teve mais espectadores em festivais de cinema do que nas salas comerciais. 

Se o público está sentado no sofá, em frente à "caixa mágica", pois então que se active a sua missão de serviço público ou até, já agora, que o poder político a leve mais longe: independentemente de haver contrato de distribuição, todos os filmes produzidos com dinheiro do Estado deveriam estrear directamente na televisão pública. Uma primeira exibição que desse que falar e pusesse os filmes a circular, de olho em olho, de boca em boca, até à eventual (mas não necessária nem tão-pouco mendigada…) passagem pelo grande ecrã. O que é preciso é não ficar à espera da iniciativa das distribuidoras ou deixar que estes filmes se enredem numa desinteressantíssima "guerra especulativa de audiências", seja ela travada na piscina dos grandes, seja ela travada na piscina dos pequenos. Se o público está plantado no sofá, se o Estado tem forma de chegar a ele, muito facilmente, através dos seus dois canais, parece-me evidente que está encontrada a forma e a fórmula para prolongar a vida de um investimento cultural de monta. O Estado não só não deve esperar pelo mercado da distribuição como acho que se deve sempre antecipar a este. Estou cada dia mais convencido disto. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Balanço caseiro de 2013

O CINEdrio dá prosseguimento ao tradicional balanço caseiro do ano (recordo aqui o de 2012). Filmes vistos em casa, em DVD, Blu-ray ou em antena televisiva. 2013, ano de algumas grandes descobertas. Como sempre, os destaques que se seguem não são apresentados segundo nenhuma ordem particular sem ser aquela que comanda (aleatoriamente?) a minha memória.

Jack Arnold


Todo o Jack Arnold, de "Creature From the Black Lagoon" a "Monster on the Campus", de "Man in the Shadow" a "No Name on the Bullet", do poeta da ficção científica ao documentarista do western. Destaco, aliás, o western noir protagonizado por Jeff Chandler e Orson Welles que é um tour de force de síntese cinematográfica, com uma estonteante fotografia a preto-e-branco (a tal grande "sombra" do título é atmosferizada por ela). Na ficção científica, se calhar antes dos títulos já citados, vem-me de imediato ao espírito quando penso neste ano que passou o prazer enorme que "Tarantula" e "The Incredible Shrinking Man" me deram. O primeiro é um tratado lapidar sobre o potencial visual - e poético, lá está - do série B fantástico, já o segundo eleva o conto metamórfico à reflexão metafísica sobre a nossa pequeníssima condição humana. Com estes títulos, fica à mostra que Arnold é um dos mais inventivos e, a todos os níveis, aventureiros cineastas do seu tempo.

Hollis Frampton


Um dos nomes cimeiros do structural cinema, Frampton é um artesão da linguagem, a do cinema, a da palavra escrita, a da palavra dita, a da luz, a do movimento, a da inércia. Cada possibilidade que a matéria  lhe oferece é esticada até ao limite, numa tentativa de dar a ver o seu "todo" potencial. Temos então "Zorns Lemma" como uma alfabeto de imagens ou imagens do alfabeto, um alfabeto "gerado" espontânea ou alteatoriamente "na rua"; temos em "Surface Tension" uma viagem pela cidade feita de imagens paradas, fotografias como motor do cinema e jogos de palavras que muito provavelmente inspiraram Jean-Luc Godard (que, tenho ideia, descobriu Frampton nos anos 80); temos ainda "Nostalgia" sobre um exercício de memória indexado a fotografias em chamas, um passado descoordenado que se eleva no ar como éter; temos "Lemon", uma natureza morta académica sobre luz e sombra; temos isto e muito mais na excelente caixa que a The Criterion Collection lhe dedicou, com entrevistas e um muito interessante ensaio/intervenção com voz de Michael Snow e texto de Frampton. Ver e ouvir tudo isto em Blu-ray foi um dos bons luxos que 2013 me deu.

Curtis Harrington


Descoberta absoluta que me deixou boquiaberto. Harrington, que para muitos é "apenas" um cineasta série B de "gosto duvidoso", foi nos anos 40 um dos nomes mais influentes da chamada primeira vanguarda do cinema underground americano. As suas curtas dos anos 40 estão algures entre Poe, Cocteau e Lynch, histórias sobre a efemeridade da vida - e da juventude - realizadas por um adolescente imberbe com capacidade para encontrar fronteiras novas entre o cinema avant-garde e o cinema fantástico de terror. A edição Dual Format da Flicker Alley será o motivo ideal para se conhecer ou reavaliar toda a obra deste realizador esquecido. Talvez em 2014 tenha motivos para voltar a falar dele aqui.

Ida Lupino e The Bigamist


Ida Lupino é a patrona de um punhado de filmes socialmente engajados e moralmente confrontantes que saíram da produtora fundada por si e pelo seu marido, Collier Young, The Filmmakers. Realizou alguns filmes pungentes como "Outrage" e "The Hitch-Hiker", este último um mini-clássico do film noir duro e visceral como não seria de esperar de uma "donzela". A humilhação de que é alvo uma mulher depois de ser violada por um estranho na rua - numa sequência memorável feita de pura sugestão fílmica - é o objecto de "Outrage", mas "The Bigamist", realizado e protagonizado pela própria Ida Lupino, vai mais longe. Na realidade, vai tão longe que ainda hoje nos "desconforta", pela forma como nos permite aceder, sem moralismos, às subjectividades (todas elas feridas) da mulher humilhada (a belíssima Joan Fontaine, que nos deixou este ano), da segunda mulher (é esta que Lupino interpreta, corajosamente) e... do homem (Edmond O'Brien) que opta por uma vida dupla,  sobranceiramente indiferente ao amor que a sua mulher sente por ele, mas sobretudo - e é aqui que está o ponto de desnorte - ao próprio amor que ele sente pela sua mulher. É um (melo)drama filmado com um sentido, diria, implacavelmente justo por Ida Lupino. Um acto de confronto, mas antes de tudo um acto de coragem que só pode vir de uma grande realizadora.

The Quiet Man


Foi uma assombrosa experiência. Os verdes da paisagem irlandesa, os vermelhos dos cabelos de Maureen O'Hara, a "escala" de John Wayne, o ludus das relações humanas que a câmara de Ford mascara com pathos - por baixo do melodrama, a comédia!, parece que grita, como uma mensagem de revolta. Não se atiram paralelepípedos, mas "joga-se" contra a paisagem a mais épica das rixas, num final que nos embriaga de entusiasmo e genuína diversão. Mas o resto é o mais importante: as cores, o vento, a precisão de tudo o que se coloca à frente da câmara. É dos filmes mais inebriantes de Ford e, em Blu-ray (vi a edição espanhola, tão recomendável quanto a americana, parece-me), tudo parece ganhar uma força extra.

India: Matri Bhumi


Quero muito rever este filme, porque preciso de arrumar algumas ideias em torno da hipótese de Godard e Truffaut terem estado sempre completamente certos e de, portanto, este ser "o filme" de Roberto Rossellini. Senti o mesmo gesto milagroso de se ir ao berço do Mundo, senti uma comoção intensa com a história dos elefantes e o conto elegíaco do macaquito, toda esta grandiosidade e esta pequenez "contra" uma paisagem de uma beleza esmagadora. O plano mais belo que vi este ano está aqui - e acima reproduzo, para tentar irradiar a minha crença neste milagroso filme. "India" deveria ser o Deus-Sol de todas as cinefilias. Impõe-se uma edição DVD/Blu-ray digna desse nome. (E diria o mesmo para o subvalorizado "Era notte a Roma", outro momento intenso deste meu 2013.)

Le amiche


Não sei o que é mais belo: se o rosto de Eleonora Rossi Drago, se a sua solidão deprimida, se a "confusão" amorosa que a rodeia, junto das suas "amigas". Senti este filme - e vou usar a palavra sem medo - como uma obra profundamente feminina, de uma delicadeza e elegância que só Antonioni consegue manusear. Não sei por que demorei tanto tempo a chegar a esta obra-prima, mas nunca é tarde demais para ver "as amigas".

Pursued


Podia escolher "Along the Great Divide", "Gentleman Jim", "Colorado Territory" ou "Distant Trumpets". Mas vou ser fiel à minha impressão mais profunda: "Pursued" é a obra-prima superior de Raoul Walsh. Não digo que seja a mais paradigmática - de facto, não o é - mas é um filme tão belo e, ao mesmo tempo, tão brusco que não podia fugir a ele. Aliás, foi o único filme em 2013 que vi - numa boa edição Blu-ray da Olive Films - e voltei a ver mal terminou. Não consegui processar a imensidão (psicológica, sim) deste western noir que encontra em Robert Mitchum o seu ecrã primordial mais cativante. Ninguém sai daqui indiferente. Não é um tratado "autoral", mas uma manifestação da força sedutora, da potência estética do cinema de Walsh.

Choses secrètes


O Correio da Manhã TV presenteou-nos este ano com um pequeno ciclo Brisseau, extraído directamente da caixa lançada pela Leopardo Filmes. Ficou-me na retina este seu título, que me havia escapado quando saiu no circuito comercial português. Talvez por andar a rever a obra completa de Losey, ou por ter visto há dias "La fille de nulle part", "Choses secrètes" teve um impacto enorme em mim. A sua construção sobre a ascensão e queda de duas femmes fatales na íngreme escadaria social, o seu exercício de exorcismo e terror sobre o desejo e o corpo pareciam-me vir de "The Servant" ou, em boa medida, emparelhar com a odisseia subterrânea de "Eyes Wide Shut". Foi um momento alto que passou, como um fantasma, nos ecrãs de muitos portugueses. O pequeno ecrã engrandeceu-se.

O noir do ano


Escolhi "The Prowler" de Joseph Losey. Pensei em "The Lineup" de Don Siegel (mas o seu efeito-choque não perdura tanto) ou em "Raw Deal" de Anthony Mann (mas este vi na Cinemateca, pelo que não ficaria bem num balanço desta natureza tão… doméstica). O filme de Losey é, nas palavras de James Ellroy, o paradigma do "perv noir". Uma história de voyeurismo que se transforma numa intrincada teia de decepção e medo. Medo não da habitual femme fatale, mas do mais cínico homme fatal que se poderia arranjar: Van Heflin num papel estarrecedor, ao lado da não menos brilhante Evelyn Keyes. Este filme nunca vai pelo caminho mais fácil, há qualquer coisa nele que se resume bem na desesperante imagem final da personagem de Heflin: uma inglória e humilhante subida em declive, uma condenação próxima de Sísifo que lembra quão "ilusórias" são as subidas ou as descidas (sociais) no cinema de Losey. Experimente derrapar aqui.

Os melhores de 2013

Não pensem que sofro de esquizofrenia ou que os meus Tops estão de tal modo imersos em hesitações que faço um no À pala de Walsh e outro ligeiramente diferente aqui, no bom velho CINEdrio. Não, a verdade é que as regras walshianas são mais estritas do que aqui no burgo mais pequeno, onde sempre contabilizei os mais infames direct-to-DVDs da temporada. Este ano (em que consegui ver 64 títulos), curiosamente, um filme que ainda nem sequer está em DVD chega a este Top com honras de pódio. Falo do inevitável "Killer Joe". A sua estreia em sala foi sucessivamente adiada até que - não sei se é para celebrar ou lamentar - um dos filmes mais selvagens e animais a sair de Hollywood em muito tempo, de um dos seus mais indisciplinados filhos, chega aos lares de todos os portugueses através da oferta on-demand.

Matthew McConaughey tem o papel mais marcante de 2013 e se juntarmos ao seu Joe aquele que é o muito pedido "segundo fôlego" de Jeff Nichols, depois do decepcionante "Take Shelter" e do tão entusiasmante "Shotgun Stories", então aí estamos mesmo perante o mais sério candidato a "figura internacional do ano" - balanço a ser feito em breve aqui, no CINEdrio. A única crítica a "Mud" que li por cá que lhe faz justiça é esta de Manuel S. Fonseca, que bem a propósito cita o clássico de Fritz Lang "Moonfleet". "Mud" é o possível conto de piratas ou "de pirata" dentro desta nossa contemporaneidade.

Trabalhar com os realizadores certos ajuda, mas McConaughey já pertence hoje ao restrito grupo de actores com alma de cineasta, verdadeiros "fazedores" de filmes nos filmes. A forma do corpo, do andar, do falar, do gesticular, tudo nele condiciona o "objecto final". Algo semelhante acontece com Adèle naquela que é, para mim, a obra máxima de 2013. Penso que o título do filme é bem mais exacto do que o título da banda desenhada que lhe esteve na origem: este filme, esta vida é DE Adèle antes de ser DE Kechiche. E com isto endereço o maior elogio possível ao cineasta franco-tunisino, que soube descobrir no rosto certo o princípio - e o fim - de um filme que é uma odisseia sentimental única.

Estaria a falar de "The Immigrant" no lugar de "La vie d'Adèle" (e pode ser que algures entre os dois cada um de nós encontre uma novíssima Maria Falconetti…), caso o filme tivesse merecido a sua estreia comercial em 2013. Ainda sinto o seu impacto desde que o vi no último Estoril & Lisbon Film Festival. Espero que, ao contrário de "Killer Joe", esta obra-prima de James Gray (penso que só talvez "Little Odessa" a supere) mereça uma estreia à sua altura no 2014 que se avizinha. "Stemple Pass" de James Benning estaria no lugar de "The Immigrant" (caso este último tivesse estreado) se tivessse tido a sorte da habitual montanha de filmes irrelevantes que chegaram às salas comerciais em 2013. Alguns entendem os filmes de Benning como peças de um museu. Por isso, será, neste momento, profundamente inglório e frustrante bater-me pela estreia em sala de um filme como "Stemple Pass". De qualquer modo, não posso deixar de sublinhar o valor estético e político deste objecto, um dos mais perfeitos do realizador de "Landscape Suicide".

Uma nota final para a outra obra-prima do ano, que teve uma distribuição tão ou até mais limitada que outro dos filmes que constam deste Top, "La fille de nulle part". Falo da assombrosa - e assombrada - hawksização do horror levada a cabo pelo talentosíssimo realizador norte-americano Ti West. "The Innkeepers" é o grande filme que a crítica não quis ver ou viu mal. "Insidious - Chapter 2" de James Wan, irmão mais tresloucado e "indomável" do filme de West, foi outro exemplo de como a crítica oficial consegue passar ao lado do essencial: mise en scène pura (como a definia Rivette), isto é, filme que é só câmara, corpos em movimento e décor. É tão livre que roça a mais alta abstracção fantasmática.

Não escolho estes filmes por reacção ao que ficou de fora da maioria dos Tops, escolho-os porque me parece que todos eles participam na mesma evidência: o cinema, na época mais quente da sua desmaterialização, regressa às origens, aos truques de ou muito simplesmente para dentro da câmara e às fantasmagorias do cinema mudo pré-griffithiano, a Edison, Méliès, Segundo de Chomón... Resistir ao digital ou assombrá-lo - resistir para progredir… - com os efeitos do cinematógrafo? O Carlos Natálio (no seu texto de balanço à pala de Walsh) invoca a fórmula less is more, mas acho que fundamentalmente 2013 é uma lição de back-to-basics a reter.


1. "La vie d'Adèle - chapitre 1 & 2" de Abdellatif Kechiche


2. "The Innkeepers" de Ti West

3. "Killer Joe" de William Friedkin (on-demand)

4. "Zero Dark Thirty" de Kathryn Bigelow

5.  "La fille de nulle part" de Jean-Claude Brisseau

6. "Passion" de Brian De Palma 

7. "Da-reun na-ra-e-suh"/ "Noutro País" de Hong Sang-soo 

8. "Insidious - Chapter 2" de James Wan

9. "Before Midnight" de Richard Linklater

10. "Mud" de Jeff Nichols

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

TCN Blog Awards 2013


Nos últimos TCN Blog Awards, o À pala de Walsh arrecadou dois prémios: o de Melhor Entrevista (a que eu e a Sabrina, com fotografias de Mariana Castro, fizemos a Sasha Grey) e o de Melhor Blogue Colectivo (a consagração maior, que nos deixa naturalmente contentes). O CINEdrio contava com uma nomeação, para Melhor Inciativa (pela sua Newsletter), mas acabou por não conseguir vencer o prémio. Pode consultar a lista final de vencedores aqui.

A qualidade e quantidade dos convidados surpreendeu, tal como me parece que nunca a cerimónia terá encontrado um tom mais justo, descontraído e natalício. Carlos Reis do blogue Cinema Notebook está de parabéns pelo trabalho imenso que tem realizado, uma dedicação que seguramente lhe sai do corpo e da carteira, dada a dimensão que os TCN Blog Awards atingiram.

Estar na blogosfera é cada vez mais um acto de resistência, por isso, daqui do CINEdrio saúdo todos aqueles que alimentam de informação e "amor à arte" os confins mais ou menos recônditos do ciberespaço.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Recorte de falas (XXXI): Escape Plan

O outro dia apanhei um ex-árbitro de futebol a dizer que a história das compensações é uma grande treta: se um árbitro erra para anular outro erro está apenas, muito simplesmente, a cometer dois erros. A reflexão é útil, faz sentido racionalmente, mas no cinema, por vezes, a lei das compensações funciona. Numa história de evasão presidiária - mais uma… - Sylvester Stallone, isto é, Ray Breslin, está algures entre o brutamontes e o MacGyver. Arnold Schwarzenegger, na pele de Swan Rottmayer, é o simples seguidor da arte da evasão de Stallone neste filme onde, de facto, a única coisa que coisa que se vende é ela: a evasão, a distração, o puro entretenimento vintage, numa espécie de reedição geriátrica de "Lock Up".

Stallone faz astrolábios com uma esferográfica e um pedaço de papel, arruma com um murro três ou quatro matulões, desmantela uma câmara de filmar ou mesmo todo o sistema de vigilância da prisão mais high tech do planeta, faz explodir um cargueiro com a precisão de dois ou três tiros disparados de um helicóptero… numa escada de resgate. A parte bruta de Stallone está marcada no seu rosto, no seu corpo, já a parte de astrónomo, demógrafo, químico, físico e informático de uma astúcia superhumana dificilmente convenceria se não se aplicasse, neste filme, um dado compensatório decisivo: em "Escape Plan" (2013), 50 Cent é o nerd informático de serviço. Ao pé disto (dele, digo), Stallone passa melhor por génio, num filme de gente indisfarçavelmente com mais massa muscular do que massa cinzenta.

Swan Rottmayer: You don't look that smart!

Ray Breslin: You don't either!

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Edição Especial Natal da Newsletter do CINEdrio já online

(Para consultar a versão pública da Newsletter #24, clique na imagem.)

Esta edição, que homenageia o cinema de Jack Arnold, foi feita a pensar na época festiva. Tivemos, então, destaques a dobrar e ainda dois inquiridos, Francisco Ferreira e Carlos Alberto Carrilho.

Queria agradecer especialmente à Leopardo Filmes, pela parceria que inicia com a Newsletter do CINEdrio. É da editora o filme "Noutro País" de Hong Sang-soo que destacamos na rubrica Lançamentos Recentes. Na mesma rubrica, da editora Alambique, a quem agradecemos a atenção, destaco a bonita e dolorosa travessia "Lore". No âmbito dos livros, destacamos "Da Civilização da Palavra à Civilização da Imagem", mais um ponto de excelência da investigação levada a cabo por Olga Pombo. A edição é da responsabilidade da Fim de Século. O livro de Edgar Pêra "Hollywood: Estórias de glamour e miséria no império do cinema" chega-nos pela mão da Esfera dos Livros. Da Verso Books, foi um prazer ler a prosa bem burilada e muitíssimo arguta de Jim Hoberman no seu mais recente livro, "Film After Film".

Partilhe esta versão natalícia da nossa Newsletter e se não assinou ainda, aqui tem mais esta oportunidade:



sábado, 14 de dezembro de 2013

Lendário amor líquido

"Der Tiger von Eschnapur"/"O Tigre de Eschnapur" (1959) de Fritz Lang

"Tini zabutykh predkiv"/"Shadows of Our Forgotten Ancestors" (1965) de Serguei Paradjanov

(À Cinemateca Portuguesa.)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Killer Joe estreia em Portugal… directo em DVD*


Por muito destacado que o possamos pôr no nosso top do ano, o facto de "Killer Joe", um dos filmes com mais tomates do cinema norte-americano recente (a minha análise, com já dois anos, pode ser lida aqui), dizia, o facto de um dos mais selvagens, anarquistas ou estrondosamente imorais e insurrectos filmes dos últimos anos sair directamente em DVD* no nosso país já ninguém consegue anular. Recordo que "Killer Joe" esteve em Veneza e foi aí que William Friedkin foi apontado por uma boa parte (ou a parte boa) da imprensa como um dos mais do que possíveis vencedores do Leão de Ouro. (Este acabou por ser entregue ao horripilante e académico ou academicamente horripilante "Faust" de Aleksandr Sokurov.)

Apanhar no mercado de empilhamento de títulos supostamente "sem história" que é o direct-to-DVD* este ultrajante conto americano, com a maior interpretação masculina do ano de longe, pelo já inevitável Matthew McConaughey, é constatar que a coragem dos mais velhos não sai premiada no mercado, que o que o mercado quer - e o público não se queixa - é rotina, copinhos de leite e ignorância. Ou então quer apenas telenovela, como dizia João César Monteiro. O espírito crítico - e este é um filme em que a crítica é só corpo, hereticamente contra o espírito -  não vai longe num país onde as bolsas de resistência contra o monopólio crescente da pipocada são cada vez menos, em número e em força. Resta-nos alugar "a coisa" para provar que o público não se deixa domar pelos falsos confortos ideológicos. O acto terrorista, anti-sistema, do ano é alugar e ver "Killer Joe", como quem encomenda um balde de pernas de frango do KFC ou vai ao cinema divertir-se com "jogos da fome".

* - Na realidade, é preciso impor aqui uma ressalva: até agora, só apanhei o filme de Friedkin na oferta do MEO Videoclube. Não seria o primeiro título a sair directo no mercado (virtual) de aluguer e não ser sequer lançado em suporte DVD. Por isso, nem o DVD neste momento está garantido. 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Ligação directa à pala de Walsh (XV)


O meu primeiro destaque do último mês no À pala de Walsh é o meu último destaque no CINEdrio: "La vie d'Adèle" de Abdel Kechiche. O Francisco Valente entrevistou o realizador, aquando do Estoril & Lisbon Film Festival e dedicou ainda a sua crónica Movimento Perpétuo a esse filme. O Ricardo Gross escreveu a crítica aqui.

Abrimos o mês de Novembro com a publicação do vídeo das primeiras Conversas à Pala, com a presença de Luís Miguel Oliveira e sob o signo do cinema de Fritz Lang. A não perder aqui. Ainda esta semana deveremos publicar a sequela, com Salomé Lamas como convidada. Posso adiantar que nas próximas conversas (#3) o convidado será o crítico de cinema do Expresso Vasco Baptista Marques e o tema principal "o balanço cinematográfico de 2013".

Redigi a crítica a "2001" - que responsabilidade! - e o resultado está à vista, e para ser posto à prova, aqui. Participei ainda na parceria que o À pala de Walsh celebrou com a primeira edição do Frames Portuguese Film Festival, festival do cinema português em Estocolmo. As folhas de sala são da nossa autoria e podem ser lidas aqui (em inglês).

Publiquei, finalmente, a entrevista que fiz a Mark Cousins quando estive na Polónia, a cobrir o festival New Horizons. Destaco ainda a entrevista a David Thomson, realizada pelo João Lameira com a minha assistência. Entretanto, saiu a escandalosa entrevista que eu e o Carlos Natálio fizemos a Albert Serra, o realizador catalão autor dos magníficos "O Canto dos Pássaros" e mais recentemente - ponto alto do ano - "História da Minha Morte".

Na Sopa de Planos deste passado mês o ingrediente comum foi reflexos. Nas Actualidades, como é hábito, eu e o Ricardo revimos a actualidade noticiosa através da perspectiva do cinema.

A edição de Dezembro está a cargo do Carlos Natálio. O prato forte será, inevitavelmente, o top geral e os tops individuais do ano feitos pela equipa do À pala de Walsh. Fique atento.

sábado, 7 de dezembro de 2013

La vie d'Adèle - chapitre 1 & 2 (2013) de Abdellatif Kechiche


Emma gosta de ostras. Adèle gosta de esparguete à bolonhesa. Os dados estão lançados: será possível uma vida a dois entre estas duas pessoas? Resistirá o amor ao apetite devorador de Adèle, ao seu gosto pela pele (assume, aliás, a Emma que nunca a deixa no prato), à sua atracção pelos fios (sempre invisivelmente azuis?) do esparguete à bolonhesa? Resistirá o amor à degustação mais "experimentada" de Emma, que não gosta de comer a pele da carne (carne que de modo algum recusa), que prefere engolir, num só movimento, o muco ranhoso das ostras?

Este amor terá de enfrentar o conflito gastronómico que é sempre um conflito sexual: a pele é a única coisa que interessa à câmara de Kechiche, sobretudo a pele do rosto e, porque a carne nunca fica no prato, tudo o que ele gera. A imagem-afecção está nas lágrimas, no ranho, nos cabelos despenteados, na boca que saboreia a bolonhesa, que chupa a ostra, que sacia o desejo pela carne e pela pele. (E o pathos sentimental estará numa explosão de lágrimas, numa explosão de ranho, numa explosão de desejo…)

Uma boca - a de Adèle é um monumento de expressividade, aliás, o rosto de Adèle é todo um décor de que não quereremos sair ou é ele que não sai de nós - que deseja amar e ama desejar outra boca (o sol une-as!), mesmo que nesta a degustação da bolonhesa não se faça tão bem como a ostra. Emma e a sua pele doce e o seu cabelo de esparguete. Adèle e as suas lágrimas e ranho e… frescura de ostra. Antes da união, da mudança de capítulos, cada uma provará um pouco de si pensando que prova um pouco da outra: Adèle as ostras de Emma e Emma o esparguete de Adèle. Mas já no início viramos quem tem o apetite mais descontrolado: Adèle lambe a faca, não deixando escapar o último fio de esparguete disponível. O seu apetite é descontrolado, mas, porque a faca pode ferir, também é auto-destrutivo. No jardim, antes de se beijarem pela primeira vez, Adèle gaba-se da sua capacidade para "comer de tudo"… menos, lá está, marisco. Emma diz que o seu prato favorito é ostras e daqui surgirá a única analogia gastronómico-sexual mais ou menos flagrante de todo o filme.

O filme de Kechiche é a história da vida de Adèle, mais concretamente, da vida do seu rosto, da adolescência à entrada na idade adulta. O rosto como lugar de mudança e o plano fílmico como topografia do rosto. Durante o filme, nós seguimos o rosto; depois do filme, é o rosto poderosamente belo, intoxicantemente jovem de Adèle que não cessa de nos percorrer. Com efeito, a câmara não renuncia a nenhum poro de Adèle, o seu apetite pela pele e pela boca (e faltará falar dos dentes…) é tão intenso que será impossível que cada gesto banal, quotidiano, não ganhe uma dimensão quase metafísica (até porque, como já disse, o sol une-as!). Nada há de mais humano que as cenas com comida, o mesmo diria sobre as cenas de sexo, mas as duas - e o poder da vida, como do cinema, também é esse - equivalem-se como partes de uma mesma e sublime ementa.

Como diz Adèle em entrevista, este é um filme sobre o acto de comer: "eu como, e eu como-a". Sabemos da importância que a comida tem no cinema de Kechiche - veja-se ou reveja-se "O Segredo de um Cuscuz" - e também já sabíamos como a sua câmara é táctil  - veja-se ou reveja-se "A Esquiva". "A Vida de Adèle" reduz estes "apetites" de Kechiche a uma relação triangular entre dois rostos e uma câmara (e não é ela aqui, sem voyeurismos, o lugar do nosso rosto?). A Palma de Ouro dada ao realizador e às duas actrizes faz, por isso, total sentido, ou não estaríamos aqui, ao contrário dos outros filmes do realizador franco-tunisino, na presença de uma fulgurante co-autoria. Tudo gira à volta dos gestos e dos seus efeitos no rosto de Adèle e é nele que enforma uma mise en scène feita de desejo, decepção e dor. Entenda-se o alcance deste gesto: a mise en scène é engendrada pelo rosto-cineasta de Adèle, não o contrário.

O que se cozinha aqui é o amor em todas as suas etapas. A discriminação está tanto no sexo como nos ingredientes: no limite, deverá uma pessoa que gosta de ostras juntar-se a uma pessoa que gosta de esparguete à bolonhesa? A pior propaganda queer fica definitivamente fora do prato (isto é, fora de campo), porque o amor (= o apetite de amar) não escolhe cores ou géneros, mas apenas ingredientes. Para mais, como todos sabemos, o apetite humano é, por natureza, muito variado e variável. Aqui, por exemplo, Adèle decide "engolir" a paixoneta heterossexual com um chocolate. Numa sequência como esta, vemos Adèle a saborear de boca vazia o rosto de Emma. Adèle deseja Emma como se a quisesse de facto devorar, roubando à faca, com a língua, cada um dos seus últimos fios azuis. Pelo menos em 2013 - e que o leitor aponte isto -, o amor serve-se quente como a bolonhesa e vivo como a ostra.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Ângulo (branco e preto)

"L'eclisse" (1962) de Michelangelo Antonioni

"New York Portrait Part III" (1990) de Peter B. Hutton

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Imigrante

"The Immigrant" (1917) de Charles Chaplin

"The Immigrant" (2013) de James Gray

["The Immigrant" é a obra-prima dourada de James Gray, filme de uma subtileza, de uma delicadeza, de uma finura, de uma solenidade que só é reconhecível no grande cinema clássico norte-americano… começando precisamente no clássico homónimo e homólogo de Charles Chaplin e culminando em John Ford - e este é o filme mais católico de Gray -, filiação reflectida por Luís Miguel Oliveira aqui e que o próprio James Gray secundou após a sessão no Estoril & Lisbon Film Festival. Charlot é, na primeira parte, o cavalheiro que se mostra sensível à pobreza da donzela em apuros, que nos dois filmes é acompanhada por um familiar enfermo (irmã, no filme de Gray, e mãe, no filme de Chaplin). O interessante é que Charlot se revela menos inocente no fim, quando bruscamente atira Edna, a amada, para a casa do notário civil, parecendo precipitá-la pouco cavalheirescamente para o matrimónio. É um final abrupto, algo atordoante para o espectador contemporâneo. No filme de Gray temos o mesmo dar de mãos salvífico, no mesmo barco com imigrantes (o descendente de imigrantes Gray filma a Estátua da Liberdade, mais tarde "alegorizada" na figura de Ewa, com o desencanto do imigrante Chaplin). Também em sintonia está o subsequente empurrão para uma vida "sem saídas", uma liberdade escrava ou uma escravatura livre (walshiana?). A liberdade - a feminina liberdade, com tocha ou sem tocha - torna-se nestes dois clássicos numa questão de posse e de possessão. "The Immigrant", passado em 1921, e "The Immigrant", passado no ano da sua rodagem, ou seja, 4 anos antes, atracam assim no mesmo porto - "clássico = moderno", como diz Godard e actualiza Luís Miguel Oliveira no texto linkado acima.]

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Newsletter #24: Arnold


Jack Arnold, o homem da ficção científica e do western série B. Ou então: Jack Arnold, o poeta das metamorfoses do corpo e do coração. Ou então: Jack Arnold, documentarista político marginal (e pelos marginalizados) que fantasia com uma sociedade mais humanizada, definitivamente liberta de uma crença desmesurada na ciência (sintoma da era pós-nuclear?). Nos seus títulos mais célebres (como "It Came From Outer Space" ou "The Incredible Shrinking Man"), Arnold pega em intrigas fantásticas para as enquadrar sob o ângulo dos mais terrenos problemas humanos e societais. Nos anos 40 e sobretudo nos "decadentes" (decadência esplendorosa, como é claro) anos 50, realiza alguns dos filmes mais notáveis a saírem da fábrica Hollywood. É ele o herói do mês de Novembro, numa edição da Newsletter do CINEdrio especial de Natal, com destaques a dobrar.

No mercado home cinema, anunciaremos os lançamentos de uma caixa dedicada a Pere Portabella, "Museum Hours" de Jem Cohen (um dos melhores filmes de 2013), a série "Dekalog" de Kieslowski, uma caixa com filmes de Adolpho Arrietta, "Lore" de Cate Shortland, "El Dorado" de Howard Hawks em Blu-ray, a descoberta de caixas do cineasta finlandês Teuvo Tulio, grandes clássicos de Vidor e Stroheim finalmente em edições decentes no mercado, uma espantosa integral Eric Rohmer, a nova vida do filme omnibus "Body Bags" e muito mais.

Na parte dos livros, destacaremos o recente "Hollywood: Estórias de glamour e miséria no império do cinema" de Edgar Pêra, "Film After Film" de Jim Hoberman e "Da Civilização da Palavra à Civilização da Imagem" de Olga Pombo e António Guerreiro. Anunciaremos também lançamentos ou descobertas de livros sobre Ida Lupino, Ozu, os mais recentes trabalhos de Michel Chion e Raymond Bellour, um promissor título de Michael Witt sobre Godard, um conjunto de vídeo-ensaios de Peter Thompson, etc.

Ao nosso inquérito respondem o crítico do Expresso Francisco Ferreira e Carlos Alberto Carrilho do blogue There's Something Out There. Agradecemos a sua disponibilidade.

Deixamos também um agradecimento especial à Leopardo Filmes, com quem inauguramos uma pequena parceria.



domingo, 10 de novembro de 2013

Ligação directa à pala de Walsh (XIV)


Com um ligeiro atraso, venho fazer o levantamento habitual do que escrevi para o À pala de Walsh. Começo pela minha crónica Civic TV, que mereceu no início do passado mês de Outubro um número dedicado ao fenómeno cult em torno de "Sharknado" e que já hoje, acabadinha de publicar, ensaia um diálogo particularmente malcheiroso entre cinema na televisão e actualidade jornalística.

A minha cobertura ao ciclo do DocLisboa "Moving Stills" foi resumida num artigo que pode ser lido aqui. Destaco também a cobertura que os quatro fundadores do site (mas sobretudo o Carlos Natálio) fizeram ao DocLisboa 2013, que pode ser lida aqui. Façam o favor de parar na entrevista que o Francisco Valente e a Mariana Castro fizeram a Alain Cavalier, em registo íntimo, quase secreto, como o cinema deste pedia.

Participei ainda nas habituais rubricas de contra-campo: ActualidadesSopa de Planos e, numa edição dedicada ao clássico maior de Jack Arnold (na imagem acima), Filme Falado.

À margem dos meus textos, queria destacar a verdadeira tese de mestrado sobre a representação ou apresentação da morte no cinema - e não só - que o Ricardo Vieira Lisboa produziu a partir de um filme esquecido e maldito de Blake Edwards, "Trail of the Pink Panther". Texto obrigatório para ser lido aqui.

Também queria destacar o primeiro texto que leio em português sobre o mais recente filme de David Mamet, estreado directamente na televisão americana. João Lameira escreve sobre "Phil Spector" aqui.

Por fim, cumprimento Ricardo Gross, o novo colaborador do À pala de Walsh, que se estreia no site com um bom texto de antevisão ao Lisbon & Estoril Film Festival, de quem somos parceiros mediáticos.  Já no âmbito deste festival, a Helena Ferreira produziu um texto que passa a pente fino praticamente toda a obra de Wong Kar-Wai. Aos fãs do cineasta de Hong Kong, recomendo vivamente que o leiam e partilhem.

Durante Novembro, eu serei o editor. As novas e promissoras entrevistas que prometi para Outubro foram adiadas para este mês. Também  posso prometer a publicação do vídeo da primeira Conversa à Pala, que teve lugar na Babel Cinemateca na passada sexta-feira e que contou com a presença especial do crítico do jornal Público e programador da Cinemateca Portuguesa Luís Miguel Oliveira. Estejam atentos.

Newsletter do CINEdrio nomeada para TCN Blog Award


Pois é, para além das nove nomeações para o À pala de Walsh, os TCN Blog Awards deste ano não esqueceram na categoria de Melhor Iniciativa a publicação mensal do CINEdrio, dedicada a lançamentos dos mercados home cinema e livreiros nacional e internacional. A Newsletter do CINEdrio retomará a sua actividade em Dezembro, com uma edição especial de Natal que contará com destaques a dobrar.

Assim sendo, esta é a altura certa para deixar o seu voto na categoria Melhor Iniciativa no blogue Cinema Notebook - os prémios são atribuídos também por voto popular, por isso, se é um subscritor ou entusiasta deste projecto, não hesite e deixe o seu voto aí, na sondagem da barra lateral.

Ao mesmo tempo, se ainda não se lembrou de subscrever a Newsletter, renovamos o nosso convite já aqui:



sábado, 2 de novembro de 2013

Primeira edição de Conversas À Pala


À pala de Walsh ou à pala de Lang? A primeiríssima mesa redonda organizada pelo À pala de Walsh convoca o cinema do realizador de "M", que está em foco na programação da Cinemateca Portuguesa numa retrospectiva integral que já começou e que se prolongará até Dezembro. A conversa terá lugar, entre as 18h e as 19h, na livraria Babel Cinemateca, primeiro andar do edifício da Cinemateca Portuguesa. O convidado é um languiano inveterado: Luís Miguel Oliveira. Aproveitamos a vinda do director da programação da Cinemateca para falarmos também dos critérios que presidem à escolha dos filmes a exibir na casa-mãe do cinema.

Este será um evento mensal, organizado sempre no mesmo espaço, à mesma hora e no começo de cada mês. Uma rampa de lançamento para discussões em torno dos temas quentes da vida cinéfila nacional. Na primeira edição, estarei eu e o Ricardo Vieira Lisboa a conduzir a conversa.

Convido todos a estarem presentes à pala walsh-languiana. Confirme a sua presença aqui. Leia todas as informações no site da Cinemateca Portuguesa aqui.

Adenda (dia 3 de Novembro): As "Conversas À Pala" são notícia no Diário de Notícias de hoje. A peça é da autoria de Flávio Gonçalves. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Ditadura policial-militarista

"THX 1138" (1971) de George Lucas

"Libera me" (1993) de Alain Cavalier

("Libera me", exibido ontem na retrospectiva que o DocLisboa 2013 dedica a Cavalier, poder-se-ia resumir a um "THX" composto por insertos bressonianos, sucessão de imagens que imergem no silêncio das palavras e emergem na potência dos gestos. O problema de "Libera me" é exactamente esse: o de ser o resumo de uma ideia formal com uma substância política a servir de "falso apoio". E, já agora, alguém quer ver uma distopia política realizada "à moda" de Robert Bresson? Não sei, mas, neste particularíssimo caso, estou com Lucas.)

sábado, 26 de outubro de 2013

Abertura de concurso público para escolha de próxima direcção da Cinemateca


Pelo menos até agora, terá passado despercebido à maior parte da comunicação social este aviso publicado em Diário da República no passado dia 23 de Outubro, que diz:

"Nos termos do disposto no n.o 2 do artigo 19 da Lei n.o 2/2004 de 15 de janeiro, alterada e republicada pela Lei n.o 64/2011, de 22 de dezembro, torna-se público que a CReSAP, entidade responsável pelo procedimento, vai proceder à abertura, pelo prazo de dez dias úteis a contar da presente publicação, do procedimento concursal n.o 213_CRE- SAP_144_09/13 de recrutamento e seleção do cargo de Diretor da Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema, I. P. (...)"

O que nesse aviso se anuncia tem duplo interesse: primeiro, consubstancia o afastamento da direcção da Cinemateca Portuguesa, algo que interpreto como uma decorrência das declarações recentes do secretário de Estado da Cultura; segundo, pela primeira vez na história da instituição, e seguindo a recomendação que eu apontara aqui, a direcção da Cinemateca vai ser nomeada por "procedimento concursal" aberto "a todos os cidadãos nacionais, no uso dos seus direitos civis".

O concurso, administrado pela Comissão de Recrutamento e Seleção Para a Administração Pública (CReSAP), estabelece uma série de critérios de escolha, sendo que os modos de selecção incluem uma avaliação do currículo do candidato mais uma entrevista onde, e cito, se "Visa obter, através de uma relação interpessoal, informações sobre comportamentos profissionais diretamente relacionados com as competências consideradas essenciais para o exercício do cargo". Mais informações úteis podem ser consultadas aqui (concurso para o cargo de director) ou aqui (concurso para o cargo de subdirector).

A constituição do júri é já pública e as candidaturas serão aceites até 10 dias úteis desde a publicação do dito aviso em Diário da República. Assim, o prazo para envio das candidaturas deverá terminar no dia 5 de Novembro.

(Agradeço ao Samuel Andrade a divulgação desta informação nas redes sociais.)

Adenda (dia 1 de Novembro): O DN, reproduzindo uma notícia da Lusa, esclarece que o secretário de Estado da Cultura havia anunciado em audiência parlamentar, no passado dia 9 de Outubro, que iria abrir concurso público para todas as áreas que tutela. Apesar disto, e até na sequência das críticas que dirigiu à actual direcção no canal Q, permanece a dúvida quanto à constituição da futura direcção da Cinemateca. Isto porque o concurso público não impossibilita que os actuais directores concorram e, dado o seu vasto currículo na área (sobretudo do actual subdirector), é mais do que natural que não estejamos na presença de uma revolução nos comandos da Cinemateca Portuguesa.

A notícia indica como prazo de entrega da candidatura dia 6 e não 5 como referi, contando com o próprio dia do lançamento do concurso em Diário da República.

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