segunda-feira, 29 de julho de 2013

L'inconnu du lac (2013) de Alain Guiraudie


"L'inconnu du lac" é, mais até que o já analisado "Floating Skyscrapers", uma história sobre a homossexualidade como sinónimo não de amor, mas de puro ímpeto sexual. A acção situa-nos numa praia de nudistas perto de uma floresta, onde, entre a vegetação densa, homens de todas as idades se encontram para praticar sexo "sem compromisso". Como acontece com o filme polaco, o que há de mais interessante aqui não é a relação homossexual entre o jovem protagonista e o misterioso homem de bigode, mas antes a relação de amizade (ou será mais que isso?) que se estabelece entre esse jovem e um senhor, de corpo inchado, que todos os dias vai à praia não para ter sexo, mas simplesmente para passar o tempo - e "reflectir", como avança. Ele é (um) estranho, como diz a certa altura o homem misterioso. E é-o porque, precisamente, não age de acordo com os rituais daquela sociedade: para além de não sair da praia, raras vezes tira a t-shirt e nunca vai à água. Se outros verão nele uma "ameaça", o rapaz encontrará nele uma espécie de confidente, um confidente também casual mas que lhe dá afabilidade e uma espécie de "palavra fraterna" em vez de sexo ou oportunidades de voyeurismo ob-sceno.

Ao invés de investir mais nesta relação "fronteiriça", entre o mar e a floresta, Guiraudie prefere insistir em cenas de sexo que alternam entre um lirísmo piroso, com corpos filmados em contra-luz, como que recortados num céu de fim de tarde, e uma bruteza pornográfica "in your face", como o grande plano do pénis a ejacular. Das cenas passadas na floresta, a meu ver, apenas numa, de facto, o realizador francês consegue algo mais que apenas a mera ilustração soft porn deste romance gay "de catálogo".

O casal do filme conversa nu, cercado pela vegetação densa, numa cena de intimidade e não de sexo exibicionista… quer dizer, isso julgávamos nós até ao momento em que no diálogo em clássico campo/contra-campo irrompe, em off, uma terceira personagem. Um dos elementos do casal interrompe a conversa "íntima", "privada", para pedir ao voyeur que pare de espreitar. Aí Guiraudie quebra o momento, faz implodir o seu intimismo, qualquer possibilidade de privacidade, e mostra-nos o homem que se masturba "em cima" daquela cena. Em certo sentido, quando o casal afasta o terceiro elemento, ele está a dirigir-se a um fora de campo que permanentemente os vê e os expõe. Esse fora de campo pertence, por inteiro, ao espectador, esse voyeur pervertido que come com o olhar as "imagens dos outros".

Fora a demagogia do sexo, o auto-comprazimento pela provocação "queer" - por que será que a formação da identidade homossexual parece requerer constantemente o recurso a um básico efeito choque? -, este filme oferece-nos uma reflexão interessante sobre quão relativas podem ser as regras em comunidade, ao ponto do espectador se sentir "posto em causa" por essa súbita condenação "moral" daquilo que, no início, era a principal fonte da libido: o poder ejaculador do olhar. Não haja dúvidas de que "L'inconnu du lac" só supera a mediocridade quando se vira para nós, espectadores, e nos implica não pelo sexo mas precisamente pela sua ausência, pela confusão entre o que pertence ao domínio da privacidade e aquilo que pode ser "objectificado" pelo olhar alheio, em público. Pergunta: seria possível realizar esta história sem as cenas de sexo explícito?

Plynace wiezowce (2013) de Tomasz Wasilewski


História de um triângulo amoroso que tem no centro a definição ou indefinição da inclinação sexual do seu protagonista. Entre ele e a sua namorada tal como entre ele e um rapaz por que se apaixonou está a mãe, com quem tem uma relação tão estreita que durante alguns minutos o espectador pensará naquele homem e naquela mulher como um casal que vive na mesma casa. Sem dúvida que este elemento é o mais interessante de todo o filme, mas rapidamente ele é colocado em segundo (ou até terceiro) plano por causa desse já bastante cansativo retrato do homossexual reprimido que quer sair do armário, mas...

Com uma intriga esquemática, que parece saída de uma telenovela (por sinal, este realizador trabalha, a tempo inteiro, para a televisão polaca), "Floating Skyscrapers" é um "queer movie" onde o sexo e as relações pessoais parecem pertencer a uma retórica pré-formatada (cada vez mais gasta, por estes dias de euforia gay tornada "género fílmico") que, por si só, não justifica a realização deste filme.

Noche (2013) de Leonardo Brzezicki


Na senda de Lisandro Alonso e Carlos Reygadas, Leonardo Brzezicki encontra na Natureza espaço de meditação (e experimentação) sobre as estruturas da linguagem fílmica. Todavia, se Lisandro trabalha a linearidade, o percurso no espaço (o todo), a solidão do homem (o ponto), se Reygadas gosta das elipses especulativas, da distorção de imagens arrancadas do coração da Natureza, Leonardo vai-se aproximar deste último - não tanto do seu compatriota, portanto - para produzir um ensaio sobre o som no cinema, como uma espécie de potência adormecida que vive na sombra da e que assombra a floresta.

Decalcando a papel vegetal os travellings levitantes de Tarkovski, explorando a dimensão mítica da paisagem natural próxima de Reygadas e Apichatpong, mas também convocando os demónios (as catástrofes!) da Natureza e da natureza humana, como faz um Lars von Trier em "Antichrist" ou "Melancholia", "Noche" procura dar um passo em frente através da montagem e do design de som. Da montagem, consegue-o notavelmente em sobreimpressões impressionantes que tornam indistinguível, à primeira vista, o ponto de união/separação entre imagens. Do som, o grande protagonista neste filme, não produz resultados mais interessantes que um Apichatpong.

Ao mesmo tempo, encontro aqui alguns dos problemas que detecto, por exemplo, em "Post Tenebras Lux": o lado elíptico "com água no bico", o transcendentalismo/universalismo enigmático e auto-referencial, a indiferença pelas personagens e o gosto (ideológico) pela exaltação naturalista dos corpos, da violência e do sexo (= o mundo originário...). Eis uma primeira obra que é mais um sintoma gasto do cinema contemporâneo do que uma (pretendida) actualização desta metafísica do e pelo primitivo.

Centro Histórico (2012) de Aki Kaurismaki, Pedro Costa, Victor Erice e Manoel de Oliveira


Os filmes colectivos são sempre projectos arriscados e na maior parte das vezes o todo é inferior à soma das partes. Em parte, esse é o caso deste "Centro Histórico", uma produção Guimarães 2012 que junta "à mesma mesa" Aki Kaurismaki, Pedro Costa, Victor Erice e Manoel de Oliveira. Nenhuma das curtas que realizam consegue mais do que constituir uma pequena e doce vírgula nas suas carreiras. O filme de Erice, o único inequivocamente documental, é aquele que, em mim, sobressai pela sua força emocional. Depois de umas não particularmente bem encenadas "cabeças falantes", o filme toca o sublime numa sequência inteira onde a música de um acordeão banha, com uma inesperada pungência, uma fotografia muito antiga dos trabalhadores da Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela. A galeria de rostos devastados por uma vida de miséria e sacrifício é percorrida pela câmara de Erice e o acordeão de um homem ligado, pelos laços de sangue, à história centenária dessa fábrica que chegou a ser uma das maiores do ramo têxtil em todo o mundo. Sobre essa "imagem da foto", anima-se um verdadeiramente pungente sentimento de morte, tristeza, desolação...

O filme de Pedro Costa ("Sweet Exorcist") volta a ter no centro a personagem de Ventura, adensando os vários fantasmas que o habitam, sobretudo, a Revolução de Abril e a mulher querida que nunca mais vê ao seu lado, vinda de Cabo Verde. Tudo indica que esta curta serviu de esboço para a próxima longa-metragem de Pedro Costa. Ainda assim, o termo "esboço" é traiçoeiro dado o rigor de cada plano, a estranha conceptualização (talvez demasiado "artificiosa" para um filme de Pedro Costa) do diálogo alucinado entre Ventura e a estátua viva de um militar de Abril. Longe da obra-prima "O nosso Homem", este é um exorcismo que talvez ganhe um novo sentido com a anunciada nova longa de Pedro Costa. Outro sentido, contudo, pode-se já desvendar na relação deste filme com o de Manoel de Oliveira. Se antes tínhamos o militar revolucionário, agora temos a estátua de D. Afonso Henriques, animada com uma mui fina ironia pela câmara de Oliveira.

O primeiro conquistador, aponta Oliveira, é agora conquistado/capturado todos os dias pelos magotes de turistas que compulsivamente o fotografam. O "guia" que dizia "eis isto", virará "comentador" do que se está a passar, afirmando, num desabafo jocoso, "eis disto!". Deixo para o fim o menos conseguido destes filmes: o apenas amenamente divertido e enternecedor, quando quasi-tatiesco, filme de Aki Kaurismaki. Menos conseguido, talvez, mas de modo algum um mau filme. Aliás, nenhum dos quatro filmes parecem querer ir para lá do "filme-teste" (Erice e Costa) ou da piada inteligente (Oliveira). Kaurismaki conta uma estória, encena o seu burlesco deadpan colorido, um gesto que diríamos ser automático não tivesse este como cenário a nossa cidade berço.

domingo, 28 de julho de 2013

O Som ao Redor (2012) de Kleber Mendonça Filho


O jogo coral é intenso aqui: uma acção reverbera noutra como os sons, diegéticos e extra-diegéticos, se vão, em sentido quase literal, "edificando". Esta ideia de construção está desde logo plasmada no movimento da câmara, no encadeamento da montagem, nos vários detalhes das pequenas narrativas que despreocupadamente se vão desenrolando, sem procurarem explorar a ansiedade do espectador - apesar de uma certa tensão latente, ao contrário de um Iñarritu, não há aqui nenhum trauma ou evento trágico que liga todas as personagens entre si, nem tão-pouco o filme assentará a sua estrutura naquele que poderá ser considerado o seu principal ou único twist dramático.

Posto isto, temos aqui um cineasta que pensa audio/visualmente o espaço que serve de palco rotativo ao encadeamento das histórias; não só ao registo da vida de um bairro (= ecossistema) suburbano no Recife mas, antes de mais, à construção de imagens e sons que funcionam, elas mesmas, numa vizinhança imperfeita, sempre "em construção".  É também obviamente um retrato social de classes com a mordacidade e um sentido de humor - e terror! - muito próprios, mas decididamente não é aí ou só aí que "O Som ao Redor" se revela um refrescante naco de cinema. Kleber Mendonça Filho trabalha as personagens ao mesmo tempo que à volta e dentro delas (nessas extraordinárias curtas-metragens que são os seus sonhos!) cria uma atmosfera de sentidos (sons, movimentos, cores) no lugar de colar os cacos todos através de uma espalhafatosa "grande narrativa" que justifique e melodramatize tudo o que é dado a ver (à la Iñarritu).

O uso da elipse perto do fim - em torno do desenlace do romance que abre o filme - é um exemplo de como a ânsia de mostrar e ao mesmo tempo justificar ou explorar a realidade sentimental destas personagens pode ser dominada e, com isso e pela surpresa, nos "provocar" mais - e mais coisas. Esta brilhante primeira longa de ficção de Kleber Mendonça Filho pede para ser vista e revista várias vezes. É que o prazer da descoberta deste ou daquele detalhe parece não se ficar apenas pelo primeiro visionamento. Até quando temos nós, portugueses, de esperar pela sua estreia comercial?

What is This Film Called Love? (2012) de Mark Cousins


"What is This Film Called Love?" é um ensaio visual de Mark Cousins no formato de cine-diário sobre três dias de "tédio" na cidade do México por que o realizador teve de passar durante a divulgação internacional de um dos seus filmes. Esse tédio terá provocado um desejo de fazer alguma coisa e tendo Mark Cousins uma paixão incontida, orgulhosa até!, pela história do cinema não é de espantar que desse desejo resulte um objecto fílmico talvez difícil de classificar, entre o ensaio pessoal e o documentário pedagógico.

Acontece algo assim: um pequeno e muito frágil objecto que explora a intimidade deste cineasta perdido no México através de uma fantasiada (vídeo-)correspondência com Serguei Eisenstein. Repisando o solo que Eisenstein percorreu, aquando da preparação da sua obra-prima inacabada, "Que viva México!", Cousins encontra o pretexto ideal para sair do quarto e enfrentar o tédio. Há um problema aqui: ele não chega verdadeiramente a enfrentá-lo. Todo o filme é uma distracção de algo, uma espécie de transferência simples de uma certo estado espírito para esse grande repositório amalgamente chamado cinema.

Com uma banalíssima câmara digital, com uma foto de Eisenstein na mão, com um dispositivo básico que faz de uma correspondência delirante, além-túmulo, um motivo para conhecer a gigantesca capital mexicana, Cousins "improvisa" um filme desnecessário, que acaba por documentar menos o homem e mais a forma como este foge de si mesmo, da sua solidão numa cidade imensa que lhe escapa - e é preciso dizer que "a forma da fuga" nunca chega a convencer. Um home video sofisticado para amigos e família ou, no limite, um sofrível extra de DVD, o visionamento de "What is This Film Called Love?" só se justifica dentro do contexto específico de uma retrospectiva da obra de Cousins.

Camille Claudel, 1915 (2013) de Bruno Dumont


Os anos do asilo de Camille Claudel ou como a desesperança/esperança se alimenta da fé em Deus. O novo filme do cineasta francês Bruno Dumont - que mereceu uma retrospectiva na edição anterior do festival New Horizons - problematiza um assunto já não tão novo e fresco na sua filmografia. É interessante como este filme frustra as expectativas do género biopic, ao se centrar em não mais do que uma fase da vida da célebre escultora francesa que (quase certo) estaria reduzida a dois ou três planos num tradicional filme biográfico.

Temos aqui uma mise en scène levada ao mínimo - talvez o efeito mais espampanante seja o rosto de Binoche - que sustenta um igualmente reduzido número de situações dramáticas, sendo que de novo uma personagem num filme de Dumont se confessa de frente para a paisagem, para um ícone religioso, ou no limite para nós espectadores, o último ecrã para o qual se projectam estes rostos acossados pela dúvida, pela culpa, pela dor e pelo medo. Decerto nada de muito novo na economia dumontiana, que aqui parece estagnar e não conseguir ir além (ou aquém) do mistério magnificamente exorcizado em "Hors satan".

sábado, 27 de julho de 2013

Stemple Pass (2012) de James Benning


James Benning faz de "Stemple Pass" uma espécie de síntese perfeita do seu cinema, depurando (ainda mais) a sua proposta estética e política. Quatro planos, as quatro estações do ano, quatro planos sobre a mesma paisagem e na paisagem sobre a mesma cabana, cada um com trinta minutos. Em narração over, ouvimos os diários e as confissões de Ted Kaczynski, mais conhecido como "the unabomber". Nos anos 70, este homem doutorado em matemática pela Universidade do Michigan auto-excluiu-se da sociedade, afastou-se dos ruídos da civilização tecnológica, numa espécie de reedição ultra-radical de Walden. Daqui resultou um manifesto e uma acção terrorista (necessariamente terrorista, dirá o filósofo) através de encomendas armadilhadas enviadas (por correio) a professores, cientistas e políticos. A serenidade e respiração da paisagem natural são interrompidas pelos relatos crus, por vezes brutais e primitivos, por vezes perigosamente elaborados desta voz sem corpo cuja presença se faz simbolizar pela cabana que James Benning construiu à imagem da habitação original.

Depois de ouvirmos uma peroração sobre a ditadura tecnológica em que o homem moderno vive, cada som à distância de um helicóptero como que "golpeia" a imagem com um sentido de ironia e de gravidade que até agora estavam apenas implícitos nos filmes de Benning, como "13 Lakes" ou "RR". O "comentário à técnica" mistura-se aqui com um desesperante sentido de morte e um choque constantemente insinuado na paisagem audio-visual entre o primitivo e o moderno. É o grande "horror movie" de Benning depois de "Landscape Suicide", uma versão sublimada desta sua (outra) obra-prima. Uma contemplação sobre a natureza (do homem), a Natureza (que ele defende) e a sociedade (que ele ataca, em "legítima defesa"). Belo e perturbante, "Stemple Pass" é, sem dúvida alguma, um dos filmes mais notáveis que vi este ano.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

A Story of Children and Film (2013) de Mark Cousins


A ideia de Mark Cousins em "A Story of Children and Film" parece ter sido ganhar alguma distância sobre o formato da série "The Story of Film: An Odyssey", procurando "desarticular" o que estava devidamente "arrumado" ao serviço de uma revisão crítica da história do cinema ou de uma nova pedagogia histórica das imagens fílmicas de todo o mundo. Se antes o tom pessoal se cingia quase por completo à intensidade da narração, caindo por vezes numa dimensão sentimental ou poética, agora Cousins estrutura um filme inteiro com base numa imagem íntima e espontânea capturada, sem preparação, de um quadro familiar corriqueiro.

Cousins filma os sobrinhos a brincar - antes vagueará e perder-se-á em especulações abstractas e poéticas pelos quadros de Van Gogh - e a partir dessa imagem típica constrói uma tapeçaria de imagens do cinema onde o protagonista dos protagonistas é a criança, na sua rebeldia, na sua doçura, na sua capacidade inata para criar ("todas as crianças são artistas", assim cita Cousins Pablo Picasso na sessão Q&A). De novo procurando fugir à visão ocidentalista (e "racista", como chega a formular na sua "The Story of Film") da história do cinema, Cousins reúne uma série de obras relativamente obscuras, da Dinamarca, Albânia, Irão, para lá das referências mais previsíveis, como "E.T.".

Nesta viagem - figura importante nesta obra recente deste cine-ensaísta nascido na Irlanda, promotor mundial do cinema através do medium filme e de um festival itinerário que organiza com Tilda Swinton - Cousins mais do que dar a conhecer os filmes na história ou a história dos filmes privilegia aqui o processo da sua rememoração cinéfila, uma espécie de associação livre (de novo, sentimental ou poética) que nem sempre se mostrará solidamente fundada em algo para lá de meras impressões pessoais, por vezes quase tiradas a ferros. "A Story of Children and Film" vale pela proposta arqueológica benjaminiana, de reunir num mesmo "timeline" filmes com uma certa afinidade temática: a criança e a sua situação. Útil pela "filmografia" anexa, fracassado no seu (ambicioso, ainda assim) projecto de fundir o filme pessoal, diarístico, com o documentário pedagógico.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O CINEdrio na Polónia


Até segunda-feira, o CINEdrio, quer dizer, eu estarei em Wroclaw, Polónia, cobrindo o festival T-Mobile New Horizons - International Film Festival, uma espécie de versão "ampliada" do Indie Lisboa.  Darei conta aqui do que conseguir ver em pequenos fragmentos que tentarei reunir e remoldar, em apenas um artigo, nesse outro fórum chamado À pala de Walsh. Não será uma cobertura exaustiva do que nele se mostrará, até porque já o apanho a meio e irei acompanhá-lo à distância, através de um "evento dentro do evento" chamado Sunday in the Country, para o qual fui primordialmente convidado. Explicarei melhor em que é que consiste/consistiu esta viagem no tal artigo escrito para a Pala.

Mais do que uma cobertura jornalística deste gigantesco festival de cinema, irei chamar a este espaço algumas impressões mais ou menos fugazes sobre os filmes que conseguir ver.

Quero agradecer à organização do festival e, sobretudo, ao Instituto Camões em Varsóvia o convite e a forma profissional como trataram de tudo.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Já está disponível a versão pública da Newsletter #23!

(Para consultar a versão pública da Newsletter #23, clique na imagem.)

Desta edição da Newsletter do CINEdrio, dedicada a Rainer Werner Fassbinder, tornamos públicos os nossos destaques a filmes de Henry Selick (com Tim Burton) e Curtis Harrington (uma cortesia da editora norte-american Flicker Alley). O Ricardo Vieira Lisboa escolhe os filmes que vale a pena ver no pequeno ecrã. Nos livros, re-publicitamos a monografia que Jacques Rancière dedicou ao cinema de Béla Tarr (cortesia da editora espanhola Shangrila) e revisitamos a história do cinema primitivo num livro de Laurent Mannoni. Também partilhamos com todos as respostas que nos deu Eduardo Cintra Torres, crítico de televisão e Professor na Universidade Católica Portuguesa. 



A cada realizador, o seu chicote amestrador

Federico Fellini, "Otto e mezzo" (1963) 

Não sou um carrasco de atores. Como devem saber, há duas grandes escolas de amestrar leões: a francesa e a alemã. Na primeira, a francesa, os animais são mantidos rigorosamente em lugares precisos. Na outra, a alemã, os animais parecem sempre estar brigando com o domador. Esperava-se antes que a primeira escola fosse a alemã e a segunda a francesa, mas é precisamente o contrário. Há também duas grandes escolas de diretores: aquela em que o diretor domina o ator e o aterroriza para fazer sua parte, e a outra, à qual pertenço.

Entrevista a Orson Welles in André Bazin, Orson Welles, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 176

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Passion (2012) de Brian De Palma


Numa entrevista que passava há dias na RTP, Brian De Palma abria o jogo: para este "Passion", o cineasta levava muitas ideias que tinha acumulado ao longo dos anos em torno de sonhos, pesadelos e fantasias. De Palma queria usar a história thrillesca de um filme de Alain Corneau para pôr em acção o desejo por essas tantas imagens da mente que guardava só para si. Havia algo de pervertido no modo como o realizador de "Body Double" punha a coisa. Parecia esfregar as mãos e arregalar os olhos quando dizia, com uma serenidade calculada: "e há ainda todo o mind fucking". Pois há, aliás, "Passion" é um ego fucking sem fim, quase em modo soft porn do corpo, hard porn da mente, para o triunvirato feminino. É também - como tinha de ser - um verdadeiro jogo de massacre entre De Palma e nós, espectadores. Não há que enganar: "Passion" é o primeiro filme 100% palmaniano desde a sua obra-prima máxima, "Femme Fatale".

O jogo de espelhos, de máscaras, os ecrãs de ecrãs (do cinema a publicitar a publicidade, da publicidade a publicitar o cinema) e o sexo à mostra disto tudo, tudo se excita aqui, nesta fábula moderna baseada num hard sponsoring (à maçã apodrecida que nos liga...) que faz das relações humanas, no local de trabalho ou para lá dele, um verdadeiro teatro (ou será antes ballet?) apocalíptico, de invejas e apunhalamentos batesianos pelas costas. As soluções visuais de que falava em entrevista De Palma, mais as duas principais interpretações femininas (McAdams chega mesmo a queimar aqui) são o sumo deste... remake, que, na realidade, é um "sacanço" a Alain Corneau, decerto apanhado com as calças na mão pelo frenesim cleptomaníaco do maior furtador da história do cinema.

A ousadia formal não tem limites: a câmara de Palma inventa contra-campos em ecrãs de computador desligados, transpõe o mistério à la Argento da máscara kubrickiana para uma cena em que é o interface mediático (no caso, o Skype) que ora esconde, ora espanta. "Passion" desmonta ainda a hipocrisia e vileza mais diabólica do universo empresarial a partir das estruturas do sonho e do sexo lésbico, algo que não se vira assim, com tanto veneno no sangue (nos lábios...), desde "Choses secrètes". "Passion" é sexual e psicanalítico como um "Dressed to Kill" ou um "Raising Cain", é manhoso e traiçoeiro como um "Body Double" ou "Femme Fatale", é político e documental, no seu desnudamento da natureza apocalíptica das relações sociais e laborais dos nossos dias, como só "Redacted" ainda tentara ser, na sua reflexão sobre o mundo e a teia (web) virtual e tecnológica que o envolve. Por muito delirante que seja, este é um imprescindível documento fílmico, sobre o mundo de De Palma mas surpreendentemente mais que isso: sobre o mundo de hoje visto por De Palma.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O À pala de Walsh faz um ano



O À pala de Walsh faz hoje um ano de vida. Foram produzidos 382 artigos por uma equipa composta por 16 cine-filhos e alguns convidados de luxo (para o dossier "Raoul Walsh, Herói Esquecido"), como Dave Kehr, João Mário Grilo e Louis Skorecki. Agradeço a eles todos e também, ao longo deste tempo, às colaborações e aos apoios de todos os leitores e amigos que partilharam os nossos textos nas redes sociais ou fizeram passar a palavra sobre este espaço. Neste particular, destaco os amigos brasileiros do site-irmão Filmologia e esse incansável divulgador do cinema chamado Paulo Soares. Também quero deixar uma palavra de grande apreço à Cinemateca Portuguesa, pelas partilhas sucessivas dos nossos textos na sua página do Facebook.

Para celebrar a data, publicámos neste post pequenas curtas de homenagem ao cinema realizadas por alguns dos membros desta trupe (incluindo eu mesmo). Vale a pena espreitarem.

Supermercado da ideologia ou a ideologia do supermercado?

"Mr. Freedom" (1969) de William Klein

"Tout va bien" (1972) de Jean-Luc Godard

(O supermercado CINEdrio oferece com a leitura deste post mais 999 outros artigos escritos ao longo de 5 anos, desde aquele dia de Março de 2008 em que Bergman e Eastwood deram as mãos entre si e com a morte. Quis despachar a morte logo no primeiro fôlego deste espaço. Desde aí esta multiplicou-se 1000 vezes, marco atingido agora com mais esta revisitação do cinema pelo cinema. Obrigado!)

domingo, 14 de julho de 2013

Um rosto tão doce (depressão)

"Angel Face" (1952) de Otto Preminger

"Side Effects" (2013) de Steven Soderbergh

(Começa a impor-se que se escreva neste como em qualquer outro mural dedicado ao cinema que Rooney Mara é a coisa mais excitante a sair de Hollywood em muito tempo. Quanto ao senhor Soderbergh, tem aqui um dos seus filmes mais inteligentes, seguramente o mais e melhor "armadilhado" da sua carreira, misturando a técnica do filme de golpe de "Ocean's Eleven" com o filme político de denúncia ao jeito de um "Erin Brockovich" ou de paranóia "multinacional" numa versão muito mais cativante de "Contagion". De facto, o efeito secundário do cinema de Soderbergh é, antes de mais, o próprio cinema de Soderbergh.)

sábado, 13 de julho de 2013

sexta-feira, 12 de julho de 2013

CINEdrio Meets A Culatra Meets Luís Miguel Oliveira



O exercício de criticar a crítica, que estimulei bloggers e cinéfilos a porem em marcha, por exemplo, aqui e aqui, não deve ser confundido com o exercício de "desancar no crítico", nem mesmo me referia a uma crítica ao crítico, pelo menos de uma maneira fulanizada. Claro que não é proibido e também me parece evidente que uma crítica ao crítico pode ser um bom passo intermédio para se chegar a esse confronto entre "maneiras de ver" o mesmo objecto. Precisamente para chegarmos ao ponto que interessa, gostava que o redactor do artigo «A Culatra Meets Luís Miguel Oliveira», o Sr. Antero, fizesse uso do seu "conhecimento na área específica cinematográfica" para desmontar as posições que o citado crítico de cinema tem assumido contra o cânone dominante de Hollywood, isto é, dos super-blockbusters, baseados em bandas desenhadas ou/e na estética best seller, da publicidade, dos videoclipes e dos videojogos.

Dir-me-á que se limitou a "ler" o perfil e estilo do crítico em questão, mas, para além disso e interpreto eu, procura pô-lo em xeque, como que dizendo, ante o mundo, que "o rei vai nu". Mas quando Luís Miguel Oliveira (LMO) diz que um "The Dark Knight Rises" é um filme ideológico (no pior sentido do termo), quando diz que um "Slumdog Millionaire" cheira a merda (no seu sentido olfactivo sem termo), está a chegar a ou a partir de uma posição muito mais substancial e, não tenho medo da palavra, útil que a posição de que não chega a partir ou a chegar a crítica tipicamente descritiva, apolitizada e "mole" que replica, de modo mais ou menos sofisticado, o modelo dos press releases com uns pózinhos de análise narrativa, cultural ou de indústria/comercial. Aliás, a pergunta que deve ser feita - e que talvez este redactor deve fazer a si mesmo antes de mais - é: "o que deve ser a crítica de cinema? O que e para que serve?" Eu acredito na crítica de cinema, talvez hoje mais do que nunca!, como uma forma de resistência, uma tentativa de parar estes tempos de aceleração mediática, de consumismo acéfalo de imagens que se confundem com marcas, marcas que se confundem com imagens; enfim, tempos em que os espectadores se confundem cada vez mais com consumidores.

Ao arrepio da ditadura mediática da actualidade, não me parece reprovável que as referências de LMO, ou boa parte delas, venham dos "tempos antigos", como escreve o Sr. Antero com um inexplicável despeito. Então não será parte da função da crítica invocar e evocar a memória do cinema, debruçar-se sobre o presente com a consciência firme do que está para trás? Não é dever da crítica pôr a história do cinema (o seu passado) ao serviço do seu desenvolvimento presente? Não é dever da crítica apontar esses caminhos, abrir esses horizontes, ao leitor? Dir-me-á o Sr. Antero: "Mas uma coisa é evocar o passado, outra coisa é viver-se no passado, como se só lá estivessem as grandes obras, os grandes autores". Penso que aqui batemos de novo contra o perfil do crítico e a capacidade do leitor para o compreender - talvez a crítica do crítico deva produzir uma justa e avisada auto-crítica no leitor, ou tenha, em potência, a capacidade para estimular nele essa coisa chamada inteligência, isto é, a capacidade de "compreender antes de afirmar"... No caso de LMO, da sua formação clássica, da sua veia diria museológica [no sentido imagi(n)ário de Malraux], é natural que ele próprio atribua a si mesmo um papel que tempera o conservadorismo (afinal, no museu, imaginário ou não, "conservam-se" obras), a prudência e o bom senso com uma exultante e contagiante capacidade de descobrir e dar a descobrir novos e diferentes universos (aliás, basta ler o texto que escreveu sobre o último Brisseau para se perceber como é por estes lados que tem morada o derradeiro reduto da crítica de cinema onde ainda é possível a paixão cinéfila, assim mesmo: "à antiga").

 O que LMO tem vindo a dizer - ia escrever, e talvez bem, "a denunciar" - é aquilo que uma fatia importante de quem vê, segue e lê sobre o cinema tem sentido não tanto com "raiva" mas com igual saturação ou mesmo desencanto. Essa fatia da população não tem é um fórum com a dimensão do Ípsilon, por isso, em certa medida, LMO é o embaixador de uma minoria, uma minoria que me parece ser francamente esclarecida - mesmo que não fosse, sabemos como em democracia as minorias devem ser sempre protegidas. Por exemplo, LMO fala do "fastio", da "maçada", do "cansaço" que lhe provocam alguns dos blockbusters "infantilóides" que monopolizam a oferta fílmica nas nossas salas. O Sr. Antero recorta os adjectivos ou as adjectivações, tira-os ou tira-as do contexto e parece que a prosa de LMO se resume a isso. Isso não é verdade, mas mesmo que fosse, na essência, não trairá aquilo que muitos ou alguns de nós, cinéfilos, sentimos face à generalidade do mainstream americano. (Pessoalmente, gostava que alguém escrevesse preto no branco, porque seria até sinal da sua independência, que os blockbusters americanos da actualidade são puro lixo fílmico - garanto que, aplicando o princípio da dominante, não estaria a comprometer o meu rigor em 80% ou 90% dos casos. Os críticos que não querem enfrentar esta realidade, que "douram a pílula" para não perderem as benesses das principais distribuidoras/anunciantes, são, na minha opinião, actores de uma farsa ideologicamente perversa.)

O Sr. Antero chega a reduzir a seguinte reflexão em torno de "Man of Steal" a uma mera manifestação de um "preconceito" ou mesmo de "ódio": "um frenesi permanente, uma sucessão de estímulos visuais e sonoros que são um fim em si e em caso algum um instrumento para a construção de qualquer coisa que valha a pena confundir com ideias de mise en scène ou de dramaturgia". Na minha opinião, o que LMO faz aqui é não a manifestação de um preconceito ou a sublimação do seu (suposto) ódio anti-comercial ou anti-Hollywood, mas - acho que o tiro, Sr. Antero, lhe saiu pela culatra... - a afirmação de uma visão sobre o cinema, coisa que falta a muitos outros críticos da nossa praça, que se limitam a reproduzir "hypes" ou a reformatar informações de press releases.

Uma visão, neste particular, não muito distante da que tem um veterano crítico da New Yorker (norte-americano, imagine-se!) chamado David Denby. No capítulo «Conglomerate Aesthetics: Notes on the Desintegration of Film Language» do seu livro de 2012 Do the Movies Have a Future?, escreve: "The language big movies are made in - the elements of shooting, editing, storytelling, and characterization - is desintegrating very rapidly and in ways that prevent the audiences from feeling much of anything about what it sees". Mais à frente, aproximando-se de muita coisa diagnosticada (levianamente, diz o Sr. Antero) pelo crítico LMO, assevera: "The studios and filmmakers may have gone a little too far in emptying out meaning. What we have now is not just a raft of routine bad pictures but the first massively successful nihilistic cinema". Sobre o "frenesi permanente" não se fica por meias palavras: "Big movies are now full of needle-nosed flying pteranodons and cars on fire floating through the air (at a recent year-end critics meeting, one reviewer suggested an award to the "best shot of a couple holding hands as they run away from an exploding building")".

Face a isto, a minha sugestão - se me é permitido dá-la ao Sr. Antero - é que se passe agora da crítica ao crítico para uma crítica à crítica, uma a uma, em conjunto, como quiser, mas que fundamentalmente se abra o debate sobre os por quês da necessidade que o Sr. Antero e seus iguais sentem em defender a "estética dos conglomerados", ou o filme X ou o filme Y que entedia ou molesta este ou aquele crítico. Também me ficam algumas dúvidas sobre o que deve ser a crítica de cinema segundo o Sr. Antero. Eu posso avançar desde já com a minha posição: a crítica deve articular um pensamento, colocar-se numa posição não de subserviência aos gostos instituídos (pela indústria, pelos media) mas, desassombrada e prudentemente, de resistência a tudo o que é vendido como um produto acabado e indiscutível.

Da mesma maneira, acho, tal como o crítico Roger Leenhardt sugeria, que à crítica compete a função de dar ao espectador as ferramentas de que este precisa para aprender a ler o cinema directamente "no texto", ao invés de o "apanhar no ar" como "a tradução de uma língua estrangeira". Desmontar o subtexto ideologicamente minado de "The Dark Knight Rises" ou a estética demagógica da pobreza (aquela que, resumindo e concluindo, cheira de facto a merda) de "Slumdog Millionaire" passa, a meu ver, como um contributo importante, ou mesmo decisivo (até porque "a crítica" é uma ideia feminina...), para a formação não só de melhores espectadores como, acima de tudo, de uma sociedade civil mais esclarecida e criticamente activa.

No dia 1 de Agosto, vá para fora cá dentro


Anote isto: no dia 1 de Agosto, a distribuidora Lanterna de Pedra Filmes prepara-se para lançar nas salas portuguesas aquela que será, eventualmente (afinal, não vi todos os filmes que estrearam até agora), a primeira obra-prima de 2013: "The Innkeepers". Foram precisos dois anos de espera, mas cá está um acontecimento duplamente assinalável: estreia em Portugal o melhor filme de Ti West até agora e, pela primeira vez e muito simplesmente, um filme de um dos realizadores mais prodigiosos da actualidade. A minha análise ao filme data de Março de 2012, mas o meu entusiasmo em relação a este título está intacto, na realidade, revigora-se agora que sei que também o leitor poderá aderir a esta estada (na suspensão) do horror.

After Earth (2013) de M. Night Shyamalan


Há duas maneiras de ver "After Earth". Posso dizer que é um blockbuster multimilionário que serve de veículo ao pai e filho Smith (Will e Jaden, respectivamente). Posso também dizer que é uma louca tentativa de reduzir um blockbuster pipoqueiro a uma história caseira sobre a relação entre um pai e um filho, por sinal, interpretados pelo pai e pelo filho Smith. Não me parece, de modo algum, que esta visão alternativa do que é "After Earth" traia minimamente o risco associado a este projecto, risco esse que me parece evidente. É aqui que queria chegar quando falei das maneiras de "sair" deste filme, o "aftermath" do depois deste regresso à Terra... Na realidade, também podemos dizer que este é um filme "desmiolado" de aventuras e mais ou menos espampanantes efeitos especiais, mas o que resta no fim é o projecto de contar uma fábula moderna (ou primitiva?) sobre as dores do crescimento e o domínio do medo.

Ao contrário de boa parte dos blockbusters contemporâneos, mesmo alguns bem fabricados por um Spielberg, um Cameron ou (muito mais limitado) um JJ Abrams, aqui a dimensão íntima das personagens não é o "valor acrescentado" ao espectáculo sónico e visual, mas antes, bem pelo contrário, a matéria essencial que é trabalhada incessantemente, do primeiro ao último minuto, quase até ao paroxismo. Isto como se "After Earth" fosse um filme de ficção científica onde a acção é gerada por uma engenharia sentimental muito antes de ser induzida por uma bateria de efeitos CGI. O continente é aqui, nitidamente, o aparato tecnológico; o conteúdo são, por sua vez, as relações humanas. Ao aparato tecnológico é dado o papel que, por natureza (e usar a palavra natureza não é acidental), lhe é destinado: o de medium, tanto de ligação/aproximação como de corte/distanciação. 


Este é um dos pontos mais notáveis - e arriscados, de novo sublinho - deste filme: um problema de comunicação entre pai e filho, não excessivamente melodramatizado, que alimenta todo um monumental empreendimento hollywoodesco, de grande ou muito grande escala (afinal, o filme custou 130 milhões de dólares). Essa "falta" de comunicação é reparada por um processo dialéctico entre campo e contra-campo que, de novo para surpresa do espectador moderno, se potencia única e exclusivamente na mais antiga plataforma do cinema: a mise en scène, isto é, a posição relativa da personagem no seu meio e na relação com essa outra personagem, ubíqua, omnisciente e inevitável, chamada câmara de filmar.

Entre a câmara e a personagem normalmente vemos hologramas, gráficos, uma parede translúcida de informação que torna possível uma ligação transfísica entre um pai paralisado nas duas pernas e um filho que corre veloz, superando o seu medo de nunca vir a ser um Ranger, isto é, de nunca vir a merecer o amor e o orgulho do seu pai. Essa membrana de informação permite ao pai assistir (a)o filho, colocando o primeiro na pele do primeiro espectador de "After Earth" e o segundo na pele de primeiro realizador de "After Earth". O pai vê, assiste, orienta e orienta-se (a certa altura, deixa mesmo de poder contactar com o filho, ficando assim entregue à sua condição passiva, já não só física como virtual). O filho regista a sua aventura, qual travelogue frenético, rodado na primeira pessoa, sobre esse planeta estranho chamado... Terra. 

A viagem mapeada (pelo pai) é efectivada pelo corpo-câmara (do filho), num jogo simbiótico entre campo e contra-campo. A comunicação entre os dois é uma comunicação com um ausente e todo o filme será uma construção de algo "na ausência de". Citar Oudart e a figura psicanalítica da "sutura" não seria despropositado se pensarmos que todo este filme sobre a comunicação entre pai e filho, que não existia "antes" e, atenção, não fica claro que exista "depois"..., é todo ele fabricado por uma distância: aquela que todos os media, começando nas telecomunicação e acabando no cinema, produzem nas relações sócio-afectivas entre humanos. Ao espectador cabe "reparar" a falha e, numa montagem alternada absolutamente clássica/griffithiana, saber entrelaçar os fios desta história, tão simultaneamente básica (imediata) como complexa (mediata). 


A ideia de que a criança precisa de sair da redoma é, num primeiro nível, o típico obstáculo shyamaliano que o protagonista, perseguido por um evento traumático, tem de superar para despertar em si o dom que lhe está ou deve estar reservado. Mel Gibson em "Signs" precisa de superar o trauma da morte da mulher para poder reactivar a sua fé em Deus (o seu dom), tal como Paul Giamatti  em "Lady in the Water" precisa de "tirar do peito" a dor imensa que sente pela morte da sua família para (re)activar a crença no mundo e na vida (o seu dom é essa crença, essa capacidade de "acreditar"). O que se passa em "After Earth" é quase uma reconfiguração abstracta desta ideia de dom, porque o nosso herói precisa de ultrapassar o trauma da morte da irmã, reconquistando a confiança, o amor e o orgulho do seu pai, para, enfim, ver em si despertada a capacidade de... desaparecer (ghosting). 

Este desejo, melhor dizendo, esta "ambição" de desaparecer que move o filho significa, num primeiro nível, tornar-se invisível aos olhos dos monstros alienígenas, Ursa, que o seu pai combate galhardamente. Num segundo nível - há níveis aqui, de facto, quase como um videojogo estilístico e... moral - , ele eventualmente deseja tornar-se invísivel (um "fantasma") para se reencontrar com a irmã (e parte do desejo se cumprirá numa sequência pejada de duplos sentidos semânticos) e, também ou acima de tudo, para se aproximar do pai. Como o filho "deixa escapar" a certa altura, o pai é um "cobarde" porque nunca "esteve lá". O pai foi, é e poderá continuar a ser - o happy ending não é definitivo nisto - também ele um ghost, não só invisível às criaturas mas, acima de tudo, intangível (= um ecrã) para a sua família. Ver e tocar: o pai assiste à vida, o filho implica-se, embrenha-se, envolve-se, toca e deixa-se tocar por ela. O verdadeiro aventureiro - o verdadeiro "herói", apetece dizer - é o filho, não por ter conseguido "desaparecer" no fim e matar o monstro, mas por ter estado onde o pai nunca esteve: junto de quem ama.

O Ricardo Vieira Lisboa é bastante perspicaz a isolar um momento no filme, que me parece resumir quase tudo o que escrevi até agora. Num dos flashbacks - como "Signs" ou "The Last Airbender", "After Earth" é, para além de um montagem alternada "no presente", um encadeado de remissões ao passado - o pai festeja os anos da filha através de uma ligação online, à distância, enquanto viaja para mais um local de combate. No ecrã do seu Ipad pós-terráqueo, gadget curiosamente de forma e textura orgânicas - como é, aliás, todo o décor futurista do interior das naves -, a personagem de Will Smith assiste, qual espectador passivo, ao típico ritual em torno do bolo de anos. Quando mulher e filha o convencem a soprar as velas, o incrédulo e atrapalhado pai sopra para o ecrã. E, milagre!, as velas apagam-se. Milagre? Nem tanto: do fora de campo, nas costas da câmara, sai o filho como que apanhando em falso o pai ausente, que, talvez por segundos, acreditara ter milagrosamente "activado" a sua participação no quadro familiar. Aqui temos, num curto episódio, uma exploração altamente imaginativa do fora de campo e do campo/contra-campo, dois velhos recursos fílmicos usados como símbolos da ausência insanável de um homem entre aqueles que ama e entre aqueles que o amam.


"After Earth" não se fica por aqui nos seus jogos mais ou menos subtis (por vezes, básicos, por vezes, desinspirados, por vezes, ágeis, por vezes, tocantes) com o vector espaço-tempo, um vector altamente mediatizado ou, pelo menos, sempre mais mediato que imediato (salvo talvez no abraço final). O "after" do título é todo um outro programa que torna esta fábula íntima sobre a paternidade e o crescimento, sobre o medo que os envolve, num dos poucos filmes futuristas genuinamente primitivos da história do cinema - algo próximo só encontro em "Planet of the Apes" e, genialmente, em "Ghosts of Mars". O "futuro" que aqui se põe em cena é um "futuro" que nos leva mais para trás do que para a frente: quanto mais a viagem se aprofunda, mais aquela terra nos parece com... a nossa Terra (afinal, os macacos e os tigres não são metamorfoseados em criaturas tenebrosas, como acontece em "Lady in the Water"; são apenas macacos e tigres!). 

A ideia primitiva de mapa funde-se, a certa altura, com um "remake" do traço da pintura rupestre (o mesmo traço que abre "Lady in the Water", por sinal...), como se, de repente, estes dois espécimes humanos "do futuro" mais não estivessem que a recomeçar a História numa Terra renascida das cinzas da incúria e dos abusos humanos cometidos no passado. Este overlapping transhistórico entre o passado e o futuro (o pai chega a afirmar que ter medo é "ter receio do futuro") será a primeira reconciliação, a primeira ligação significativa antes do abraço final "não mediado", convergência táctil "patética", entre pai e filho. "After Earth" não fala de super-heróis (aliás, o heroísmo é aqui terrivelmente terreno), não se verga ao CGI e aos enredos de apenas "supostas" densidades psicológicas de um Nolan. O que importa em "After Earth" é o traçar um arco sentimental, que, pondo em diálogo passado e presente, permita ao espectador - este filme é dele, como já ficou claro! - construir a narrativa dessa ponte desfeita que liga um pai ausente a um filho "emotivo". História universal, quer dizer, intemporal e, porque ainda estamos "after earth", definitivamente interritorial.  

(Convido o Ricardo Vieira Lisboa a publicar - aqui ou no seu blogue - o seu mosaico de imagens, engenharia "sentimental" que põe, lado a lado, "Bigger Than Life" de Nicholas Ray e este "After Earth". Iluminar-nos-ia bons e ousados caminhos, se o fizesse.)

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Newsletter #23: Fassbinder


O enfant terrible-mor do novo cinema alemão será o herói de Julho da Newsletter do CINEdrio. Circulando permanentemente entre uma visão nostálgica do cinema (devedora, acima de tudo, de um Douglas Sirk) e uma atitude de insurreição contra a instituição cinematográfica (o cinema, essa "puta sagrada"), Rainer Werner Fassbinder é provavelmente o cineasta estetica e politicamente mais complexo (e, por vezes, complicado) da história do cinema moderno. A ele dedicaremos linhas que tentam expor a contradição que enforma a sua arte, sem negarmos, portanto, que nela residirá boa parte da energia convulsa que alimentou a alma deste ser hiperactivo, que produziu, realizou e, a espaços, chegou a protagonizar ao todo mais de quatro dezenas de filmes, telefilmes e mini-séries, tal como escreveu e encenou outras tantas peças de teatro. E morreu jovem, com apenas 37 anos.

Para além de Fassbinder, o subscritor da Newsletter receberá boas novas do mercado home cinema, tais como uma muito aplaudida edição de filmes da fase Bergman de Rossellini, duas das obra-primas maiores de Sirk em Blu-ray (qualquer uma delas não teria sido indiferente a um Fassbinder...), uma caixa com (quase) todo o Mike Leigh a preço de promoção, os mais recentes pré-lançamentos de obras de Satyajit Ray (parece uma loucura nestes dois últimos meses!), a descoberta do cinema experimental de Curtis Harrington, Cottafavi a preço de saldo, uma edição de luxo de "Heaven's Gate" de Cimino, etc.

Quanto a livros, posso levantar o véu dos nomes que seguramente farão parte deste número da Newsletter: Jacques Rancière, J. Hoberman, Hollis Frampton, Noel Carroll, Alain Badiou, Hugo Munsterberg, etc.

Ao nosso inquérito, respondeu-nos Eduardo Cintra Torres, crítico e estudioso do fenómeno televisivo que publicou recentemente o livro A Multidão e a Televisão.



Ligação directa à pala de Walsh (XI)


O "pluralismo estético" esteve na ordem do dia. Na sua feição mais vulgar, talvez, com o filme falado "Masters of the Universe" - dos momentos mais divertidos de toda este, prestes a ser celebrado, primeiro ano de vida do site. Igualmente plural, no sentido "esquisito do termo", tentei eu próprio ser na minha análise à raridade "Qui êtes-vous, Polly Maggoo?" de William Klein.

Voltámo-nos a embrigar com "pluralismo estético" nas Actualidades do mês de Junho, mais uma crónica noticiosa feita com recurso ao cin... perdão, à realidade. Também foi em Junho que publicámos a primeira parte da entrevista mediaticamente incondicionada, realizada por mim e pela Sabrina Marques, a Eduardo Geada. Foi uma longa conversa feita em profundidade ao Geada cineasta, ao Geada professor e, sobretudo, ao Geada crítico e teórico. (A parte II está quase aí a sair.)

A minha crónica Civic TV foi dedicada à análise do filme de terror "The Changeling", que passou recentemente - e continua a passar, parece-me - no canal Syfy. Aproveitei a oportunidade - a que o tema do terror me deu - para começar por abordar a notícia da aparente suspensão do "5 Noites, 5 Filmes" na programação da RTP2. Em poucos meses, passou à história a rubrica que, cito, "já fazia parte da história do canal". De facto, sem memória, não há história, tal como "sem cinema, não há RTP2". Espero que os actuais programadores percebam rapidamente isto.

Colaborei ainda para a habitual Sopa de Planos. Desta feita, sob o tema "split screen", a minha escolha recaiu sobre um dos meus universos cinematográficos de eleição - e que tão bem faz raccord com uma das estreias mais quentes desta semana.

Fora os meus contributos, quero destacar a chegada de um novo colaborador: Francisco Noronha, do blogue Bósforo. O seu primeiro texto, redigido à pala de Walsh, recupera uma das obras-primas menos lembradas de Fassbinder: "Martha". Um bem-haja à sua vinda!

Quero ainda deixar uma palavra de grande apreço ao trabalho que o José Bértolo desenvolveu ao longo do ano no seu espaço Simulacros. A sua última crónica fecha, com chave de ouro, um esforço crítico e arqueológico de questionamento do lado mais íntimo e secreto das imagens. Esperemos que seja apenas um "até já".

Com o mês de Julho a andar sobre rodas, recomendo que vão acompanhando aqui a cobertura de João Araújo ao Curtas Vila do Conde '13.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Terrorismo burlesco (= terrorismo não-simbólico)

"Le testament du Docteur Cordelier" (1959) de Jean Renoir

"Tokyo!: Merde" (2008) de Leos Carax

(E se calhar o Mr. Merde é isso: um Mr. Hyde/Opale já sem Dr. Jekyll/Cordelier, isto é, o primeiro Dr. Jekyll/Cordelier pós-moderno.)

sábado, 6 de julho de 2013

After Earth depois da próxima quinta-feira


O muito antecipado, aqui, novo filme de Shyamalan estreia na próxima semana ("de mãos dadas" com o último De Palma!). Será nessa altura que tenatarei deixar aqui umas linhas sobre a justiça ou injustiça que envolve a sua recepção crítica e popular ou, no limite, popularmente crítica nos Estados Unidos. Até artigos a sugerir uma mudança de rumo, virada para a produção independente "de autor", foram escrevinhados, disfarçando mal o embaraço que este filme constituiu e constitui para a grande fábrica Hollywood. Espero para ver.

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