
De novo, Steve McQueen assina um filme com dois, três, quatro ou até mais (enfim, nem tanto...) planos memoráveis. Ainda assim, plasticamente, não negarei que considero "Hunger" um objecto bem mais impressionante. De qualquer modo, cá está McQueen, em "Shame", a mostrar-se como "cineasta de corpo inteiro". Digo isto sem hesitar? Não poderei ir tão longe:
a verdade é que este seu último filme, que, rezará a boa sinopse, é um intenso drama interior sobre um homem consumido pelo seu desejo "descontrolado" por sexo, digo, esta sua "Vergonha", não sendo vergonha cinematográfica nenhuma - longe disso! -, tropeça nalguns problemas que já havia detectado em "Hunger".
E que problemas são esses? Desde logo, o filme coloca-se, e coloca-nos, numa certa posição moral e dela não sai, nem nos faz sair, à medida que o novelo dramático e narrativo se vai desenrolando à nossa frente. Não é preciso irmos longe: o título, "vergonha", coloca o cineasta - e nós, espectadores - como julgadores morais das acções do protagonista, sendo que a bitola que utilizamos, por causa do título mas não só, aparece como pré-determinada. Com efeito, muito tempo de filme é queimado naquilo que considero ser uma dualidade/tensão moralmente básica do cinema plasticamente portentoso de McQueen: aqui não faz sentido falar-se naquilo que, em linguagem de argumentista, se chamará "a exposição", porque todo o filme é uma exposição. De quê? De uma lista de sintomas que o título sentencia de "vergonhosos".
O grau da vergonha, ou a sua percepção, não é "um" mas "o" objecto para McQueen. E nós sentimos isso, se estivermos já conscientes do terreno pantanoso em que entra qualquer filme que conta a história de um solteirão yuppie que, em vez de se inebriar com mobílias IKEA ou tecnologia-onanista-à-Apple (vide Edward Norton em "Fight Club"), tem como primeira obsessão sexo, sexo pela net, em directo, em diferido, em filmes, ou ao vivo e a cores com prostitutas ou mulheres que ele seduz com três trocas de olhar (às vezes, menos!). Quando digo "obsessão" e não "gosto" ou "interesse" estou já a cair na ratoeira que, neste filme, o cineasta britânico nos coloca e, direi mais, se coloca a si mesmo. Vamos por fases.
McQueen faz um filme, ele mesmo, obcecado por este "tarado sexual", entenda-se, um tarado sexual que nada tem a ver com os assediadores de rua, com apenas uma gabardina vestida, que em tempos aterrorizavam jovens raparigas pelas ruas de Lisboa. Numa palavra, este é um tarado sexual pós-moderno. Fassbender dá-lhe corpo e McQueen não o desfeia nem um segundo, nem um milímetro. Face a isto, o facto de ele ter sexo com regularidade seria coisa natural, que não o torna imediatamente vergonhoso - está claro que se fosse um ser asqueroso como Philip Seymour Hoffman em "Happiness" a nossa primeira impressão dispensaria qualquer tratamento dramatúrgico mais aprofundado... Mas, com estes elementos, McQueen não consegue disfarçar que "Shame" tem desde o começo um problema em mãos: como tornar aos olhos de todos um businessman atraente, sofisticado e endinheirado num "sexual addict" vergonhoso?
Dir-me-ão que o problema é (no sentido em que se confunde com) o filme, mas, na minha opinião, o problema está na forma como McQueen o gere, na medida em que aquilo que era um problema-filme é, afinal, desmascarado o autor, um filme problemático. Algo parecido já tinha acontecido com "Hunger": quando a tortura infligida aos libertários irlandeses ameaçava atingir um ponto de saturação moralmente insustentável, McQueen filmava, disfarçando então o seu deslumbramento excrementício sub-humano, um polícia inglês a chorar que nem um perdido a desgraça dos presos, cujos corpos eram reduzidos a sangue e feridas pelas bastonadas e pontapés aplicados pelos oficiais "sem rosto". De dentro do filme vinha um sinal: naquele exacto momento, soavam os alertas, porquanto o grau de horror tornara-se insuportável mesmo para quem fizera dele, e desavergonhadamente, principal motivo estético.
Não o culpamos por isso: alguns dos planos de "Hunger" são pequenos milagres visuais, sobretudo, os planos apertados das mãos ou as desfocagens em segundo plano (uma "profundidade desfocada") que fazem relevar, no primeiro plano, pequenos detalhes, incluindo, partículas tão pequenas como, em "Shame", o bocado de cotão na camisola de Fassbender. McQueen tem olho, que diria indisfarçavelmente míope - ele vê melhor o que está perto, mas com uma nitidez "especial" -, para o detalhe. E só isso é suficiente para o continuarmos a acompanhar com curiosidade.
No entanto, e retomando o fio da argumentação, as questões morais "de grau" são tratadas sem a mesma clarividência. O que acontece em "Shame" é que o grau de horror é agora um grau patológico, uma espécie de medição à vista que McQueen faz: quando pisar aquela linha, Fassbender já é, aos olhos de todos, inequivocamente, um "viciado em sexo". MAS, quando essa linha é transposta, Fassbender cairá em si mesmo - a irmã, interpretada magnificamente por Carey Mulligan, mobiliza-o nesse sentido - e dará um passo atrás. Por ser excessivamente retórico (tudo é "convencimento de alguma coisa"), não penso que McQueen seja feliz a documentar a angústia interior do protagonista: ao mesmo tempo que nos diz "este homem tem um problema, já vão ver quão grave ele é!", também nos diz "já viram como, à volta dele, o mundo é composto por miseráveis vendidos: o patrão, que é um imbecil, quer ir para a cama com qualquer mulher que lhe aparece à frente - escondendo o facto de que é um "pai de família exemplar" - e as mulheres - não as prostitutas, simplesmente, as mulheres... - não buscam outra coisa que não a satisfação imediata de um acesso de desejo carnal?". Na vida pessoal como no trabalho, o protagonista está rodeado de cio, traição e falsidade - onde está a patologia aqui?, perguntava eu. Onde está a "vergonha" que o filme cola à testa de Fassbender como uma doença à procura de sintomas e não o contrário?
O final de "Shame" é, quanto a mim, próximo de vergonhoso. É McQueen a refugiar-se nos "bons truques do cinema moderno" e a deixar "a solução à audiência", dir-me-á a maioria cinéfila. Pois, certo, mas por quê? Lembro-me do irónico "I was cured all right" de "A Clockwork Orange", um final definitivo dissimulado de "final em aberto". Todos nós vemos um "I was cured all right" no desenlace em suspenso de "Shame", mas só McQueen pensa que nós podemos não ver assim... é lamentável cairmos numa ratoeira que foi montada por nós, mas, neste caso, penso que isso acontece e estrondosamente.
Não me cabe na cabeça que aquele evento traumático - que não vou aqui revelar - na vida do protagonista irá afastá-lo dos seus vícios, vícios que, diria eu, e apesar da insistência do realizador, serão naturais - face ao mundo em tons de "American Psycho" que McQueen nos descreve - e pequenos - ou aquilo que se passa na carruagem de metro não é sedução entre homem e mulher, acrescentaria a medo eu, "perfeitamente normal"? Do lado de lá, na hipótese de McQueen insinuar antes a cura miraculosa do tarado, parece que ouvimos ecos daquela cena do polícia lavado em lágrimas em "Hunger": tudo era demais para que este realizador, detentor de uma espécie de moral redentora, pudesse permitir que as coisas seguissem tal como estavam...
Estas duas vias remetem então "a escolha dos destinos do protagonista" ao espectador, mas a liberdade de escolha é, no fundo, uma falsa liberdade de escolha, porque, como vemos, só uma dessas escolhas é compreensível, à luz do grau e dos degraus de "vergonha" com os quais McQueen nos prendeu a atenção durante 90 minutos, na esperança de nos deslumbrar, lá para o fim, com um diagnóstico por nós e (mal disfarçadamente) por ele tido como "dado": afinal, repito, para deixar mais claro, o título é "Shame" e o assunto é sexo. Demasiado sexo. Quer dizer: "C'mon, he most certainly was cured all right!"