sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O esquizo-dis-curso da aranha

"Lilith" (1964) de Robert Rossen

"Spider" (2002) de David Cronenberg

(Dis-curso: corrida em todas as direções, como a da aranha para fazer a sua teia com que envolve as suas presas no seu abraço fatal!

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Pansignificação: a dream team do CINEdrio

O CINEdrio ficou com inveja e também quis ter uma "dream team cinematográfica". Não foi fácil, mas deixo aqui o resultado de um primeiro exercício mais ou menos improvisado de táctica autoral.


À baliza: James Benning, o observador atento que vê (vir) cinema onde os outros normalmente apenas vêem (vir) uma "perda de tempo".

Defesa esquerdo: John Carpenter, à Fábio Coentrão*, faz o corredor esquerdo todo partindo bem de trás. (Quando fica cansado, entra o veterano Howard Hawks para o seu lugar.)

Defesa central esquerdo: John Ford, peso pesado do classicismo, com porte físico intimidante, o "patrão da defesa". Também faz a direita...

Defesa central direito: mais ágil, mas ainda assim, nome forte do neo-classicismo de Hollywood: Clint Eastwood. Também faz a esquerda...

Defesa direito: sem gigantismos, mas eficaz: Boetticher.

Médio defensivo: Eric Rohmer, bom recuperador e "desmontador" da dimensão primordial do cinema - e constante agilizador do verbo.

Médio esquerdo: John Huston, médio imaginativo que faz quase todas as posições (descontando a de guarda-redes). É o meu Rúben Amorim, mas joga...

Médio central (pivôt): o planificador-mor, o homem dos storyboards e das filmagens a tempo e horas que nunca falham: Alfred Hitchcock.

Médio direito: Anthony Mann. Uma vez sobe ele, com grande poder físico pelo lado direito, outras vezes, abre alas a Boetticher, em virtuosas combinações.

Avançado (esquerdo, esquerdíssimo!): Jean-Luc Godard, espécie de Saviola, rápido, imprevisível e, muitas vezes, genial, mas, outras vezes, algo apagado.

Ponta-de-lança: Stanley Kubrick, mais um Rodrigo do que um Cardozo, é implacável frente à baliza adversária - nada o detém.

* - Não me leve a mal, caro leitor, mas as minhas referências futebolísticas vão ser encarnadas. A cor do meu clube.

E agora preciso de adversário. Quem me desafia? Digo: quem tem tomates para desafiar a equipa do CINEdrio? Hem?

(A ideia é fazer um pequeno torneio interblogues e escolher a equipa ideal por sectores... em sondagem aberta a todos e a publicitar entre os blogues participantes. Já temos algumas equipas a disputar. Participe!

Há regras?, pergunto eu a mim mesmo. Talvez, respondo eu a mim mesmo. Por exemplo:

1. Procurem publicar a vossa "dream team" (apenas os 11 jogadores) em comentário a este post - nem que só com um link. Eu irei anunciar as diferentes equipas em post futuro, cada uma disposta no campo verde usado pela minha equipa. Depois a ideia é cada blogger publicar a sua equipa e alojar link para a sondagem no seu espaço. Entretanto, ainda assim, não deixem de chamar amigos-bloggers para a peladinha!

2. Procurem não repetir jogadores e, caso o façam, procurem repeti-los em posições diferentes. Também sugiro que façam a defesa de cada escolha, em função do seu posicionamento em campo, das suas qualidades individuais e colectivas.

3 - Mais nenhuma regra, por enquanto.)

Seven Men From Now (1956) de Budd Boetticher


Se Hawks é um círculo e Ford uma sinusóide, Boetticher é uma linha recta progressiva. Claro que há variações dramáticas, clímaxes e anti-clímaxes, mas os seus filmes estendem-se normalmente num percurso de irredutível linearidade; são, por norma, sobre uma travessia que vai de um ponto a outro - travessia recta sobre a rectidão moral, entenda-se. Claro que "Buchanan Rides Alone" e "Decision at Sundown" são mais concentracionários do que dou a entender, contudo, aí a linha recta é puramente narrativa - e, no caso do segundo vê-se ainda melhor, mais recta do que o percurso percorrido num "Ride Lonesome" ou neste "Seven Men From Now". Vai-se da primeira situação para a última, com poucas, quase nenhumas mesmo, variações de permeio.

"Seven Men From Now" é um dos mais destilados Boetticher. É protagonizado por Randolph Scott, ele é um ex-xerife que perdeu a mulher e que procura fazer justiça com um bando de "outlaws", ao mesmo tempo, rivaliza essa "busca" com o pouco fiável Lee Marvin. A ameaça paira durante a viagem - irá Lee Marvin virar-se contra o protagonista antes da chegada à vila onde "esperam" os criminosos? Irão os índios aparecer para atacar Scott e Marvin e acabar com as aspirações, antagónicas, dos dois? Nada de verdadeiramente "alarmante" se realiza, apenas se joga subtilmente nas margens do risco inerente a qualquer viagem pelo Oeste selvagem - e, a sul, a América é fértil em "ratoeiras" imprevisíveis.

Boetticher põe as peças todas em cima do tabuleiro, meticulosamente, para as mandar abaixo, uma a uma, nos instantes finais... até chegar o momento-chave do duelo: Marvin vs. Scott. Entre eles: a caixa cheia de ouro (faz lembrar o final de "Buchanan Rides Alone"). Quem puxará primeiro da pistola e acabar com a raça do outro? É uma cena clássica, mas neste filme sentimos - sem excesso melodramático - a rivalidade entre os dois, com uma certa indiferença niveladora, que põe tanto o protagonista acossado pelo fantasma da morte da mulher - será que ele não deseja secretamente o suicídio? - como o vilão - será Lee Marvin mesmo um sacana maior do que os outros "criminosos", que executaram o assalto? - num nível quase similar. Não fosse o machismo exuberante de Marvin - que contraste com o machismo "encoberto" de Scott - e podíamos fingir que não sabíamos o desenlace desse confronto de titãs. Entre o campo e o contra-campo o tiro é disparado e o herói, mesmo de perna manca, mantém a pose quase estatual, de uma dignidadade - e rectidão -, ouso dizer, puramente boetticheriana. Bang!

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Little Odessa (1994) de James Gray

(ATENÇÃO: o texto contém alguns spoilers)

Há uma coisa, que não é bem um pormenor, que gosto muito nos filmes de Gray, especialmente nesta sua primeira obra: por regra, as suas personagens beijam mal, o que, por outro lado, é compensado por uma fisicalidade muito táctil, muito "corpo contra corpo", uma violência afectiva que tem tanto de agreste como de frágil - e comovente. "Little Odessa", especialmente, está repleto de exemplos desta "violência afectiva": a forma como os dois irmãos se amam é como ver brincar dois tigres bebés; o pai e os filhos, para além de um amor e desgosto profundos, têm um cinto lacerante a ligá-los; o pai também manieta o corpo da mãe doente de cancro numa espantosa demonstração de amor, um amor que é "potência de vida" (como diz Deleuze), um amor que se serve como remédio para a superação de uma dor física insuperável - maior do que eles... -; a personagem de Tim Roth faz amor com a personagem de Moira Kelly com as suas mãos a tapar-lhe o rosto, uma violência seca, triste, amarga, poucos são os beijos - é a cena de amor mais triste que vi...

Penso que James Gray entende que a materialidade dos sentimentos faz-se pelo tacto, pelos encontrões, pelo soco, o empurrão, a leve festa sobre o rosto - normalmente, um rosto dolorido, lacerado, infindavelmente complexo. "Little Odessa" é o primeiro filme de Gray e já tem tudo isto lá dentro; na realidade, parece que o jovem realizador americano tem construído a sua carreira literalmente sobre ele, tendo, enfim, "Little Odessa" como grande alicerce autoral - o seu rés-do-chão metafísico. O problema do "desconforto" das emoções e da "família", as suas divisões (marcadas no tempo e no espaço), tornar-se-ia pedra de toque do seu cinema - em "Two Lovers", por exemplo, atinge nova apoteose. Aliás, é curioso ver como, na câmara de Gray, a dimensão concreta do universo das seus personagens passa da materialidade das coisas para uma imaterialidade e uma espiritualidade (no caso de "Little Odessa", uma espiritualidade nitidamente agnóstica) própria do Re-ligioso. Se no mais recente filme de Gray falámos da simbologia em torno da luva e do anel, em "Little Odessa" temos de falar do lençol branco, uma espécie de "segundo ecrã" do filme, que - com a música de capela - contribui para tornar a sub-urbanidade e materialidade de tudo em qualquer coisa próxima de um "fresco religioso".

É o lençol branco do leito da mãe doente, marcado pela dor e a doença, enfim, por uma maternidade que sangra por dentro - a magnífica Vanessa Redgrave tem espírito e presença de Madona aqui. É o lençol branco que serve para enrolar os corpos e atirá-los sem dó para a fornalha, em ritual pagão precedido de uma janela divina concedida pelo carrasco: "Hey, do you believe in God?, "Yes!", "Good. We'll wait ten seconds and see if he comes to save you" - eis a mais exasperate demonstração do agnosticismo de Roth em "Little Odessa" e, provavelmente, a primeira clara revelação do agnosticismo atormentado de Gray como autor... E, por fim, é o lençol branco, perfurado por uma bala, por trás do qual os dois únicos inocentes do filme são mortos a tiro - maior condenação para a personagem de Roth seria impossível. Os "dois únicos inocentes" não, a mãe também era inocente, mas nesta altura só lhe resta o espírito, um espírito que, com o do filho sacrificado, assombra, nos minutos finais, o rosto martirizado de Roth - ecrã final no qual, estou em crer, Deus ainda não deu provas de si. O homem está consigo mesmo - e, por isso, já não há mais nada a contar, e, por isso, o filme tem de terminar.

PS: É muito barata e tal, mas evitem esta edição britânica de "Little Odessa". A imagem está encaixada num rectângulozito ridiculamente minúsculo e sem qualidade minimamente justificável para um filme recente - depois queixam-se as editoras que se saque... Parece que esta edição americana não é muito melhor... De qualquer maneira, justifica-se uma edição à medida desta obra-prima dos anos 90 por parte de uma grande editora (inter)nacional.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

5 apostas para 2012

Vou ao site da SAPO e tenho estreias de todos os géneros marcadas até Junho. Dos perto de 100 filmes agendados, destaco cinco, excluindo, por já ter visto em sala, "The Ditch" de Wang Bing (visto no DocLisboa) e "Killer Joe" de William Friedkin (visto no Lisbon & Estoril Film Festival), dois filmes que irão marcar - e perturbar - este ano de cinema.

Coloco sérias reservas a quase todos os chamados "filmes oscarizáveis" deste ano, começando pelo regresso de Benneth Miller, autor do interessante "Capote", e que no dia 12 de Janeiro estreia em Portugal "Money Ball", um típico "sports movie" que será vendido por muita crítica - condescendentemente - como um "não-sports movie". Eu começo a ficar farto destes produtos, mas... who knows? Também "The Artist" não me diz muito, parecendo-me (pelo trailer) uma glamorosa revisitação da Hollywood clássica pejada de tiques maneiristas e piscadelas de olho "espertalhonas" para os amantes do cine-enciclopedismo se deleitarem. O facto de ser "mudo", truque que me soa a "demasiado fácil", só surpreende quem não viu, por exemplo, um "Juha" de Kaurismaki. Mas, como disse, who knows?

A avaliar pelo trailer e algumas reacções, "J. Edgar" de Eastwood, lamentavelmente, parece-me uma estopada, tal como, diga-se, o último Fincher. Oxalá esteja enganado... É também muito provável que espere que "Hugo" saia em aluguer para o ver, porque só o trailer me dá náuseas. O "War Horse" de Spielberg, por seu lado, dito simples e curto, parece-me uma piada por desencobrir... O resto (Jason Reitman, Alexander Payne ou, num nível bem inferior, Cameron Crowe) nem me aquece nem me arrefece.

Não sublinho aqui, mas estou relativamente expectante para: "Cave of Forgotten Dreams" de Werner Herzog, "Attenberg" de Athina Rachel Tsangari, "Le Havre" de Aki Kaurismaki, "We Need to Talk About Kevin" de Lynne Ramsay e "Outrage" de Takeshi Kitano. Espero, ainda assim, que mais estreias significativas apareçam em agenda nos próximos tempos.

1. "O Cavalo de Turim" de Béla Tarr - 16 de Fevereiro 2012

Veja trailer aqui

Tem tudo para ser "o filme do ano". É a obra de despedida de Béla Tarr - se não estou em erro, a única a se estrear comercialmente em Portugal - e, dizem, trata-se do seu maior monumento cinematográfico. É sobre o ocaso mental de Nietzsche e, diz quem viu, é como que um regresso a um tempo em que as imagens - e o tempo fílmico - tinham outra textura; devolução do espectador aos universos poeticamente assombrados de Murnau e Dreyer. Espero muito daqui.

2. "Take Shelter" de Jeff Nichols - 15 de Março 2012

Veja trailer aqui

História apocalíptica de paranóia que retoma a empresa de sucesso de "Histórias de Caçadeira", Jeff Nichols e Michael Shannon, e conta ainda com a bela Jessica Chastain ("The Tree of Life"). Razões suficientes para estarmos atentos.

3. "Dark Shadows" de Tim Burton - 10 de Maio 2012

Ainda sem trailer

Um conto gótico de horror... leio isto no início da sinopse no IMDB e fico logo entusiasmado. É este o habitat de Burton; é nele que nasceram alguns dos seus mais admiráveis filmes recentes ("Noiva Cadáver" e "Sweeney Todd"). Johnny Depp e Helena Bonham Carter estão no elenco ao lado de nomes relativamente menos burtianos como Michelle Pfeiffer e Eva Green.

4. "Martha Marcy May Marlene" de Sean Durkin - 5 de Janeiro 2012

Veja trailer aqui

O cinema independente norte-americano está em boa forma. Não é só por ter John Hawkes no elenco, mas este filme de Sean Durkin, vencedor do prémio de melhor realização em Sundance, pode bem ser uma espécie de "Winter's Bone" de 2012. Entre o trauma e o sonho, lê-se no trailer.

5. "On the Road" de Walter Salles - 31 de Maio 2012

Ainda sem trailer

Projecto que não atava nem desatava nas mãos de Francis Ford Coppola, que finalmente delegou a missão de adaptar ao grande ecrã uma das maiores obras-primas da literatura norte-americana do século XX no hábil cineasta brasileiro Walter Salles, que já se tinha mostrado à vontade "on the road" no bonito "Diários de Motocicleta". Agora, em vez de Che, filma Kerouac/Sal interpretado por Sam Riley, actor que fez de Ian Curtis em "Control", acompanhado por um elenco de peso: Kirsten Dunst, Kristen Stewart, Viggo Mortensen, Amy Adams, Steve Buscemi, Alice Braga e o menos conhecido Garrett Hedlund na pele do mítico Dean Moriarty.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

The Hunter (2010) de Rafi Pitts


Não é bem "Le cercle rouge" ou "Il conformista", apesar da atmosfera plasticamente poderosa que cada plano contém; apesar do interesse fetichista da câmara pelos quadros perfeitos, de linhas definidas e vertiginosas (outrossim, à Benning); apesar, enfim, da arquitectura visual que sustenta um thriller fortemente embebido em referências culturais e políticas (outrossim, à Bong)... Não é bem um "Targets" iraniano, porque o filme de Bogdanovich é sobre a "mecânica escondida do mal" que habita até o mais "exemplar" dos cidadãos - uma espécie de pré-"Elephant" que nos dá conta de uma norma(lidade) interrompida.

Não, Rafi Pitts, jovem realizador que já nos tinha deslumbrado este ano com "It's Winter", empresta densidade ideológica à história do protagonista, interpretado por si - coisa quase suicidária, tendo em conta a hiper-sensibilidade do sistema político iraniano. "The Hunter" também tem pouco a ver com "The Hunted", pese embora Friedkin seja uma referência assumida pelo próprio em entrevista publicada no DVD do filme (na qual tece elogios a "French Connection") e pese embora os dois falem de uma caçada entre homens. Também "Trigger Man" poderia ser citado, já que neste como no filme de Pitts o caçador vira caçado; o perseguidor devém perseguido; mais ainda, o predador "troca de peles" com a presa. Mas não: todas estas referências cinéfilas estão presentes no tecido formal de "The Hunter", mas o que subsiste é a especificidade da sua construção visual e sonora, bem como a forma como dela emergem, em regime de alta discrição, as inquietações do Irão contemporâneo - "abaixo com o ditador" ouve-se a certa altura, à distância...

Estamos nas vésperas das presidenciais de 2009 e o partido verde - por sinal, uma das cores principais da fotografia impressionante de "The Hunter" - começa a ganhar terreno sobre o partido do governante lunático actualmente no poder. A proposta estética de Pitts é um embrulho armadilhado: o thriller é o dispositivo encontrado para Pitts pôr o dedo na ferida. Nunca antes tinha visto uma obra que mexesse com tamanha frieza nos problemas de "falta de autoridade, mas excesso de autoritarismo" no muito paradoxal Irão moderno. O assunto da corrupção e instrumentalização das forças policiais não é um pre-texto, mas o texto propriamente dito deste belissimamente "montado" filme de vingança político (não confundir com "filme de vingança políticA").

(ATENÇÃO: spoilers a partir daqui)

No final, quando a personagem de Pitts troca de pele, naquela floresta de árvores infinitas, que parecem tocar o céu, por entre a espessa névoa, o twist que parecia "do thriller" converte-se em statement ideológico: o pai que direcciona a sua ira contra a polícia, agora "mascara-se" de agente para safar a pele... o problema é que a caça "interna" já começou e, por isso, não há nada de racional em vestir-se com a farda de polícia para se evadir. Quando a personagem de Pitts, vingando o desaparecimento da mulher e filha no fogo cruzado entre manifestantes e polícia, atira aleatoriamente sobre dois oficiais na auto-estrada, ele está a fazê-lo com vista a um acerto de contas pessoal, talvez conduzido por uma certa ilusão patológica de "justiça divina" (uma secularizada "justiça divina", entenda-se).

Contudo, mais tarde - e é essa a ironia fina e terrível do filme -, percebemos que já dentro da polícia decorre uma espécie de purga ideológica e moral, pelo que há quem "de dentro" que nutre alguma admiração por esse atirador anónimo, ao passo que também há quem "de dentro" que quer fazer justiça pelas próprias mãos e julgar com balas o protagonista do filme. O modo aparentemente "acidental" como "The Hunter" transporta a caça do plano não imediatamente político da "justiça divina" para o plano devidamente contextualizado da "justiça dos homens" é coisa notável, para mais, tendo em conta o grau de melindre inerente a todos estes assuntos no Irão dos nossos dias. Jafar Panahi que o diga...

Para lá do limiar em que o caçador vira caçado

Rafi Pitts, "The Hunter" (2010)

Era uma vez um velho homem que havia criado nove filhos, carne da sua carne, nove belos e vigorosos rapazes, a quem nunca ensinou nenhum ofício; eles nada sabiam de semear, nem de ceifar, nem de como criar cavalos ou pastar rebanhos. Apenas lhes ensinou a vaguear por montes e vales em busca do nobre cervo. Um dia, tendo percorrido a floresta toda em redor perseguindo a caça, os nove irmãos tanto tempo erraram, caçaram durante tanto tempo que acabaram por chegar a uma ponte assombrada, por onde cervos prodigiosos haviam passado. Tão insensatamente seguiram a sua pista, que se viram perdidos nas fundas sombras da floresta, transformados em cervos, nove belos cervos. (...)

Maria Filomena Molder, Semear na Neve, Relógio D'Água, 1999, pp. 58-59

In CINEdrio, crítica a "Trigger Man" de Ti West

Do thriller (por um buraco)

"Salinui chueok"/"Memories of Murder" (2003) de Bong Joon-ho

"The Hunter" (2010) de Rafi Pitts

Linhas vertiginosas

"Ruhr" (2009) de James Benning

"The Hunter" (2010) de Rafi Pitts

domingo, 25 de dezembro de 2011

RR (2007) de James Benning


Vamos lá fixar esta ideia: o comboio é a figura-síntese da experiência cinematográfica. Em "O Olho Interminável", Jacques Aumont traça um interessante paralelismo entre a experiência pioneira das viagens de comboio e os relatos dos primeiros espectadores de cinema, que viam no novo medium uma forma de “transporte”- para viagens - mais do que um meio expressivo de comunicação. Deste modo, de corpo imóvel e olho móvel, o espectador cinematográfico e o viajante da locomotiva se equiparavam.

Este comboio, o comboio de transporte de pessoas, é aquele que McLuhaniza a mítica "A Chegada de um Comboio" dos Lumière: afinal, a experiência do cinema era, enfim, uma extensão fenomenológica da experiência das grandes viagens de comboio - mais até, arrisco afirmar, do que um desenvolvimento natural da fotografia. O cinema nasce com a imagem do comboio, que, por sua vez, é o símbolo cimeiro da modernidade tecnológica e da política de ocupação territorial - os westerns americanos encarregaram-se de traçar a genealogia da locomotiva a vapor, na disputa e conquista do território ao inimigo índio. Não espanta por isso que entendamos o comboio como sendo algo mais do que apenas "mais um" meio de transporte - de sight seeing. Cedo se percebeu que este é, também e acima de tudo, um dispositivo de poder e não espanta por isso que também vejamos no cinema - ou nos media fotográficos - um igual mecanismo de "ocupação do espaço, não-terrestre, do imaginário", bem assente sobre os trilhos infindáveis do inconsciente (Penso que é Morin que diz que o inconsciente, esse conceito forjado pela psicanálise, que por sua vez, é uma desmontagem quase mecânica dos processos da mente, funciona como uma espécie de cinema em miniatura que temos na cabeça).


"A Chegada de um Comboio" (1895) de Auguste & Louis Lumière

Posto isto, e dando sentido à máxima de Marshall McLuhan, no "A Chegada de um Comboio" temos um bom exemplo de como o "meio é a mensagem": o cinema auto-reflecte-se na sua imagem primordial - o comboio - para celebrar o seu próprio nascimento. Como bom produto da modernidade, o cinema nasce olhando-se ao espelho, fazendo desse gesto auto-referencial uma espécie de crítica para-psicanalítica da modernidade. Só temos consciência disso hoje, ultrapassado que está o trauma da imagem realista que pôs em movimento aquele cenário comum do dia-a-dia - a monstruosidade do quotidiano é, contudo, assunto que ainda não está inteiramente dissecado e daí talvez o retorno de muitos cineastas contemporâneos às coordenadas do cinema primitivo.

Assim sendo, "A Chegada de um Comboio" é talvez mais do que o seu título aparentemente inocente possa dar a entender; o primeiro filme do cinematógrafo é a chegada de um novo medium e a partida de um outro. O comboio não acabava, mas o cinema irrompia como meio de transporte ainda mais expressivo, um rival de peso, porquanto tinha a capacidade de engolir todos os outros - um pouco como o que acontece hoje com a convergência multimediática propiciada pelo digital, o cinema vinha "totalizar a nossa experiência". Um novo meio de transporte, um novo meio de comunicação, um novo instrumento de poder.

O que é que Benning e "RR" têm a ver com todo este paleio? Tudo. O filme é uma colagem de planos-sequência, uns mais longos do que outros, que começam com a entrada em cena de um comboio e acabam com a sua saída do "quadro". Os comboios têm, contudo, uma dimensão (ainda) mais fantasmática que o comboio dos Lumière, visto que Benning privilegia os comboios que transportam mercadorias em contentores "anónimos", formas de diversas cores que desfilam, ordeiramente, rasgando (e interrompendo) a beleza das mais (extra)ordinárias paisagens naturais. Não há sinal de vida humana. Este comboio desumanizado, "automático", infinito, põe em confronto a querela Lumière-Méliès e o novo mundo fantasmático do digital.


"Viagem Impossível" (1905) de Georges Méliès

No seu "Theory of Film", Siegfried Kracauer sai em defesa da tendência realista em contraponto com a tendência formativa, pondo em confronto dois planos que têm como denominador comum a imagem do comboio. Diz Kracauer que “(…) o comboio em "A Chegada de um Comboio" é a coisa verdadeira, ao passo que o seu correspondente em "A Viagem Impossível" de Méliès é um comboio de brincar tão pouco realista quanto o cenário que este atravessa” . O comboio de brincar de Méliès não era considerado "the real thing", logo, seria uma mentira que não caberia ao cinema perpetuar; porque o cinema servia para "iluminar" o nosso caminho em direcção ao real-absoluto (a verdade) e não encobri-lo de fantasias e ilusões humanas (a ficção).

A maturidade da linguagem cinematográfica parecia depender do material de que eram feitas as locomotivas "imagi(n)árias", mas olhando para os comboios de Benning parece que encontramos a síntese destas duas tendências: sim, os comboios estiveram ali e, sim, não são feitos de plástico ou papier maché; por outras palavras, são "the real thing", mas, por outro lado, o que é que estes comboios têm a ver com o comboio dos Lumière, o comboio do século XIX, que transportava famílias para longe, espalhando a população pelo território, ou que muito romanticamente separavam para sempre casais de namorados - ele ia para a guerra e ela despedia-se dele, na Gare, dizendo adeus com um lenço branco, ensopado em lágrimas, na mão? Os comboios de Benning são pesados, duros, "the real thing", mas também se pareceram com brinquedos tal como são "mostrados" pela sua câmara. A pergunta "haverá alguém a conduzir esta máquina já totalmente desumanizada e indiferente à beleza natural que a envolve?" acentua a sua dimensão perturbante e fantasmática, ao mesmo tempo que comenta, "desnaturalizando", a envolvência - e até aqui vai a subtileza crítica de Benning.



"RR" (2007) de James Benning

Estes objectos-espaços sem vida lembram as salas de cinema em que centenas de cadeiras vazias, por levantar, assistem - sem magia que as anime... - à projecção do filme... O comboio e a sala de cinema apresentam-se, hoje, cada vez mais como "não-lugares" remetidos ao esquecimento pela sobrelotação virtual do ciberespaço e pela reinante cultura ultra-sedentária do on demand - do sofá e das batatas fritas. Contudo, os bens - por exemplo, as coisas de que são feitos os sofás e as batatas fritas -, esses, têm* de ser transportados de um sítio para outro tal como, defendem os "resistentes" que se alimentam ainda de uma certa "ilusão romântica", as salas têm de continuar a projectar viagens para cadeiras vazias. É desolador assistir a este suicídio da paisagem moderna, onde o papier maché de Méliès nunca se pareceu tanto - ou parece-se mais, pela primeira vez! - com o concreto "the real thing". "RR" põe-nos a pensar sobre onde estão, onde param..., os objectos de desejo e de "disputa" filosófica caros aos cineastas/teóricos primitivos e como podemos caracterizar a condição da imagem cinematográfica num mundo onde a ideia de "lugar" está cada vez mais abstractizada pelo fenómeno do digital.

*- Para mais informações...

sábado, 24 de dezembro de 2011

Os rostos de 2011

Figura do ano (internacional)

Jafar Panahi

A sua vida foi virada do avesso desde que resolveu apoiar publicamente o candidato-verde Mir Hussein Mussavi, que fez das eleições presidenciais de 2009 um dos momentos de maior contestação interna à governação de Ahmadinejad. Condenado a 6 anos de prisão e a uma interdição de filmar durante 20 anos, Panahi preparou a sua defesa em prisão domiciliária durante o mesmo período em que fez "Isto Não é um Filme", uma provocação política, em primeiro lugar, e uma leitura ontológica sobre os limites da linguagem cinematográfica, em segundo lugar.

Bem... Panahi não "realizou" propriamente um filme - porque isso seria ilegal -, na realidade, o que ele fez foi "desrealizar" um dos seus últimos argumentos que, por razões políticas, viria a não se concretizar e que nunca poderia ser realizado nas condições presentes de Panahi, entre quatro paredes e sem a efectiva possibilidade... de realizar - "Isto Não é um Filme" é, por isso, sobre a impossibilidade de um filme e, ao mesmo tempo, sobre a urgência anti-egotista do cineasta-artista de o fazer. Quem realizou esta "desrealização" foi o seu amigo Mojtaba Mirtahmasb, ainda que Panahi "comande" cada movimento de câmara, determine o conteúdo deste "filme que não é um filme" - a única coisa a que está "proibido" é de "mandar cortar".

Os limites da realização numa obra feita em cativeiro, que lembra "Offside", filme que Panahi assinou em 2006, nomeadamente, a situação das mulheres aficcionadas de futebol que, proibidas de assistir por razões legais/culturais ao jogo que opõe a selecção do Irão à do Bahrein, se vêem limitadas por um perímetro de segurança, dentro do qual o jogo só lhes chega em ruídos ou mediado, através de relatos feitos pelos seguranças. Em certa medida, "Offside" é um "Isto Não é um Jogo de Futebol" para essas mulheres, que se debatem com a angústia de estarem simultaneamente perto e muito longe do objecto de desejo: portanto, um jogo de bola, neste caso; um filme que não foi realizado ou "à beira de se realizar...", no primeiro caso. Constatação assombrosa, proporcionada por esse double bill que chegou às nossas salas este ano: mesmo preso, "sem perspectivas de futuro", Jafar Panahi continua a pensar o seu país e a condição dos que nele produzem e procuram imagens - outras e novas imagens... Algo notável, que mereceu a minha sincera compaixão.

Figura do ano (nacional)

Susana Sousa Dias

Já escrevi, mas repito: com "48", Susana Sousa Dias ensaia sobre o poder extraordinário que as imagens de[ um] Portugal irreconhecível conferem às suas vítimas: o poder de lembrar e, mais importante, o poder de esquecer. Por um lado, as fotos despertam narrativas que estavam adormecidas; por outro lado, só essas fotos conseguem libertar as histórias de quem as viveu (o narrado passa a narrador). É um aprisionamento NA imagem que é seguido de uma libertação do encarcerado DA imagem. Uma cartarse histórica, que Susana Sousa Dias inicia (des)assombradamente. Acrescento ainda que, para além de ter feito o filme português mais significativo do ano, Susana Sousa Dias foi uma das responsáveis pela programação do último DocLisboa, que, nem por acaso, teve, quanto a mim, a sua melhor programação de sempre. Está, portanto, duplamente de parabéns.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Boas festas!

Estamos em contenção. Por isso volto a dar uso à imagem de 2010 para desejar boas festas!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Recorte de falas (XIII): The Lusty Men

Os diálogos de "The Lusty Men" (1952) de Nicholas Ray talvez só sejam superados pela beleza dos planos inicias - um homem, Jeff McCloud (Robert Mitchum), outrora "o rei dos rodeos", hoje, um has been..., atravessa solitário um caminho desolado de terra e poeira até desaguar numa velha casa de madeira, morada do seu nascimento. O argumento, escrito a várias mãos, entre elas, as de Horace McCoy (conhecido autor do romance "They Shoot Horses, Don't They?", adaptado mais tarde ao cinema por Sydney Pollack), tem guardadas algumas frases lapidares que enunciam muitos dos "motivos" narrativos do filme. Um deles é, sem dúvida, o casamento - McCloud acabaria por ser repetidas vezes acusado de "meter o nariz" em matrimónio alheio... O velho solteirão que habita a casa onde a personagem de Mitchum veio ao mundo perora, a certa altura, sobre a solidão e a privacidade no casamento e fora dele. O nome deste autêntico "filósofo da terra" - a thinking man... - é Jeremiah Watrus.

Jeremiah Watrus: I like a place that's lonely and private. Marriage — that's lonely, but it ain't private!

Prémios CINEdrio 2011

Com o top publicado, avanço para os prémios do ano.

Melhor filme: "The Tree of Life". Vi e revi, e tenho a dizer o seguinte: "The Tree of Life" é , quanto a mim, antes de tudo, uma experiência poderosíssima de redescoberta dos limites "originários" da existência. A existência, ponto 1, como "produção de vida", a existência, ponto 2, como "experiência de toque", de reconhecimento do outro, a existência, ponto 3, como luto, como celebração e aceitação de um Fim (para que algo "exista" alguma coisa tem de desaparecer, alguma coisa tem de falhar, daí a natureza destrutiva do homem, que começa no ódio de morte do miúdo pelo pai... por si mesmo... e termina com a morte de um filho e a incompreensão da mãe, do pai, do filho dirigida a Deus). A marcha final, com vivos e mortos de mãos dadas, é, a meu ver, um momento de aceitação de tudo isto, logo, um poderoso hino à vida. É que a criança que morre é, como Job, a "boa" do filme, algo que a justiça dos homens não compreende, mas que é parte da vida, isto é, parte fundamental da nossa existência/insistência.

"The Tree of Life" não é um filme cristão, pois, mais do que isso, é um filme transcendente ou, essencialmente, Re-ligioso. Malick aceita a graça - a mãe - mas também encontra beleza, uma "necessária" beleza, na implacabilidade (se calhar, pouco cristã...) da Natureza - o pai. Não é espantoso que o universo nasceu de explosões, cinzas e caos? O universo nasceu da destruição e continua a constituir-se e a progedir, mesmo no mais microcósmico dos "ciclos de vida", alimentando-se desse "fim" - como uma experiência de luto em contínua renovação. Fica a ressoar no espírito de quem quis ver e ouvir este monumento malickiano uma oração, que começa assim: celebremos, "sem culpa", o Fim como geração de vida algures no espaço... de uma árvore, quem sabe.

Melhor realização: Terrence Malick. Por todas as razões já expostas e que se seguem, no próximo prémio.

Melhor plano: Frammartino em "Le quattro volte". Aqui, muito sinceramente, apetecia-me responder "todos os planos de "The Tree of Life", da "dança dos pássaros", passando pela "dança da mãe" (pelo ar... como um pássaro? Não, como uma borboleta...), ao plano invertido das sombras das crianças que brincam sobre o asfalto..." O filme de Malick é uma obra-prima cinematográfica de uma pureza e transcendência visual que não cabe num plano isolado. Por isso mesmo, escolho o magnífico plano-sequência, ou melhor, o magnífico plano-sequênciaS de "Le quattro volte", que tem o cãozinho, que atrapalha a procissão romana, como denominador comum, uma espécie de pêndulo que entrecruza, num curto percurso, várias pequenas narrativas. Só visto, porque parece um milagre.

Melhor actor: Peyman Moaadi ("Uma Separação") em ex aequo com Albert Brooks ("Drive"). O rosto marcante do excelente filme de Farhadi é, talvez ao contrário do que seria de esperar, o do pai, interpretado por Peyman Moaadi, com uma sinceridade e naturalidade comoventes. Albert Brooks, por seu lado, é a mais arrojada "solução de casting" do ano; ele que interpreta o cruel, mas ao mesmo tempo "compreensivo" vilão de "Drive", lançando assim vinagre sobre uma carreira feita de personagens bondosas e docemente "passivas" (vide, por exemplo, "Lost in America" ou o genial "Broadcast News").

Melhor actriz: Anabela Moreira ("Sangue do Meu Sangue"). O pódio é dela e só dela. Foi a interpretação mais exigente do ano, de uma entrega "com o corpo" que não vemos habitualmente no cinema - só talvez nas personagens femininas de Lars von Trier. Já a tínhamos destacado em "Mal Nascida", mas aqui consegue a proeza de sobressair, com grande mérito, num dos elencos mais fortes do ano.

A revelação: Susana Sousa Dias. Foi tirar do baú as imagens do Portugal sombrio de Oliveira Salazar, da PIDE, do terror e do trauma. As imagens dos rostos "encarcerados" da Resistência sobrepõem-se em camadas de memória (repressivas, reprimidas), revelando - e o termo certo é mesmo revelar - a dimensão aurática da imagem fotográfica, que Benjamin fala n'"A Pequena História da Fotografia". Com "48", Susana Sousa Dias ensaia sobre o poder extraordinário que as imagens desse Portugal irreconhecível conferem às suas vítimas: o poder de lembrar e, mais importante, o poder de esquecer. Por um lado, as fotos despertam narrativas que estavam adormecidas; por outro lado, só essas fotos conseguem libertar as histórias de quem as viveu (o narrado passa a narrador). É um aprisionamento NA imagem que é seguido de uma libertação do encarcerado DA imagem. Uma cartarse histórica, que Susana Sousa Dias inicia (des)assombradamente.

A desilusão: David Cronenberg ("A Dangerous Method"). É Cronenberg a reprimir Cronenberg, isto é, a deixar de fazer psicanálise para passar a se constituir como objecto de psicanálise. Uma "psicose autoral", uma egomania snobe, talvez decorrente de uma qualquer crise de meia idade consubstanciada num career move mais estratégico do que estético: ao se constituir como um realizador à americana, à moda antiga, deixará de queixo caído quem viu no seu cinema a mais expressiva "exteriorização de uma interioridade". Agora temos o auto-referencial e muito "caro" processo inverso: tudo o que se exteriorizava é agora interiorizado, para ser detectado "à superfície" com pinças e uma lupa - pasmem-se se quiserem, Cronenberg agora é MESTRE! Resulta daqui o seguinte: o novo Cronenberg é cinema de género para as massas - e funciona! - e trabalho de crítico erudito (subtextual) para as elites - e, pelos vistos, também funciona! Eu, pela minha parte, não tenciono fazer parte deste jogo tão demagógico quanto reaccionário.

(Subtileza, subtileza... a palavra parece marcar presença em quase todos as críticas entusiastas deste filme de Cronenberg, mas só vejo subtileza no seguinte: o filme sobre os pais da psicanálise é o menos psicanalítico filme de Cronenberg, ou só é psicanalítico na medida em que faz do filme e do seu realizador um caso de psicanálise: por que adapta Cronenberg esta história agora? Não está Freud e o surrealismo e os complexos de édipo e castração devidamente latentes em toda a sua obra? Cronenberg adapta esta história para mostrar que consegue falar de Freud sem ser freudiano, sem ser "cronenberguiano"! Quem se seguirá no futuro próximo: um Kafka não kafkiano? Brilhante! Subtil!, dizem... Subtileza mole e indolente, acrescento eu.)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Os melhores de 2011

Não vou referir "Killer Joe" de William Friedkin (melhor filme que vi no último Lisbon & Estoril Film Festival), "Bummer Summer" de Zach Weintraub (melhor filme que vi no último IndieLisboa), "Twenty Cigarettes" de James Benning e, sobretudo, a obra-prima "O Nosso Homem" de Pedro Costa (os melhores filmes que vi no último DocLisboa). Um punhado de excelentes filmes que talvez tivessem lugar assegurado num top do ano, mas que, por não se terem (ainda) estreado comercialmente em Portugal, excluo para não misturar alhos com bugalhos.

Noto, comparando com o top do ano passado, que nesta selecção não aponto nenhum "direct-to-DVD", algo que fazia, por duas vezes - mas até podia ter feito por mais vezes -, na lista de 2010. Trata-se de um sinal positivo quanto à qualidade dos critérios de selecção das nossas distribuidoras, que melhorou substancialmente em relação a 2010. Ainda assim, filmes de Claire Denis ("White Material"), Todd Solondz ("Life During Wartime"), Anh Hung Tran ("Norwegian Wood") ou, sobretudo, Greg McLean ("Rogue") talvez merecessem uma estreia em sala, mas, como digo, podia ter sido bem pior. Contudo, critico, com severidade, os responsáveis pela decisão de limitar geograficamente a distribuição em sala de filmes como "Restless".


1. "The Tree of Life" de Terrence Malick


2. "Restless" de Gus Van Sant

3. "48" de Susana Sousa Dias

4. "The Ward" de John Carpenter

5. "Bal" de Semih Kaplanoglu

6. "Loong Boonmee raleuk chat" de Apichatpong Weerasethakul

7. "Le quattro volte" de Michelangelo Frammartino

8. "Jodaeiye Nader az Simin" de Asghar Farhadi

9. "Sangue do Meu Sangue" de João Canijo

10. "Le gamin au vélo" de Jean-Pierre & Luc Dardenne

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A tabuada e o espírito: RTP2, Sheet TV



Apetece-me falar da aparição televisiva do autor da série de livros "O Reino" e "O Bairro" por dois motivos.

Primeiro, porque a intervenção pública de Gonçalo M. Tavares é uma verdadeira intervenção pública. E proponho, desde já, que se faça uma limpeza completa da palavra intervenção e que se lhe vistam roupas novas e lavadas. É que, felizmente para nós, humanidade, pessoas pensantes e agentes deste mundo, não é só a Troika e os deputados da nossa Assembleia que fazem intervenções. Ainda há massa cinzenta e ideias que fervilham na cabeça dos que resistem ao regime totalitário, intelectualmente terrorista, imposto dia-a-dia pelos nossos media e classe política.

Segundo, porque no debate Cinema na RTP2 o cineasta João Mário Grilo silenciou a zombaria grosseira do senhor Jorge Wemans. O director da RTP2 iniciou a sua muito antecipada "intervenção" descredibilizando, desde logo, o título da nossa causa, referindo-se especificamente, e com uma certa soberba, à palavra "regular" como um lapso semântico da nossa parte. João Mário Grilo contra-atacou magistralmente separando as águas entre aquilo que deve ser entendido como "coisa regular" (uma realidade estatística, uma coisa que se repete quantitativamente) e uma "regularidade" (algo que, repetindo-se, gera uma certa "identidade", um hábito, uma cultura, o que quiserem chamar...). Wemans falava "de cor" da sua tabuada, Grilo elaborava sobre os assuntos do espírito.

Concordo com esta visão e reconheço que ela também presidiu à formulação do título da petição. Mas quando falámos numa "programação regular" também falámos de uma "coisa regular". É que, como não tive oportunidade de dizer, a RTP2 não é tão constante quanto leva a crer na sua programação de cinema. Por vezes, nomeadamente, em épocas festivas, a RTP2 volta a passar filmes diariamente. Esta semana, por exemplo, o canal de Wemans celebra o cinema de Burton; depois, passa 5 filmes de Almodóvar, mas... e depois? Depois, se quiser manter a coerência da sua política de programação ao longo destes anos, Wemans voltará a dar-nos cinema como quem dá pão a pombos, na sua Sessão Dupla de sábado. Talvez se distraia e nos dê mais uns filmitos ou uns documentáriozitos aqui e ali, "salpicados pela semana", antes da crucificação (da Páscoa).

Estamos, aqui, a falar do espírito, ou ausência dele, da tabuada atabalhoada de um tecnocrata chamado Wemans, homem que intervém no seu canal um pouco como a Troika intervém no país: com balancetes, balanços, déficits... folhas e mais folhas de estatística e uns quantos powerpoint a debitar "perspectivas de negócio". Mas, lamentavelmente, com pouco ou nenhum discurso que transforme a rude opacidade da Folha de Cálculo (sheet). O corolário de tudo isto é ainda termos, hoje, uma televisão pública cativa do fascínio de uns quantos senhores pela "ciência" estupenda da audimetria, loucos amantes de exercícios muito criativos e imaginativos de quantificação da sua programação pouco imaginativa e pouco criativa.

Ouçamos Gonçalo M. Tavares e ouçamos especialmente bem o que envolve o sentido das palavras que citamos em epígrafe.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Recorte de falas (XII): Isto Não é um Filme

"Isto Não é um Filme" (2010) é um dos grandes títulos deste ano de cinema. E é também dos mais exactos: de facto, não é filme nenhum este documentário sobre os dias de prisão domiciliária de Jafar Panahi - condenado pelo Estado iraniano a uma pena que poderá ir até aos 6 anos de prisão e até 20 anos de interdição de filmar. Quer dizer, não é o filme que Panahi quer que ele seja: a concretização "in door" do último argumento que escreveu e que acabou rejeitado.

(Esta expressão do cinema como necessidade mais do que criação galvanizante e egotista faz-me lembrar um dos momentos mais extraordinários da história do cinema, sendo que também esse momento não é um filme. Orson Welles, depois de ficar sem os negativos da sua adaptação de "O Mercador de Veneza", vai de carro para o cimo de uma montanha isolada do mundo para ler, de frente para a câmara, os diálogos finais do grande clássico de Shakespeare. Estas preciosas e raras imagens foram incluídas num dos melhores documentários sobre o realizador de "Macbeth": "Orson Welles: The One-Man Band".)

Mas voltando ao que nos traz: cedo o realizador iraniano se apercebe da impossibilidade de "recriar" o seu filme usando só fita adesiva para marcar o espaço sobre um tapete e a ilusão "dogvilleana" dos objectos e das pessoas. Ele diz algo para todos aqueles que insistem, de forma particularmente ignorante, na ideia de que um bom filme é a tradução simples de um bom argumento. Que um bom argumento faz um bom filme e que, por isso, o argumentista é mais do que essencial - uma espécie de "política de autor" aplicada aos homens que escrevem. Esta ideia é partilhada por alguns "auto-denominados" cinéfilos, mas também por muita gente que "usa" o cinema como distracção e que, por sistema, descreve um filme a outra pessoa contando a sua história. Depois o outro dir-lhe-á que "não, não vi esse filme". No meu mundo ideal, uma pessoa - qualquer que ela seja - identifica a outra um filme descrevendo um plano, um gesto de uma personagem, um décor... e não contando anedoticamente a sua estória...*

Jafar Panahi: Se os filmes se contassem, não se faziam.


* - "Epá, este é aquele filme com o Jack Nicholson, em que ele rouba a identidade a um tipo e depois anda em fuga pelo deserto, com uma gaja... Sabes?". "Não estou a ver. Acho que não vi esse". OU, numa versão "mundo ideal": "Epá, este é aquele filme com aquele plano-sequência final que dura vários minutos, em que a câmara atravessa como que por magia uma grade". "Ah, sim, sim: "The Passenger" de Michelangelo Antonioni."

domingo, 18 de dezembro de 2011

Jodaeiye Nader az Simin (2011) de Ashgar Farhadi


"Uma Separação", filme que parece ter ganho tudo o que tinha para ganhar em matéria de festivais (o Urso de Ouro é o mais sonante prémio arrebatado) e ter reunido um consenso extraordinário junto da crítica internacional, chega às nossas salas, em vésperas de fim de ano, com a promessa de baralhar as contas dos balanços e balancetes que, por estes dias, divertem o espírito dos cinéfilos nacionais.

E baralha? Baralha, efectivamente. "Uma Separação" é um filme feito essencialmente de três elementos: uma escrita subtil, inteligente, profundamente equilibrada - sem histerismos - ou "formatações" melodramatizantes; uma câmara invisível que nos imerge suavemente na acção, aparentemente sem grandes compromissos diegéticos - à boa moda neo-realista, a câmara pode ou não apanhar algo "relevante", pode ou não "apanhar" uma história, mas isso não é de todo uma coisa certa -; e, por fim, um trabalho de actores, masculinos e femininos (premiados colectivamente em Berlim) que, este ano, apenas se poderá comparar a "Sangue do Meu Sangue".

Aliás, é curioso surgir nestas linhas o último excelente filme de Canijo, na medida em que, apesar de partilharem no geral as mesmas intenções realistas, o filme de Farhadi constitui, em certa medida, uma alternativa no que aos dois primeiros elementos acima citados diz respeito. "Uma Separação" não "procura o drama", não se formata classicamente nos três actos, como Canijo faz em "Sangue do Meu Sangue", filme ainda tomado pelo projecto (quase teorizante) sobre o trágico português, obra com uma pulsão neo-clássica que resiste, muitas vezes, ao projecto realista tout court. Se a escrita é feita de subtilezas e momentos quase invisíveis, a câmara de Farhadi acompanha essa suavidade, ao se diluir nela - e o processo de diluição não é processo nenhum, porque entramos em "Uma Separação" como quem entra pela porta escancarada da sua própria casa.

Farhadi é iraniano. Em termos cinematográficos, isso faz, desde logo, toda a diferença. Como notava Rafi Pitts, outro excelente novo cineasta vindo de Teerão, a poesia está no sangue dos artistas persas, muito por causa, aliás, de uma instituição milenar no Irão chamada Censura, que não é, entenda-se, uma invenção recente de um qualquer regime autocrático comandado por um louco. Farhadi, como aliás Kiarostami, por exemplo, não expõe o "país político" na sua literalidade - isso seria demasiado fácil e seria, aliás, anti-natura para o espírito tradicional mas não necessariamente tradicionalista do "poeta persa". O que Farhadi faz, inteligentemente, sem sair do microcosmos familiar - a grande "célula tradicional" da sociedade, apetece acrescentar, de qualquer sociedade, vide de novo o último Canijo - é tocar nas diferentes camadas que dimensionam, em toda a sua complexidade, a vida iraniana. E o que está mais próximo da vida do que a vida vivida, o fluxo contínuo, "levemente" acidentado, do quotidiano? "Uma Separação" não podia ser um filme só sobre "uma separação"; tinha de ser - ao mesmo tempo - uma obra sobre as causas e efeitos dessa separação e sobre essa separação como um processo não só judicial, mas também religioso, social, cultural e - não esquecer - afectivo. Claro que, como bem demonstra Farhadi, qualquer uma destas dimensões engole as demais: por exemplo, fica claro como o processo social engloba o cultural e o religioso ou o processo afectivo engloba o judicial ou o processo judicial engloba o cultural ou até o religioso. Exemplos?

Sociedade e religião. Atente-se no momento em que a empregada, recém contratada, se vê deparada com uma situação do "dia-a-dia", para o caso, uma tarefa laboral que precisa de uma resposta sua, mas para a qual esta se petrifica pela eventual heresia que constitui - à luz das Leis do Corão. Limpar as partes baixas, sujas de mijo, de um idoso que sofre de Alzheimer. A mulher, muito devota, recorre a um número de assistência religiosa para saber se é ou não é pecado "ver ou tocar" no idoso. O problema resolve-se - naturalmente e sem "histerismo denunciante" - mas Farhadi expõe neste momento um dos embates diários do Irão contemporâneo: o social é o idoso, homem que padece de uma grave doença degenerescente com nome estrangeiro (moderno), o religioso é a empregada devota que não sabe ao certo se pode desempenhar as funções para a qual se candidatou à revelia do marido, figura ainda tutelar no Irão (ups, já estamos no social outra vez...porque, como ficamos a saber, a mulher tomou a iniciativa de ir trabalhar, devido à situação laboral, muito precária, do seu marido).

Outro momento, ainda mais significativo no filme, que resume, e que na realidade vai mais além, o confronto entre sociedade e religião é aquele em que o protagonista pede à mulher devota para jurar sobre o Corão "algo que não está certa ter acontecido".

Sociedade, religião e justiça. Naquele momento, tudo depende do juramento religioso: o marido ficará com o dinheiro do protagonista e pagará as suas dívidas; o protagonista e a sua família fica, por sua vez, cientes do grau de certeza da "queixosa"; e a alegada "vítima", a empregada devota, entenda-se, sobe, enfim, para o último degrau do "processo social e judicial" iniciado: precisamente, o degrau do Corão, pilar ético e moral que serve de regulador último de uma espécie de "economia da verdade", que, bem visto, existe, tem de existir, em qualquer sociedade no mundo. A questão da verdade, da mentira e do segredo abre outro subcapítulo nesta história.

Sociedade, religião, justiça e cultura/educação. A filha do protagonista é a personagem mais arguta delas todas. Percebemos isso logo quando o pai, acabado de se separar, pergunta qual o "programa certo" da lavagem da roupa. Ela responde: deve ser o quatro, porque as letras no botão estão mais gastas. Fica claro aqui que ela mais do que o clássico elemento que está "entre" o casal, elemento passivamente disputado numa situação de divórcio; fica claro, digo, que ela é a grande "reguladora" desse conflito, potencial mediadora e "negociadora" do mesmo. E é neste papel de "negociadora" que a rapariga introduz o tema da verdade para lá do domínio religioso e judicial: quem mente, quem diz a verdade nos "processos em curso"? O que significa mentir no quadro da sua educação altamente zelosa e proba, proporcionada pelo seu empenhado pai e a sua mãe, professora de profissão? O que significa confessar uma mentira para defender os assuntos do coração, para defender "os seus"? É pecado, é justo, é correcto? A ordem de prioridades, nesta rapariga que pertence a um meio social totalmente diferente da empregadita devota, é radicalmente outra: primeiro importa saber se, objectivamente, é correcto mentir (plano cultural e afectivo); depois se é justo mentir (plano judicial); e, talvez em último lugar, se é pecado mentir (plano religioso). A ordem é diferente, mas a ordem é a mesma - e é essa ordem, mais latamente moral, que liga a família rica e culta à família necessitada e ignorante.

De tal maneira é a mesma, de tal maneira é diferente, que a rapariga descarta facilmente a questão religiosa da mentira para se comprometer silenciosamente com o pai num pacto "judicialmente corrompido", mas afectiva e culturamente "correcto": mentirei por ti, porque és meu pai, porque sei que és bom, porque sei que me amas e porque sei que te amo (A empregada devota acaba por não conseguir descartar a dimensão que encima a sua ordem de valores: a dimensão religiosa. Por isso, recusa-se a prestar juramento. Por isso o "castelo de cartas" desaba.) Não tenho dúvidas que é nesse momento - nesse compromisso na e pela mentira "correcta" - que a rapariga fortalece ainda mais o laço com o pai; e é também a partir daí que a sua mãe, detentora de todas as "verdades", se torna um elemento "distante e estranho".

A resolução - passada no tribunal - é deixada ao espectador, que, com a sua muito particular - ou não - ordem de valores, tomará a decisão correcta, mais justa e mais pura. Aliás, com todas as certezas, tomá-la-á assim mesmo ou, antes, por uma outra ordem. Uma coisa fica clara: este filme sobre "uma separação" demonstra que, na vida, não há separações absolutas, isto é, nada aparece separado do resto. E é entre o nada - da vida vivida - e o resto, que é tudo, do Irão contemporâneo que se estende, em silencioso ziguezague temático, dramático e ideológico, este portentoso filme de Farhadi.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Muito cá de casa: balanço caseiro do ano

Ok, façamos daquele post, que conta hoje com perto de um ano de existência, uma tradição neste espaço. O que mais me marcou caseiramente, neste ano de 2011? A pergunta não é pouco relevante quando dirigida a quem colecciona filmes, a quem não negaria em interrogatório judicial que também os saca - sobretudo os que não se conseguem arranjar de outro modo -, a quem os aluga ou requisita sempre que pode e a quem grava da TV ainda mais... Ora bem, o que ficará de 2011?

Benning

Up you go, little smoke.
Up you go, little smoke.
Up you go, little smoke...

Jack Kerouac in "Pull My Daisy" (1959)

Enquanto não arranjo a única edição disponível no mercado deste cineasta maior, tenho de me contentar com algumas descobertas "à margem da lei", que merecem, por vezes, uma certa arqueologia on-line, devido à sua extrema raridade - ouviste Criterion? De qualquer modo, Benning, que já me tinha marcado o ano de 2010, volta a deixar "mossa"* neste 2011: é que "One Way Boogie Woogie/27 Years Later", "Utopia", "Deseret", "RR" e "11 x 14" e, claro, "Ten Skies", bem como (fora de casa, no DocLisboa) "Twenty Cigarettes", são objectos únicos que fazem do "aparentemente" insignificante ou do "aparentemente" informe (as nuvens, o fumo, da indústria, do cigarro, do comboio, da memória...) pontos de partida para um dos mais desafiantes universos estéticos. Benning é, posso dizer (posso?), a melhor coisa que aconteceu ao cinema americano nos últimos 40 anos.

*- um aparte: cuidado com os correctores automáticos, que eles têm o poder de transformar uma "mossa" numa "moça". Por muito que faça sentido, não devemos cair na esparrela.

O Blu-ray de Luxo
(Douglas, Erice, Kieslowski e Powell/Pressburger)



Estes dois stills deslumbrantes - imaginem um filme só com imagens desta potência - pertencem a "Comrades", uma das grandes descobertas deste ano de cinema aqui por casa. Não direi que Bill Douglas seja uma descoberta de 2011, porque não é - já conhecia a sua "trilogia da infância", que passou na cinemateca há coisa de um ano. Contudo, "Comrades" é "a obra" de Douglas; a sua única longa-metragem, que dura perto de 3 horas, desenrolada no século XIX, e que acompanha o nascimento e dissolução trágica do primeiro sindicado laboral, no Reino Unido. As referências ao pré-cinema, uma magia itinerante mais ou menos circense, feita de efeitos rudimentares de luz e jogos de sombras, fazem de "Comrades" também um dos mais fascinantes filmes sobre as origens da Sétima Arte.




Portanto, "Comrades" é um dos filmes ideais para se fazer o update para o Blu-ray, tal como o são "El espíritu de la colmena" ou "La double vie de Véronique" ou o clássico intemporal "The Red Shoes", precisamente, os discos em "alta definição" que mais me iluminaram a alma por estes tempos. O que coincide com a obra rara de Douglas é que os filmes de Kieslowski e as revisitadas obra-primas de Erice e Powell/Pressburger também nos devolvem a um fascínio primordial pela imagem cinematográfica; o mundo de Frankenstein que deixa a criançada de queixo caído pertence ao mesmo reino da magia e sedução de Véronique/Weronika e o seu mundo num berlinde ou num teatro de fantoches, tal como estes dois podem rimar com os palcos encantados e encantatórios de "The Red Shoes". Mundos que cabem, por exemplo, na exibição do Diorama, magnífica!, no filme de Douglas, a quem aqui faço uma vénia e presto homenagem.

Scénario du film 'Passion'


Ainda não o revi, mas parece-me que é um dos filmes mais relevantes de Jean-Luc Godard: um dos mais desassombrados e luminosos do período pós-Maio de 68, mas, não desmereçamos o Godard vídeo-ensaísta da fase Miéville e além, "Scénario du film 'Passion'" é também uma das maiores obras-primas do cineasta francês, ponto final. Bergala diz que deve ser o mais franco filme sobre o processo de criação e eu tenho de concordar, mas acrescento isto: este humildemente intitulado filme é o mais portentoso escancaramento de portas para o universo de Godard. Se há "manual" para se perceber como é que Godard trabalha e constrói os seus filmes - redes de conceitos como bem apontava Deleuze - então este é "o filme". Dito de outro modo: "Scénario du filme 'Passion'" pertence àquela categoria de filmes que nos levam a uma revisão e reavaliação de toda uma obra.

Lionel Rogosin


Já tinha lido sobre ele, mas só o descobri verdadeiramente no início do ano, graças a uma edição excelente da Carlotta Films. Sei agora que os seus filmes vão sair em Blu-ray nos States ao longo do próximo ano. É uma grande notícia para os cinéfilos, porque Rogosin é, provavelmente, o mais importante cineasta esquecido dos anos 50/60 na história do cinema norte-americano. Cassavetes referi-o como uma das suas principais influências, ao lado de Morris Engel e Shirley Clarke. Com efeito, Lionel Rogosin fez três filmes de uma pungência fora de série.
"On the Bowery" só pertence ao seu tempo porque houve uma confluência extraordinária de talento e visionarismo da parte de quem o fez. Ele é o extremar do projecto neo-realista, brutal imersão na realidade escondida do bairro problemático de Nova Iorque, atacada pela delinquência, alcoolismo e droga. Rogosin trabalhou in loco e com "restos humanos" - rezava todos os dias para que membros do cast não morressem, de repente, de cirrose ou outra degenerescência provocada por uma vida miserável corroída por vícios vários. Meteu "política e sociedade" na agenda de Hollywood, porque "On the Bowery" despertou a consciência americana para um país que a "indústria dos sonhos", muito autisticamente, escondia como poeira que se varre para debaixo do tapete. O tapete foi levantado e Rogosin foi o primeiro a lançar a poeira para os olhos do espectador. Desconfortável? Ainda não viram nada...



Depois foi para a África do Sul fazer o mais brutal - e, curiosamente, o primeiro - filme anti-apartheid: "Come Back, Africa". O exercício, novamente de inspiração neo-realista, foi seguramente uma lição de cinema para os futuros pontas-de-lança do "cinema moderno", à cabeça, Jean Rouch. Depois, nos anos 60, Rogosin volta a tocar na ferida e arranca o espectador "de consciência tranquila" da sua zona de conforto com uma das mais chocantes e truculentas "farsas" contra a guerra nuclear: "Good Times, Wonderful Times". Estamos num cocktail londrino, só com very important people, mas percorremos, no "arrepio" de uma montagem alternada terrível, toda a história de horror e destruição da Europa e do mundo no século XX. E aqui, prepare-se, espectador incauto, volta a não haver "cedências". Come back, Rogosin.

Terra em Transe


Glauber Rocha, cineasta político de Resistência, aliás, cineasta que fez da Resistência uma estética e uma política em si mesmas. "Terra em Transe" não será o seu filme mais adorado, talvez não seja aliás, o seu filme mais "aventureiro" - esse é "A Idade da Terra" -, mas é, para mim, a sua obra-síntese, quase perfeita. Filme que explora a natureza paradoxal do poder político, a sua dualidade moral, diria, intrinsecamente "terrorista". E fá-lo contando a história de um homem, jornalista de profissão, "entalado" entre duas vias e que, numa via sacra de dúvida, acaba por apenas confiar na sua solidão. A terceira via é a via do "guerreiro solitário", que em "Terra em Transe" é uma espécie de António das Mortes de colarinho branco, usando uma imagem (mui retórica) sacada do universo peculiar de Glauber Rocha. O exotismo está na palavra de ordem: esgotadas as possibilidades, há-que resistir ao irresistível, combater o que nos ultrapassa, destruir o indestrutível. Definitivamente, coisa pós-faustina.

La cicatrice intérieure


Finalmente em DVD! "La cicatrice intérieure", se quisermos evitar a etiqueta "o projecto avant-garde mais relevante dos anos 70" (para além
do já acima citado "11 x 14", claro), dizemos, rapidamente, que é errância ultra-sensualista/sensorial, obra paisagisticamente "despida" pela câmara de Garrel e pela música de Nico. Quando se ouve "My only child", percebe-se o significado disto tudo. E o "tudo" deste pequeno filme de 60 minutos oferece-se, agora, em imagem cristalina. Baixem as vossas resistências e (re)descubram-na/sintam-na com olhos de ver, de "ouver". "My only child be not so blind/See what you hold/There are no words no ears no eyes/To show them what you know".

Mouchette


Falha estúpida minha, que colmatei este ano graças à Criterion - saúdo, contudo, a RTP2 e o seu magnífico double bill, duro e belo, "Mouchette" mais "Au hasard Balthazar". É provável que não haja Bresson que melhor deixa contaminar o seu preto-e-branco "acinzentado", liso, árido, com a atmosfera psicológica que rodeia a sua personagem-mártir, mais uma, não, "a personagem-mártir", Mouchette, frágil como a poesia, existência mastigada pela vida... antes da (sua) morte, momento que dilacera o coração e agride o espírito daqueles que ainda vivem de esperanças terrenas... Triste, duro, mas infinitamente belo. E, por isso, foi o meu visionamento mais forte de 2011.

Bring Me the Head of Alfredo Garcia


Cinema com muchos cojones. Mas não só. "Bring Me the Head of Alfredo Garcia", prenda "envenenada" que a TCM me deu no início de 2011, é o "excesso obsceno peckinpaniano" revolvido por uma mise en scène perfeita, de controlo absoluto sobre os lugares das coisas na história e da história nas personagens - e não o contrário. Filme perfeitamente consciente da sua quase insustentável dose de iconicidade e desbragada virilidade, que funciona - e como funciona! - porque "aguenta" elegantemente o excesso de tudo.

O noir do ano


Houve alguns concorrentes de peso, como "Naked City" de Jules Dassin, "Le quai des brumes" de Marcel Carné ou - se considerarmos um "noir" - "Fallen Idol" de Carol Reed, mas a escolha recaiu sobre o filme maior e mais perfeito - perfeitamente imperfeito - de Edgar G. Ulmer, o clássico série B, pai do "noir do pós-guerra" americano, "Detour". Filme a 200 à hora - o ritmo de produção de Ulmer em estado puro, portanto - que condensa todos os ingredientes do melhor "noir". É "destravado", mas, por isso mesmo, aliás, brilhante de uma ponta à outra. Pare aqui, estenda o polegar e deixe-se levar pela boleia.

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