quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Ligação directa à pala de Walsh (II)


Continuamos num bom ritmo de publicação aqui, neste nosso site vizinho. Pela parte que me toca, escrevi o segundo número da minha crónica Civic TV, sobre o estado geral da programação de cinema na televisão nacional, recuperei uma empresa estranha entre Mann e Stroheim, limpei o pó à raridade "The Quiet One" de Sidney Meyers e James Agee e dei uma perninha nas rubricas colectivas, aqui e aqui. Em foco, antecipei com o Ricardo Lisboa (o editor do próximo mês) as suculentas estreias em Veneza.

Algumas novidades estão a ser preparadas para o próximo mês, destacando-se o avolumar da família à pala de Walsh, com a constituição de uma muito promissora equipa de colaboradores (em construção aqui).

Adenda: por falar em colaborações de luxo, não perca a acabadinha de publicar entrevista a Jonathan Rosenbaum realizada pelo Miguel Domingues.

Autópsia* a um hospital

"Hospital" (1970) de Frederick Wiseman

"Szpital" (1977) de Krzysztof Kieslowski

* - Tal como nos lembra um filme muito duro de Brakhage, autópsia, do grego auto + opsis, significa "a acção de ver com os próprios olhos". Nestes dois casos, proteja a mente e veja um hospital através deles.

sábado, 25 de agosto de 2012

Contra o fim da RTP2


Em português temos a muito feliz divisão entre "o que é" e "o que está". A RTP2 "que está" não pode ser confundida com "o que é". Penso que isso tem sido bem traduzido nas redes sociais, onde só tenho apanhado recuperações de imagens, símbolos, programas e experiências do segundo canal anteriores, bem anteriores, ao segundo canal que tem "estado" sob ocupação da actual direcção.

Hoje passa cinema no segundo canal das 22:42 até às 05:35. Como sempre fiz, a título pessoal e em nome da Petição pelo Regresso da Exibição Regular de Cinema à RTP2, peço para usufruírem desta maratona, servindo este canal de audiências numa área em que tinha obrigação de prestar mais e melhor atenção.

Como é óbvio, não defendo a extinção do segundo canal, isso seria confundir o "ser" com o "estar". As 3000 pessoas que apoiam a nossa causa amam "o que é", gostam menos de "o que está". Por isso, não haverá segmento da população que se sentirá mais atingido pela extinção deste canal com um passado tão querido na formação cultural e cívica dos portugueses.

Por tudo isto, apoio iniciativas como esta ou esta. E também por tudo isto me irei demitir de fazer o choradinho retórico, amnésico e acrítico, em torno das maravilhosas "migalhas" que a estação de Wemans nos oferece hoje. Isto é: não me verão a relativizar o "que é" a RTP2 em favor de "o que está". A RTP2 foi criada em 1968, há uma história e muita memória boa a respeitar.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Afinal, vou mesmo ver em sala...


Boa notícia. Não é ainda "a estreia comercial de um Ti West em Portugal", mas é a estreia do mais recente Ti West no próximo festival de horror de Lisboa MOTELx. Passará no dia 15 de Setembro (sábado), às 00:00, na sala 3 do mítico São Jorge. Imperdível, quase tanto quanto o resto dos filmes em cartaz neste excelente festival de cinema.

Listas individuais da Sight and Sound (III): as escolhas internacionais

"Wanda" (1970) de Barbara Loden

Vistas que estão as escolhas nacionais, sugiro passar rapidamente os olhos por algumas escolhas de especialistas internacionais. Aqui pus em destaque os nomes que, logo à partida, me despertaram maior curiosidade. O primeiro, pela sua bizarria, que gostava de mencionar nestas linhas é o filósofo esloveno Slavoj Zizek. A sua lista está para o top final da Sight & Sound um pouco como a pintura da Sra. Cecília está para o agora famoso "Ecce Homo" que tentou "restaurar". O "mau gosto" é, contudo, assumido, já que o critério adoptado foi só seleccionar "guilty pleasures". Ainda assim, um grande filme como "Fountainhead" de King Vidor sobressai notavelmente, na medida em que merece aqui o seu único - e justíssimo - voto em toda a sondagem.

De resto, temos um western menor, recentemente "refeito" (a meu ver, com sucesso) por James Mangold, o fracassado "Dune" de David Lynch, o bem piroso "The Sound of Music", o falhado "On Dangerous Ground" de Nicholas Ray e Ida Lupino, o esquecido (mas excelente) "Nightmare Alley" e... bem, a partir daqui a coisa desce ao nível do espalhafatoso e entediante "Hero" e, agarrem-se bem!, "Hitman", thriller político de acção realizado por um tal Xavier Gens - adaptação quase intragável de um jogo de computador com o mesmo nome. Não falo dos restantes, que não vi, mas fica aqui pintado uma espécie de "cristo de Slavoj Zizek" que a Sra. Cecília não precisava de "restaurar".

Fora a bizarria mais ou menos assumida por Zizek, destaco a lista de Adrian Martin, não tanto pelos filmes - alguns deles admiro muito, um ou outro ainda não vi, mas fiquei com vontade de ver... - mas pelo critério que engenhosamente "tirou da cartola" para responder a desafio tão difícil. O crítico australiano decidiu nomear apenas filmes que viu nos últimos dez anos, fazendo assim um refresh total em relação a exercícios anteriores.

Na sua lista há um título, que gosto muito, e que também consta do outro top que queria destacar aqui: "Wanda" de Barbara Loden, um dos filmes melhor recuperados dos últimos anos. Também gosto de ver no top de Ray Carney "Killer of Sheep" e um dos meus filmes independentes norte-americanos preferidos do passado recente, "Old Joy" de Kelly Reichardt. Contudo, o critério adoptado por Carney é, na minha opinião, infeliz. O académico norte-americano decidiu só nomear filmes do seu país, diz ele, para reverter o mito  segundo o qual "nenhuma mulher ou homem pode ser profeta no seu próprio país". Já acho muito discutível que os portugueses sondados tenham referido filmes nacionais, agora, assumir esta espécie de visão imperialista ou totalitária da história do cinema parece-me ainda mais questionável, ainda para mais, vinda de um académico...

Como grande admirador dos vídeo-ensaios ou vídeo-apresentações que Tony Rayns tem feito para a editora britânica Masters of Cinema, registo na minha "wish list" cada título asiático por ele referenciado. Fiquei especialmente a salivar por um filme com o título bem expressivo "Textism" de Hirabayashi Isamu, que, segundo Rayns,"stands for a vein of iconoclastic avant gardism that stretches from Robert Florey to Kenneth Anger and Hollis Frampton." Também para amantes do cinema asiático, a lista de Chris Fujiwara constitui um contributo importante, citando um Naruse, um Ozu, um Mizoguchi e o mais recente, e muito bom, "Memories of Murder" do sul-coreano Bong Joon-ho.

Mais tops mereceriam destaque, mas penso ser importante deixar o que sobra à descoberta do leitor. Não quero é fechar este assunto sem apontar algumas ausências que tenho como significativas: David Bordwell, Jacques Rancière, Jacques Aumont, Michel Marie, Stanley Cavell, Serge Toubiana, Andras Balint Kovács, Antoine DeBaecque, Alain Badiou e Louis Skorecki. Não foram convidados? Recusaram o convite?

Também aproveito estas linhas para corrigir um mal-entendido que não é da minha responsabilidade e que é devidamente rectificado no site da Sight & Sound: pelos vistos, as listas foram alojadas com os títulos dispostos alfabeticamente e não na ordem de valor fixada por cada votante, logo, não é correcta a observação que faço em relação ao Ozu ("An Autumn Afternoon") na lista de José Manuel Costa.

Entretanto, já foram tornadas públicas as listas dos realizadores. O nome de João Mário Grilo não faz parte da mesma, pelo que se confirma, na lista dos especialistas, uma ausência de peso (algo inaceitável, na minha opinião).

"É uma luz (...) que tem uma dinâmica interna que faz engendrar cores diferentes"*

"Samadhi" (1967) de Jordan Belson

"The Tree of Life" (2011) de Terrence Malick

* - Tirado daqui.

(In Hinduism, samādhi can also refer to videha mukti or the complete absorption of the individual consciousness in the self at the time of death - usually referred to as mahasamādhi.)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O fim da RTP2: pelo apuramento de responsabilidades


Vamos lá ver se não perdemos "a perspectiva" sobre a evolução desta história, a meu ver lamentável, em torno da privatização do segundo canal.

Quem a dirige há mais de quatro anos? Quem decidiu investir sobretudo numa programação infantil e desinvestir nas outras áreas culturais previstas no contrato com o Estado, como por exemplo no cinema, no teatro e na música? Quem cortou com o passado da estação e não ouviu, nunca ouviu, o seu público? Quem fez da RTP2 o "elo mais fraco" hoje, em tempos de horror à despesa e de obsessão pelo dinheiro? Quem fez da RTP2 um canal sem um público suficientemente convicto para sair à rua na sua defesa? (Os meninos e meninas de 5 e 6 anos, infelizmente, não deverão conseguir muito, agora que se anuncia o fim de tudo, ou conseguirão?)

Sim, a ideia de concessionar a RTP1 a um privado é uma não-medida ridícula - afinal, o problema não começa com "quem" a chefia, mas com "quem" fiscaliza o cumprimento ou não das obrigações de serviço público... e, já agora, "que serviço público?" - e sim, também acho que a orientação correcta é aquela que a RTP2 em tempos personificou, na realidade, que personificou durante a maior parte da sua existência. Contudo, e infelizmente a maioria cederá à diabolização simples deste executivo - e, logo, a culpa morrerá solteira, coisa que essa mesma maioria irá afirmar a plenos pulmões como se não fosse nada com ela... -, a história do fim da RTP2 tem como primeiro carrasco a sua actual e, pelos vistos, derradeira direcção. Na realidade, esta foi a coisa mais conveniente que podia ter acontecido a um governo que parece estar pouco preocupado em gizar uma hipótese séria de serviço público de televisão.

(Um dia a Dra. Paula Moura Pinheiro apelidou de "mal-entendido" uma causa que reuniu mais de 3000 cidadãos, pois eu agora digo que ela e a direcção de que faz parte é que nunca entenderam nem quiseram entender o que estava em jogo... Talvez agora fossem, pelo menos, 3000 a lutar empenhadamente pela sobrevivência do canal.)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Deus ex machina VIII: das prisões injustas ao apagamento fetichista na imagem



Desta selecção, gerada automaticamente (ou perto disso) pela aplicação LinkWithin, encontro duas narrativas "interligadas" que considero, no mínimo, curiosas. Do lado esquerdo, o preso de Bresson alterna com o preso de Lang, dois iminentes evadidos, que não toleram as grades tanto quanto se batem por um ideal de justiça - bem pervertido no clássico do realizador alemão...

Do lado direito, leio um "efeito íris" sobre a imagem de um tornozelo feminino com mais de 100 anos de idade, instante que, no frame seguinte, desfecha na escuridão "cheia de imagens" do famigerado filme de João César Monteiro, o negro de morte "Branca de Neve". Não há coincidências: César era um orgulhoso fetichista, ou melhor, um nada pudico apreciador de "partes femininas". Mas agora, antes que o leitor veja demasiado... lights out!

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O efeito goDDardiano

"Numéro deux" (1975) de Jean-Luc Godard

"The Cabin in the Woods" (2011) de Drew Goddard

[Face a tanta meta referência, pergunto-me se o "double d" no nome do realizador de "The Cabin in the Woods" é uma referência a Jean-Luc "Numéro deux" Godard ou um "efeito copa" tomado de empréstimo ao "muito quente" "Piranha 3DD". Fora de especulações, digo que é um filme desafiante, mas ainda assim cinematograficamente pouco surpreendente (ou tal como o pinta Jorge Mourinha na sua crítica embevecida ao filme) ao pé de um qualquer Ti West, de um "The Woman" ou de um "The Strangers" ou até do último "Scream" do rei do metacinema de horror: Wes Craven.]

domingo, 19 de agosto de 2012

Listas individuais da Sight and Sound (II): as escolhas nacionais

"Akibiyori"/"An Autumn Afternoon" (1960) de Yasujiro Ozu

Falemos agora de cinema, quer dizer, do "cinema dos outros". Que escolhas sobressaíram nas diversas listas individuais com os "melhores filmes da história", publicadas recentemente no site do BFI? Que impressões é que a minha retina cinéfila registou? Como já fiz antes, proponho irmos por partes.

Desde logo, destaco naturalmente as listas nacionais, elaboradas por programadores, críticos e académicos (já agora: quais?). Não quero estar aqui a discutir se a selecção acabou por ser representativa da opinião cinéfila nacional (mas não aguento: e Francisco Ferreira, João Lopes, Mário Jorge Torres ou, partindo do pressuposto que não estará na lista dos realizadores, João Mário Grilo?): o que importa é olhar para o que está. E de "o que está" destaco três listas: a de José Manuel Costa, Luís Miguel Oliveira e Augusto M. Seabra.

Já falei da segunda, muito genericamente, aqui, mas só agora temos acesso ao "comentário" do crítico e programador da Cinemateca. Gosto da solução final - expressão infeliz minha, mas nem tanto, como já verão - que o Luís Miguel Oliveira encontrou, pensando o moderno a partir da era clássica, como uma espécie de decorrência ou pináculo da mesma, ideia que seria cara a um Rohmer, para quem o moderno era a apoteose do clássico, ou nada estranha a Jacques Rancière, um dos ausentes de peso nestas listas da Sight and Sound, que num dos seus livros convida o leitor a encontrar elementos da imagem-tempo nos filmes que Deleuze incluiu na sua obra Imagem-Movimento, tendo como momento-charneira, precisamente, a II Guerra Mundial.

É aqui que entra a minha curiosidade em relação ao primeiro critério que Luís Miguel Oliveira confessa ter ponderado para a realização do seu Top10, passo a citar: "At a point, I thought of only naming films made in 1939 – as the world was torn apart by the beginning of the Second World War, cinema could not bear to remain encapsulated in the dreamland it had created for itself". Ideia que um Serge Daney não descuraria e que seguramente resultaria num exercício que seria proveitoso, pelo que gostaria de sugerir que o levasse a cabo e tornasse público - ou já serão listas a mais? Já agora, gostava de perceber o porquê de tanto cinéfilo mais "academizado" ou, como costumava qualificar Agee, "highbrow" começar o seu comentário criticando os moldes desta iniciativa, não só ressalvando o peso das ausências (isso compreendo perfeitamente) mas acentuando mesmo uma certa "má vontade" na resposta ao desafio. Desde quando, e qual o interesse disso, o cinema se tornou numa coisa tão séria, para não dizer sisuda e solene?

Outra lista que destaco e que irei ter no espírito nas minhas indagações futuras (ainda assim, dos filmes escolhidos só não vi dois títulos) é obviamente a de José Manuel Costa, grande professor universitário de cinema e subdirector da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Primeira nota negativa e primeiro sinal de preocupação em relação ao cuidado investido na organização desta preciosa base de dados: ó amigos ingleses, o que é isso do José Manuel Costa ser crítico e, PASME-SE O LEITOR, de nacionalidade espanhola?! Bem, este é um erro que tem de ser rectificado o quando antes, sob pena de desacreditar todo este esforço, meritório, da revista britânica.

Posto isto, fico contente por ver um Hawks, e um Hawks maravilhoso (ui, que redundância!), bem acima na lista de um académico nacional. Digo isto assim, não por desconsiderar o cinema de John Ford, longe de mim! Mas por já ter defendido que falta entrar uma certa aragem hawksiana na universidade portuguesa - os seus filmes desconcertam o cânone clássico, ao passo que o "fordismo" é um convite pós-griffithiano à sua celebração algo "acrítica". Adoro Ford, não me interpretem mal, mas considero Hawks uma ferramenta do pensamento mais, por assim dizer, "desafiante" e, nos dias de hoje, mais "operativa". Outro destaque, para além da natural inclusão de um Flaherty (tão natural como José Manuel Costa se chamar José Manuel Costa, dirá cada um dos seus alunos da cadeira de Documentário): o primeiro lugar reservado a Ozu e não a qualquer um dos seus filmes da praxe, leia-se, os unânimes "Tokyo Story" e "Late Spring". A estação favorita do vice-director da Cinemateca parece ser outra: o Outono.

Por outro lado, Augusto M. Seabra, o programador da Culturgest e do DocLisboa, conhecido "cronista" da vida pública portuguesa, faz uma lista inesperadamente "by the book", só com filmes "indiscutíveis" e sobejamente amados. Para um divulgador de cinematografias desconhecidas e autores obscuros, encontro pouca "novidade" neste casting. Recomendo, por isso, que se leia a sua justificação e que se procure a verdadeira lista "à Augusto M. Seabra" na referência a nomes como Syberberg, Straub, Munk e Ghatak.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Listas individuais Sight and Sound (I): o que dizem os especialistas sobre o cinema português

"Juventude em Marcha" (2006) de Pedro Costa

Acabam de ser tornadas públicas as listas individuais do top dos "especialistas em cinema" (vamos chamar assim todos os críticos, distribuidores, programadores, académicos que responderam ao desafio da Sight and Sound de eleger os melhores filmes de sempre, uma lista que comentei aqui).

Esta base de dados tem muito sumo lá dentro e, por isso, precisarei de alguns dias até a ter digerido convenientemente. Todavia, deixo já aqui as minhas conclusões mais imediatas.

Primeiro, a produção nacional está de parabéns. Três realizadores portugueses viram mais que um dos seus filmes mencionados por especialistas numa lista onde só se inclui a "nata da nata" do cinema mundial. Pedro Costa, com 13 nomeações no total, e Manoel de Oliveira, com 10, são os cineastas portugueses em maior destaque - seguindo-se João César Monteiro.

Segundo, "Juventude em Marcha" é o filme português com mais menções, 7 no total, seguido de "No Quarto da Vanda", 5 no total. "Vale Abraão" é o terceiro filme português mais "votado", contando com um total de 3 votos, a par de "Mistérios de Lisboa" de Raoul Ruiz. Críticos franceses, espanhóis, britânicos e americanos fazem parte do eleitorado especializado que resolveu alinhar o cinema português com os melhores do mundo.

Terceiro, este resultado é um triunfo nacional que deve ser analisado, antes de cinematograficamente, sob uma perspectiva política. Isto porque, afinal, fica de novo provado, e agora diria "em definitivo", a longevidade e alcance de filmes que, por uma razão ou outra, não mereceram a atenção devida internamente, quer do público, quer do poder político, quer mesmo de alguns "colegas de profissão". Fica provado que cineastas como António-Pedro Vasconcelos ou agentes políticos como o actual Secretário de Estado da Cultura estão rotundamente errados quando vêm desmerecer o cinema de autor nacional, com epítetos como "Pedro Costa, o cineasta oficial das Fontainhas" ou asserções ligeiras em torno da reconciliação um, dois, três entre o cinema nacional e o seu público. A eles devia ser dedicada esta lista.

Quarto, o cinema português vive um período de graça lá fora. Em muito mais casos do que se calhar esperaríamos há uns anos, Pedro Costa e Manoel de Oliveira são ou colocados entre os dez maiores cineastas de sempre ou quando não o são a sua ausência é lamentada pelo especialista votante. Pergunto-me se para tal não terão contribuído as recentes edições em DVD de Pedro Costa, por algumas das melhores editoras de filmes do mundo, como a americana Criterion Collection ou a espanhola )intermedio(, ou caseiramente pela própria Midas (com legendas em inglês), como também o lançamento nacional de algumas obras de Oliveira que estavam há demasiado tempo inacessíveis no mercado (inter)nacional.

Estou certo que teríamos mais nomes e títulos nacionais referenciados se outras obras fundamentais da nossa história tivessem o mesmo tratamento, falo de "Acto da Primavera", "Benilde ou a Virgem Mãe" e "Amor de Perdição" (este apenas disponível numa edição de qualidade suspeita, em Espanha) ou, reportando-me a outros grandes cineastas e obras-primas lusas, toda a obra de António Reis e Margarida Cordeiro, o enorme "Verdes Anos" de Paulo Rocha, etc.

Anjo, anjo da morte

"Spalovac mrtvol"/"The Cremator" (1969) de Juraj Herz

"Bernie" (2011) de Richard Linklater

(Ia escrever que estará aqui uma das interpretações do ano, numa das melhores e mais complexas comédias que os Estados Unidos nos deram em tempos recentes. Ia escrever, mas depois decidi deixar este link mais significativo.)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Filmes que (não) vou ver em sala (VII): Promises Written in Water

Contam-me que Gallo pegou fogo à única cópia disponível do filme (estilo Raquel Freire, mas à séria, estão a ver?). Escreve-se que não, nada disso: Gallo guarda a única cópia debaixo da sua cama sob apertadíssima vigilância pessoal. Dizem também que ele disse que este filme não será compreendido hoje e, portanto, irá guardá-lo para um público "por vir". Apesar de tudo, o seu filme recebeu algumas críticas entusiasmantes há já dois anos, no Festival de Veneza e de Toronto. Francisco Ferreira não hesitou em classificá-lo como uma das "obras-primas" do certame italiano (por outro lado, Jorge Mourinha, o verdadeiro rei da pequenada lusitana, à falta de uma banda sonora de Hans Zimmer ou de um argumento de Joss Whedon, fala de um "embuste") e Rui Pedro Tendinha (knock on wood...), que o viu na cidade canadiana, recorda uma "experiência sensorial fracturante".

Não há trailers e as imagens são quase nenhumas - a única que encontro e que circula na Internet é um still com o título do filme... Sabemos alguma coisa da história, mas o que é que isso interessa num filme de Gallo? Também se sabe que durará - se ainda durar... - 75 minutos, bem menos que o seu anterior e polémico filme. Com efeito, depois do magnífico "Brown Bunny", Vincent Gallo parece estar a jogar inteligentemente com os ritmos do mundo contemporâneo, onde tudo se sabe, onde tudo está acessível, onde tudo circula e é posto a circular "sem esforço". Ao mesmo tempo que joga com as nossas expectativas (puro teasing?) vai perpetuando o mito em torno de um filme que é como a pescada: antes de o ser já o era. Um filme perdido, quer dizer, um filme pedido depois de perdido?

O filme está feito, mas o seu público não. Ideia não tão inédita, mas nunca antes levada tão radical e pós-modernamente à letra. Philippe Garrel, por exemplo, já disse que faz filmes para um público futuro... Também já tivemos um actor-produtor a privar a humanidade de uma obra-prima do cinema mundial - falo de Jack Nicholson e de "The Passenger" de Michelangelo Antonioni, filme que esteve durante décadas cativo na colecção particular do excêntrico actor norte-americano, sem que o mundo lhe deitasse olho, mas quanto mundo não foi fantasiando com ele? Muito bem: Gallo antecipa tudo e todos e monta um mito "antes" sequer do filme estrear - se estrear... Claro que o facto do tragicamente desaparecido Sage Stallone fazer parte do elenco também ajudará e muito ao mythmaking.

... de Vincent Gallo

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

domingo, 12 de agosto de 2012

Tomado pela boneca

"Lars and the Real Girl" (2007) de Craig Gillespie

"Kûki ningyô"/"Air Doll" (2009) de Hirokazu Kore-eda

(Próxima do filme americano "Lars and the Real Girl", a originalidade da história japonesa está no facto de não se centrar no homem e na sua misantropia simultaneamente pervertida e inocente, tal como estranha e natural - esta aparente contradição é o que funciona bem no filme protagonizado por Ryan Gosling. No filme de Kore-eda, numa linha mais fantasiosa, é a boneca que nos dá a sua perspectiva do mundo, depois de ganhar um coração e descobrir o amor - e a desilusão que ele traz... - por outros cantos... Fora o lirismo "de plástico", "Air Doll" tem alguns apontamentos fortes, a saber: a ideia de que ela substitui a ex-namorada do seu dono, que rima com o facto de trabalhar num videoclube, local que oferece "substitutos" à experiência do cinema em sala, ideia, aliás, que atinge o seu clímax dramático na conversa com a interessante personagem do velho sábio, ele que  foi "professor substituto" toda a sua vida; um ensaio semântico em torno do "blow job" no pipo da boneca, "executado" pelo seu colega do videoclube, e que seguramente faria estremecer de prazer um Cronenberg; e, por fim, o facto de tratar um problema sério que assola a sociedade japonesa, e não só, já aflorado no cinema de Hirokazu Kore-eda pelo menos uma vez: a solidão ou o abandono.)

sábado, 11 de agosto de 2012

Tomado pelo boneco

"The Great Gabbo" (1929) de James Cruze

"The Beaver (2011) de Jodie Foster

(Era na Film Comment que lia há pouco tempo qualquer coisa assim sobre "Ted": "pelo menos é melhor que "The Beaver"". A crítica norte-americana, mesmo a mais "selecta", cede muito fácil e condescendentemente à generalizada infantilização da sociedade norte-americana quando decide tomar partido, nem que indirectamente, pela consagração moral do adulto-que-não-cresce, isto é, pela vitimização lacrimejante do adulto-que-não-sabe-ser-adulto. "Ted" é isso e só serve para isso - depois espantem-se que andem aí uns estudantes de doutoramento de "quadro de honra" que acham que são e por isso se comportam como o Joker... "The Beaver" é um filme, ao invés, sobre um adulto que para voltar a ser adulto tem de "regressar" à criança que está lá atrás, bem enterrada. O tom é sério, gravoso e a condição do protagonista tratada como tal. Não há desculpas, numa sociedade sã, para que um adulto recuse a responsabilidade de "ser adulto".)

Griffith e Stroheim atacados pela mesma "ave de rapina" (que aqui baptizo de Hollywood)

"Rescued from an Eagle's Nest" (1908) de J. Searle Dawley (com D.W. Griffith no seu primeiro papel como actor)

"Blind Husbands" (1919) de Erich von Stroheim (no seu primeiro filme como realizador)

(Não sei se se fala suficientemente dela. Até ver, confesso que desconhecia a sua existência. Falo da gravação áudio do elogio fúnebre de Erich von Stroheim a D.W. Griffith. O realizador e actor austríaco, que trabalhou com Griffith no início da sua carreira, faz com a voz tremida de emoção, e alguma tensão, a sua homenagem àquele que diz ser o primeiro grande "poeta" do cinema. Quatro momentos são, quanto a mim, marcantes: primeiro, o ataque à cidade ingrata e sem memória, California; segundo, o lamento, no qual talvez se reveria, quanto à situação de miséria em que se encontrava o realizador de "Intolerance" no final da sua vida; terceiro, as lágrimas que o grande ícone austríaco, figura imponente, terá vertido enquanto dizia que um dia o "grande mestre" lhe deu dois beijos na face, dois beijos que representaram para ele uma honra incomensurável; quarto, a forma como se despede, de voz embargada, do grande ídolo e amigo. "So long master, so long D.W.")

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Pensar a crítica e a cinefilia hoje (II)

Equipa da blogosfera (a azul) vs. equipa do CINEdrio (a preto)

Leia a parte I aqui

Apesar de tudo, a maior parte da crítica continua viva e resiste (ou continua viva porque já só resiste), mas não marca tendências como antes nem escreve frases que duram décadas (como o "travelling ser uma questão de moral") nem produz pensamento, apenas ante-produz reacção à opinião (como no caso do Batman no jornal Público). Acção que se alimenta da reacção mais epidérmica, já que quase nada de palpável fica das polémicas que se vão encenando de x em x tempos. Também não arrisca ou experimenta (será verdadeiramente livre? Claro que não, também não $ou ingénuo a e$$e ponto): por exemplo, os jornais, mesmo que sejam lidos maioritariamente na sua versão online, trabalham com formatos rígidos ultrapassados, esforçando-se pouco ou nada para reformular o medium do pensamento cinéfilo. 

Será que um dia será levada "à letra" a frase de Jonas Mekas no artigo «Notes on the  New American Cinema»: "film truth needs no words"? Talvez um dia, mas até lá, a crítica é escrita e é lida - a posição neste momento parece ser esta e deverá continuar a ser esta por muito tempo. No debate que referi atrás, fala-se do número 5 da revista Rouge, saído em 2004, em que se ensaia, de modo a meu ver muito interventivo, uma nova linguagem de análise e crítica do cinema, mais próxima aliás do filme de Godard do que dos proverbiais vídeo-ensaios. Nessa edição, como se lê na introdução, os redactores procuraram "pôr em cheque a linguagem [escrita]", privilegiando a imagem em detrimento do texto. O resultado, vários artigos de grandes figuras do mundo do cinema praticamente só com stills, é magnífico e desconcertante: sente-se, aqui, a formação de uma crítica de cinema que age sobre o leitor, provoca-o, não pelo "gosto" veiculado, nem mesmo por aquilo que diz (que, literalmente, é pouco ou nada), mas só e exclusivamente por aquilo que mostra. 

Ali, a crítica presentifica-se em imagens, mostra ou é mostrada (com uma legenda abaixo ou apenas um título "indicativo"). O exercício crítico é garantido pelo enquadramento geral - de revista de cinema - ou pela assinatura - de um crítico ou realizador conhecido. O resto é um trabalho sobre a imagem que se ABRE ao leitor, potenciando viagens inusitadas, algumas seguramente extrafílmicas, outras intensamente, agora sim, cinematográficas. O modelo "Histoire(s) du cinéma", filme realizado por um cineasta que foi dos mais inventivos críticos de cinema (recordo a célebre recensão a "The Wrong Man", com uma intensiva descrição plano a plano, que muito provavelmente hoje se faria, num blogue, só com stills), prova-se mais funcional que o já "excessivamente" academizado formato do vídeo-ensaio.

Ora, no debate da Cinemateca de Bolonha, o primeiro obstáculo levantado a estes modelos prende-se com a questão da protecção dos direitos de autor afectos às imagens dos filmes. Sem dúvida que é uma limitação, apesar de pessoalmente acreditar que certas limitações potenciam melhores soluções (é a minha costela rosselliniana). Na minha rubrica pansignificações (o nome vem de uma ideia de Barthes que transcrevi aqui), tenho proposto uma espécie de revisão puramente formal da política de autores, olhando para cada corpus a partir "de fora", mais especificamente, usando imagens que estão no domínio público para analisar e relacionar criticamente o cinema. A pansignificação mais popular, o torneio "A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty", pode ser encarada como apenas uma "brincadeira infantil", mas, graças a ela, apercebi-me de uma coisa tão extraordinária quanto isto: é possível chegar-se a certos consensos quase puramente "filmológicos", utilizando uma linguagem, à partida, totalmente estranha à do cinema. 

Submetido a votação, ficou claro e inequívoco que se Bresson fosse jogador de futebol, jogaria à baliza. É de mim ou não será estrondoso que esta conclusão surja assim, tão indiscutível, depois de apenas uma "brincadeira inofensiva para cinéfilo ver"? Nas outras pansignificações, também me tenho apercebido da minha própria evolução, no sentido de encontrar aquilo que Goethe diria ser a imagem primordial ou a Ideia (sinopse) de determinado filme ou conjunto de filmes. Comparando Ford a HawksAkerman a Benning, Cassavetes aos irmãos Safdie ou "cozinhando" bolos de anos para cada cineasta, para cada cinema, ou ainda actualizando a imagem do monólito de "2001" ganhei a certeza de que, por muito longe que estivesse - e estou -, me ia aproximando de uma certa Essência, sendo que, para isso, usava imagens antes de palavras. Será uma linguagem pobre, com deficiências, mas não está tão longe quanto se possa pensar do decadente formato texto nessa grande Procura do tal "inner meaning", como lhe chama o recém-falecido Andrew Sarris na sua "auteur theory".

Não é, aliás, 100% correcto da minha parte afirmar que a crítica oficial não usa imagens, sobretudo se nos lembrarmos desse dispositivo, tão recorrente e banalizado, que são "as estrelinhas e a bolinha preta". A maioria dos leitores terá bem presente a quantidade de informação que podemos extrair olhando apenas para uma dessas imagens tão rudimentares quando atribuídas por determinado crítico (a bola, uma estrela, duas, três, quatro, cinco!). Elas apenas assinalam um valor quantitativo, mas imagine que seja possível elaborar criticamente a partir dessa imagem, juntando outros elementos visuais "estranhos" ao universo imediato do filme... Impossível? Não sei.

Venho, portanto, declarar uma posição que é também um apelo a todos os que não querem ser "agentes passivos" neste mundo em rápida mutação que é, pois acreditem que é, o cinema. Defendo que pela imagem, parada ou em movimento, still, stolen ou found: se salvará e se potenciará, como nunca antes, a crítica de cinema; se constituirá, finalmente, uma crítica cinematográfica, promoção da divisão substantiva a uma conjunção adjectiva, infintamente mais maleável, logo, adaptada à realidade líquida da nossa era digital; a crítica será, também diria "finalmente", um exercício de pensamento com as imagens e não "a favor ou contra" determinadas imagens "tornadas objecto" no texto; a função-crítica dará as mãos à função-cinema, tréguas enfim para a crescente indefinição de fronteiras entre as duas....

No fundo, sugiro que se vá despindo a crítica de palavras gastas e infrutíferas, vestindo-a, ao mesmo tempo, com imagens-ideia significativas; sugiro que se experimente, se arrisque, se erre, se erre de novo e se erre melhor (como diria Beckett) para estabilizar uma nova linguagem crítica sobre o cinema - e que, no processo, se vá produzindo reflexão e se vá discutindo colectivamente cada avanço.

(E contra mim falei, ou não gastei eu palavras e mais palavras para dizer que se calhar estas "estão a mais" e são "demais"? E não irei eu continuar a gastá-las, apesar de tudo? Espero um dia poder combater mais assertivamente esta instalada tendência da crítica fílmica.)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Pensar a crítica e a cinefilia hoje (I)

Still de "Histoire(s) du cinéma" (1997-1998) de Jean-Luc Godard

É minha convicção que nunca foi mais decisivo e pertinente todo o pensamento que se possa produzir em torno não só da função mas, antes de tudo, da "forma" da crítica de cinema - ia escrever "crítica cinematográfica", mas receio que a maioria não mereça o elogioso adjectivo e se calhar o problema começa aí... Se nos anos 40-60 a crítica de cinema viveu um período de vitalidade que, nalguns momentos, parecia estar até a jusante do cinema que se fazia então, nos dias de hoje a crítica perdeu influência, mas mais do que isso, muito mais do que isso, perdeu quase por completo a chama criadora.

Na realidade, o episódio recente em torno do texto de Luís Miguel Oliveira sobre o último Batman de Nolan revela que, nesta era de massificação da opinião, o espectador/leitor nunca foi tão intolerante à opinião "profissional" do crítico de cinema. Por outro lado, a tolerância em relação a analistas "amadores" pode  ser significativamente superior - mesmo se, no geral, ambos se encontrem nas suas opiniões. (Comparem, ressalvando as devidas proporções, as reacções ao texto do Luís Miguel Oliveira com as reacções, no site ou no Facebook, a este texto do João Lameira.)

Isto não seria sintomático de grande coisa se eu não sentisse que a crítica de cinema PRECISA destas polémicas de vão-de-escada, do estardalhaço nas caixas de comentário, para, deste modo, ir marcando (corporativamente) o seu território.... O facto do Ípsilon ter começado por publicar, com um dia de antecedência, a crítica de Luís Miguel Oliveira (não a de Jorge Mourinha, por exemplo) ao "nulo" filme do Batman e ter publicitado a mesma na sua página do Facebook em jeito de "isco para as massas" (paradoxo: tratamento de excepção para filme tido como vulgar) significa que, muito provavelmente, a crítica necessita destes embates para justificar a sua existência, "ameaçada" que vai sendo pelo fenómeno da tal multiplicação descontrolada de "fazedores de opinião" na Internet (nas redes sociais, blogues, sites amadores, etc.).

Ao contrário do que possa parecer até aqui neste texto, não pretendo de maneira nenhuma desacreditar ou desvalorizar o papel da crítica de cinema; quero, antes, convidar o leitor à reflexão sobre eventuais "estratégias de sobrevivência editoriais" que estarão a ser activadas ante o crescente fenómeno de proliferação digital da opinião e informação sobre o cinema. Opinião e informação produzidas por amadores, cidadãos que, fora de qualquer tecto institucional ou empresarial, dizem de sua justiça sobre os mais variados temas ligados à Sétima Arte. Dada a delicadeza do assunto, teremos de ir por partes, mas atrevo-me a avançar já com um palpite meu: se calhar, sublinho o se calhar, ao contrário do que podemos pensar, o problema principal da crítica de cinema não está, hoje, no conteúdo...

O Carlos Natálio publicou no seu blogue um vídeo com uma conferência sobre todos estes assuntos, que teve lugar na Cinemateca de Bolonha, no dia 24 de Junho 2012. O painel, constituído por Miguel Marias, Jonathan Rosenbaum e Girish Shambu, discutiu as antigas, algumas extintas, e as novas, algumas emergentes, formas de "cinefiliação". A certa altura, os três críticos e estudiosos do cinema encaram de frente, como ainda não vi ser feito por cá, o "grande elefante na sala": é ou não é verdade que a linguagem da crítica de cinema enfrenta hoje, em tempos de intensíssimo trânsito (multi)mediático, uma complexa crise de identidade? Se sim, temos pensado sobre ela e nos modos de a superar?

Os conferencistas partem dos particulares - ou nem tanto, alega Rosenbaum - anos 50-60, e do seu efervescente ambiente intelectual, e aterram neste presente de rápidas mutações, para constatarem, entre outras coisas, que "Histoire(s) du cinéma" será o emblema, espécie de padrão-ouro, de todos os vídeo-ensaios cinéfilos, formato que, ainda que timidamente é verdade, vai pondo em dúvida o "grau de legibilidade" da tradicional actividade escritural, mais ou menos verborreica, de praticamente toda a crítica, seja ela oficial ou não-oficial...

Esta simples "viagem temporal", bastante (auto-)crítica, sugere a ideia alarmante de que ou algo muda agora ou a crítica se poderá perder para sempre nestes tempos de indefinição (também mas não só, indefinição dos formatos, entre eles, a própria alta-definição que mostra tudo e não deixa nada "por ver"), de volatibilidade (o que está na moda agora está já a seguir, porque o disse, o escrevi, o esgotei..., fora de moda), de instantaneidade (Rosenbaum recorda um tempo em que, depois de ter visto um filme, tinha de esperar meses ou anos para falar com alguém que também o viu, hoje, o problema é quase inverso, face a tanta poluição e omnisciência informativas) e, tudo somado, de instrumentalização do pensamento fílmico (usar e deitar fora, sem esforço, isto é, idealmente quase sem cliques, quase sem scroll, quase sem ler, porque isso mata o tempo e fere os olhos...).

(continua)

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Agoridades da intolerância (acalentadas no berço da História)

D.W. Griffith, "Intolerance" (1916)

O método de Benjamin persegue um objectivo (busca um "deus por vir", deus profano, porém): descobrir o mais distante pela observação incansável e implacável do mais próximo.

João Barrento, Ler o que não foi escrito: conversa inacabada entre Walter Benjamin e Paul Celan, Lisboa, Livros Cotovia, p. 50

(O contributo do Luís Miguel Oliveira para o top da Sight & Sound vem assinalar uma ausência inexplicável na lista final: a de Griffith e do seu monumento fílmico, "Intolerance", filme que, em 1952, ocupava o quinto lugar desse top. Estará a cair no esquecimento... "a intolerância", digo?)

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Newsletter do CINEdrio: comunicado

A newsletter do CINEdrio é uma publicação totalmente gratuita que é organizada mensalmente por cinéfilos e investigadores na área do cinema. Nada nos move a não ser o prazer inerente à partilha de conhecimento e informação com os nossos leitores.

Passados 17 meses sobre a primeira edição, chegamos àquele momento em que temos de parar, reflectir e tomar decisões importantes quanto ao futuro desta nossa publicação. Orgulhamo-nos de cada uma das nossas subscrições, mas não podemos esconder que, neste momento, o trabalho que cada número envolve é esmagador, pouco recompensador atendendo à (ainda assim) reduzida taxa de leitura.

A continuidade da newsletter do CINEdrio está nas suas mãos. Se gostar do que vê, nesta edição que tornamos pública como amostra, e onde incluímos (abaixo) um arquivo com links para todas publicações desde o número um, não hesite: divulgue entre os seus contactos, apelando à subscrição através deste link. Retomaremos a publicação assim que sentirmos que temos bases para isso.

Agradecemos a atenção e incentivos de todos os amantes de livros e filmes.

Luís Mendonça e Francesco Giarrusso



Os dez melhores de sempre

Inspirado pela lista, recém publicada pela revista inglesa Sight & Sound, com os "melhores filmes de sempre" (que comentei aqui) e pelo desafio que o Samuel do Keyzer Soze's Place colocou aos seus leitores, elaborei um top 10 da minha autoria, onde constam, posso dizê-lo, os dez filmes que moldaram a minha cinefilia. O problema com as listas é o de termos de conviver com as ausências imperdoáveis, no caso, o critério foi muito pessoal, quase autobiográfico.

1. "2001: A Space Odyssey" (1969) de Stanley Kubrick


Aqui aprendi a pensar com imagens e percebi que, no cinema (como na vida), o mistério pode nunca acabar (= a minha primeira grande noção de infinito).

2. "Citizen Kane" (1941) de Orson Welles


Aqui percebi o que podia ser a grandeza do classicismo norte-americano e, logo a seguir, a loucura de um génio que o celebrou ao mesmo tempo que o dinamitou por dentro.

3. "North by Northwest" (1959) de Alfred Hitchcock


Aqui deixei-me levar pela aventura de um "homem errado" e desejei que esta nunca acabasse.

4. "Raging Bull" (1980) de Martin Scorsese


Aqui aprendi a ver tragédia e bailado a partir de um palco só: um ringue de boxe, mais especificamente.

5. "Monsieur Verdoux" (1947) de Charles Chaplin


Aqui percebi que há mais vida para lá dos clássicos maiores de Chaplin; logo, aprendi a amar a descoberta cinéfila.

6. "El espíritu de la colmena" (1973) de Victor Erice


Aqui voltei a ouvir e a ver como uma criança e apercebi-me do papel que o silêncio e a paisagem podem desempenhar sobre as imagens. 

7. "Assault on Precinct 13" (1976) de John Carpenter


Aqui aprendi a relacionar e a ler cinema, para descobrir, por exemplo, que por trás de uma coisa (o thriller urbano de cerco) pode estar outra (um western de cerco hawskiano).

8. "Bringing Up Baby" (1938) de Howard Hawks


Aqui desfiz um preconceito que me perseguia: é que a comédia não é mesmo nada um "género menor".

9. "Mon Oncle" (1958) de Jacques Tati


Aqui encontrei as figuras, os ritmos e as distracções que, ainda hoje, alimentam o meu (resistente!) imaginário de infância (uma infância idealizada, claro está).

10. "Ivan, o Terrível Parte I e II" (1944-1958) de Serguei M. Eisenstein


Aqui sim, verdadeiramente, percebi como se pode "escrever História com luz" (a frase é de Woodrow Wilson a propósito do moralmente deplorável "The Birth of a Nation" de D.W. Griffith).


Reendereço o desafio a todos os bloggers de cinema (e não só!) que passem por este cantinho.

domingo, 5 de agosto de 2012

O fim da RTP2


Uma notícia recente dá conta da eventual venda da RTP2. Chegámos ao momento que pessoas como o Professor João Mário Grilo já anteviam no debate que a petição pelo regresso da exibição regular de cinema à RTP2 organizou, há quase um ano. Momento para a defesa da RTP2, mas que RTP2 é essa que as pessoas poderão defender, face a um presente tão descaracterizado e a uma direcção que nunca quis ouvir o seu público?

Agora vão aparecer meia dúzia de vozes, mais ou menos sonantes, que só sabem defender aquilo que é e não aquilo que devia ser um segundo canal de televisão. A discussão vai-se politizar, pior!, vai-se "partidarizar", mas algo me parece incontestável: nesta altura de vacas magras, em que se anuncia a reestruturação da televisão pública, o governo percebeu que o elo mais fraco era a estação de Jorge Wemans, um canal que se alicerça apenas numa boa programação infantil, numas quantas séries norte-americanas que duplica com outros canais do cabo e nalguma informação cultural mal amanhada e snobe (leia-se, o insuportável "Câmara Clara").

A direcção da RTP2 arrastou-se durante anos a mais, perdeu força e credibilidade e, agora, arrisca-se a levar consigo não só o passado e bom nome do canal mas também o canal propriamente dito. Parece uma daquelas ditaduras do norte de África: só acabam com a decapitação do ditador. Pena que esta "decapitação", se acontecer, seja executada pelo Poder e não seguindo a vontade dos cidadãos. Será não uma revolução "primaveril", mas a implosão de uma direcção decadente. RTP2, a estação que Jorge Wemans enterrou?

(Quanto ao ministro Miguel Relvas querer um canal público mais próximo da RTP1 do que da RTP2 ou dizer que não quer um canal "residual" a nível audimétrico, claro que isto constitui o triunfo da perspectiva tecnocrática que já impera há muito na televisão pública; logo, a machadada final sobre qualquer possibilidade de vir a existir - como já existiu um dia, na RTP2 - um serviço público de televisão.)

Gigi (1958) de Vincente Minnelli


"Gigi" é, como vários musicais clássicos, o resultado do somatório simples de certos elementos, desde logo, uma história de amor e o cenário parisiense do princípio do século XX, encantador na proporção da sua artificialidade. Ele é o motivo para os vários temas dedicados ao "amor romântico" na cidade das luzes, um cliché que encontramos frequentemente em Hollywood (veja-se o remake musical de "Ninotchka", ou o filme de Lubitsch propriamente dito, "Silk Stockings" de Rouben Mamoulian). Ainda assim, apesar de pairar no ar, ele (o tal "amor romântico") acaba desafiado por uma espécie de versão bondosa e inocente de "Lolita": o solteirão mais pretendido da cidade, e talvez do mundo, acaba apaixonado pela pequena "Gigi", que mal ainda se fez mulher, que ainda salta, se ri, faz batota nos jogos de cartas como uma criança pequena.

Este é "o problema" que "Gigi" coloca às suas personagens. Mas há quem passe olimpicamente ao lado de qualquer problema. E quem é ele? Maurice Chevalier, um já velhinho Maurice Chevalier, não exactamente aquele garboso e matreiro galanteador dos filmes musicais (extraordinários, aliás) de Lubitsch, mas, ainda assim, garboso e matreiro ("a prince of love", como uma ex-amada lhe chama...) quanto baste para o identificarmos em segundos. O actor francês desempenha o muito novelesco papel de "narrador participante" neste musical de Minnelli; ele localiza-nos no tempo da acção e lança o mote para o filme: "Thank heaven for little girls!", título (só ambíguo hoje, para as mentes cheias de minhoquices) que identifica o espírito "namoradeiro" dessa grande figura do cinema romântico musical, espírito esse que, a partir de ali, se estende ao resto do filme.

Mas não há problemas para o velho Chevalier, ele próprio diz, noutro momento delicioso de cantoria, que na idade em que se encontra tudo lhe passa ao lado. Parece, de facto, que tudo lhe vai passando ao lado, apesar  do seu efeito na história ser o do mais doce e sereno amortecimento. Basta o sorriso rasgado, as tiradas do estilo "ah, eu sei como é, eu já vivi isto tudo...", para, de imediato, o qualificarmos como o mais acertado "narrador participante" para esta história - termo inexacto, na medida em que a sua personagem, antes de ter aptidões para narrador, era já um muito activo participante.

A certa altura, a sua personagem encontra um amor antigo, sentam-se à mesa e lembram os tempos idos. Lembram? "Tenta" lembrar-se ele, o ainda galante Chevalier, que começa com a frase que se tornará refrão para o encontro (en)cantado: "I remember it well". Desde logo se percebe que o nosso simpático "participante narrador" não se lembra de quase nada, mas depois a sua antiga amada, num momento de arrebatadora cumplicidade amorosa ou nostalgia romântica, responde cantando que "It warms my hearth to know that you remember still the way you do". "Ah yes, I remember it well", responde Chevalier. Verdadeiramente, conseguimo-nos lembrar, e lembrar bem, tendo esquecido quase tudo? Minnelli encena esta pergunta, dentro do espírito light do musical, mas a sua complexidade persegue-nos para lá da magia e romantismo de fim de tarde. Só essa cena vale por todos os fracassos do filme, só essa cena nos faz esquecer - mas de facto! - a moral datada e algo equívoca de "Gigi".

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

E que os mascarados se levantem para o restauro da ordem perdida (contra os "ocupas")

"The Birth of a Nation" (1915) de D.W. Griffith

"The Dark Knight Rises" (2012) de Christopher Nolan

* - E a longa tradição reaccionária da super Hollywood keeps on going... Bem avisados vamos sendo pelo "anticristo da pequenada lusitana"

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