Estranhamos que um filme repudiado por tanta gente nos dê tão variados motivos de reflexão. Em primeiro lugar, "El cant dels ocells" é um filme sobre um tempo que não é o nosso, ou seja, uma tentativa quase documental de convocar no espaço do cinema uma forma de vivência do e no tempo, cada vez mais profanada pelo ritmo voraz das sociedades modernas. Recapturar o tempo não é fácil e obriga o olhar de hoje a um certo esforço de conversão (no sentido religioso e não religioso do termo): na cabeça de Serra parece habitar a ideia de que filmar uma história com mais de dois mil anos não deve ser igual a filmar uma história com mil, cem ou dez anos; a cadência dos planos pode conter em si a possibilidade de trazer às pessoas de hoje a experiência, o mais embrutecida possível, do Tempo dos seus antepassados.
Neste aspecto, pode-se dizer que "El cant dels ocells" esconde uma desconstrução muito subtil do entendimento que temos de filme histórico e, até, de filme documental. Senão vejamos: o propósito de Serra passa por filmar à distância, ou observar com a câmara, a viagem épica dos três reis magos pelos climas mais adversos até à reunião com Maria e o seu recém-nascido menino Jesus. Para além das hesitações, contratempos e desconfortos que afectam um qualquer viajante, os três reis magos têm a desvantagem de pertencerem a uma época em que a terra era obscura, espaço incerto controlado por forças mágicas que se manifestavam amiúde nos sonhos e pesadelos dos homens.
Serra não questiona este episódio da Bíblia e põe logo de parte a ideia tão absurda quanto inútil de reescrever, reinterpretar ou "cientifizar" uma história que, rigorosa ou não, se inscreve como uma verdade absoluta no imaginário cultural de toda uma civilização. A sua postura é outra: partindo do princípio que a história aconteceu tal qual como nos "habituámos" a contá-la, a partir da Bíblia e dos livros, das pinturas, das músicas e dos filmes que dela derivaram, como terá sido percorrer desertos infindáveis e densas florestas - sublinhe-se, intocadas pelo homem - para um destino do qual só se tem como referência uma estrela no céu? E, entrementes, como passou o tempo na casa humilde do casal José e Maria? Pensamos que Serra coloca a si mesmo estas questões com o espírito de um documentarista, que parte de uma premissa mística para recuperar uma vivência perdida do mundo - este é o verdadeiro documento histórico em cinema... - , chocante para os nossos dias.
Não concordamos com quem afirma que a estética de Serra é inconsequente ou onanista. Claro que há um certo deleite do criador em parir "imagens bonitas", mas pensamos que "El cant dels ocells" é bem mais do que um filme extraordinariamente lento e belo, na medida em que a estética de Serra serve uma preocupação ontológica de saber o que é isso de (re)encenar a História. Olhar com os olhos de hoje ou olhar com os olhos de então? Fazer a enésima versão do "Ben-Hur" de Wyler, com todos os clichés e velocidade alucinante da modernidade ou procurar reflectir, fazendo uso do poder contemplativo e (est)ético do cinema, um Tempo imemorial? A resposta de Serra parece-nos clara depois de vermos "El cant dels ocells", tal como fora clara a resposta que Tarkovsky deu à mesma pergunta em "Andrei Rublev", visão fragmentada sobre um pintor-santo medieval, mas eivada da mesma preocupação, que agora Serra prossegue, em dar aos olhares e ouvidos saturados de hoje a experiência de um Tempo antigo. São exercícios especulativos, de fé, sobre como seria "ser" há milhares de anos. Uma brutal alteridade de que o cinema não é um meio, mas um fim em si mesmo.
É o preto-e-branco, que por vezes quase extingue as formas e dá lugar à abstracção imagética; é a duração dos planos, uma consciência do tempo que se documenta...; é o som da natureza e a música frágil que assinala a chegada dos reis magos, e o princípio do regresso; é a câmara, que enquadra os três reis magos como três pontos sobre o espaço - um "plano dentro de outro" - ; e é o silêncio, o som suspenso que põe as personagens a voar enquanto nadam, que fazem de "El cant dels ocells" um objecto tão fascinantemente inclassificável, um documentário impossível, por vezes, imbuído de um realismo lírico paradoxal, que é uma purga para o olho moderno. Descansem nas minhas imagens, é a primeira coisa que ele nos pede - e, para nós, a primeira coisa que ele alcança...
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1 comentário:
Pois pareceu exactamente inconsequente e onanista. Obra inócua e que em nada pode ser comparada com o cinema de Tarkovsky, que trata a depuração das imagens como algo profundo e significante. Se havia aqui maior sentido na contemplação ele é perdido quase totalmente.
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