quinta-feira, 3 de maio de 2012

Des épaules solides (2003) de Ursula Meier


Aqui para os meus botões (estranhamente ou não, os meus fãs mais acérrimos), tive de me confessar: subestimei Ursula Meier. Subestimei, sim, mas não muito, pelo menos, só durante a hora e meia de "Home", filme simpático, com dois actores de excelência do cinema europeu (Huppert e Gourmet), mas que, ultrapassada a exposição da sua premissa invulgar, parece cair num vazio de ideias, sem saber para onde ir. Contudo, nada nele se compara, por exemplo, aos minutos finais de "Des épaules solides", filme que Meier produziu para a televisão suíça e que é um pequeno drama, em registo realista, sobre a angustiante vida de uma adolescente que luta contra o seu próprio corpo, e a envolvência familiar instável, para se tornar numa atleta profissional. Sonha com a vitória no pequeno campeonato em que vai participar ao mesmo tempo que fantasia com as Olimpíadas. Querendo dar um passo maior que a própria perna, começa a ponderar preparar-se sozinha, à revelia do seu treinador, excelentemente interpretado por Jean-François Stévenin.

O freeze frame final, fixando o movimento e rosto desenquadrado da jovem Sabine (já disse que Louise Szpindel é extraordinária?), ao som de Schubert, ultrapassa todos os planos juntos de "Home": esse plano, que nos transforma o coração em pedra, inflige-nos uma dor e uma emoção raras, que reconduz e nos faz reinterpretar infinitamente o imobilismo soberano do seu corpo depois do disparo de partida. É apoiado nesta emoção que revejo em alta o meu entusiasmo em volta do mais recente filme de Meier, "L'enfant d'en haut", vencedor do Urso de Prata no último festival de Berlim (e que ante-estreia amanhã, no IndieLisboa).

Mas agora recuemos até à primeira experiência de Meier no cinema: "Tous à table" (2001). Esta curta maravilhosa, filmada num preto-e-branco saturado de grão, é um carrossel de emoções: começa com um jantar entre amigos, depois percebemos que é uma festa de anos, o aniversariante, um velhote com ar simpático, recebe os elogios e diz que envelhecer com amigos daqueles... não é difícil. Este cenário de celebração e rejubilo vai-se gradualmente transformando noutra coisa, a partir do instante em que um dos anfitriões lança à mesa uma charada sobre formigas, aguardando, passiva e insolentemente (?), a resposta certa.

O que se gera neste momento é, no começo, uma caótica reacção colectiva a uma "blague" sem importância, mas, perto do fim, aquele grupo de amigos entra numa espécie de "guerra civil sentimental" à volta da mesa: casais desentendem-se, os mais velhos impacientam-se... a tensão torna-se, verdadeiramente, ridícula e o serão muito menos agradável. Tudo por causa de três formigas que caminham em fila indiana, no cepo de uma árvore, em direcção... ao vazio... A primeira olha em frente e não vê nada, a do meio olha em frente e vê uma formiga, olha para trás e vê outra, ao passo que a última olha em frente e vê duas, olha para trás e vê outras duas. Face à rábula, um jantar de comemoração vira sessão de violenta confrontação entre os convidados.

No decurso daqueles 30 minutos, a câmara invisível de Ursula Meier tem-nos completamente na mão. Rimo-nos, divertimo-nos muito, mas também ficamos de queixo caído face ao descarrilamento daquela festa que prometia ser só e apenas uma lição de amor entre amigos.

(Esta sessão dupla foi mostrada hoje, na presença da realizadora, no IndieLisboa. Tenho muita pena, mas não voltará a passar no festival. Tente, contudo, apanhar amanhã a sua mais recente longa, "L'enfant d'en haut", que passa às 21h30, no cinema Londres.)

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