quarta-feira, 3 de novembro de 2010

The Sin of Harold Diddlebock (1947) de Preston Sturges


Cá está um case study algo esquecido na história do cinema: "The Sin of Harold Diddlebock" ou "Mad Wednesday". Dois títulos pelo qual é conhecido o último filme com Harold Lloyd, realizado e escrito por Preston Sturges. Como dizem os créditos de abertura: "An Original Screenplay Written and Directed by Preston Sturges". O rol de ironias começa aqui e apercebemo-nos disso logo a seguir: "Mad Wednesday" abre com... "The Fresman", longa-metragem realizada em 1925 com o célebre slapstick comedian do mudo, Harold Lloyd.

No seu tempo, Lloyd foi tão ou mais popular que Keaton, enchia salas com os seus filmes repletos de stunts tão arriscados - aqui não há CGI, meus pequeninos... - quanto arrojados, mas frequentemente mais delirantes que arriscados e arrojados. Ver a obra de Lloyd é um regalo para os olhos: o efeito especial aqui é o corpo de Lloyd, os mal-entendidos e o caos que aquele gera. "Girl Shy", "Safety Last" e, claro, "The Freshman" são algumas das suas maiores obras-primas. Sturges pega na última para começar um filme, mas não um qualquer. É o último filme de Lloyd e, estou certo, este sabia-o. Apesar de ainda ser novo em 1947 - tinha 52 anos - o actor saberia que não voltaria ao cinema, face à forma como o sonoro proscreveu as suas maiores estrelas - Keaton e Stroheim, só para dizer dois nomes.

Mas, voltando a este filme de Sturges, o realizador de "Sullivan's Travels" e "The Palm Beach Story" resolveu recuperar Lloyd e a memória do seu cinema; abriu o seu filme com as últimas imagens de "The Freshman", sendo que a nestas introduziu um conjunto de subtis reedições, por forma a conduzir um clássico mudo do burlesco para o presente, mais de 20 anos depois... Para o efeito, Sturges repegou na sequência antológica do jogo de futebol americano em que o "águas" Harold Lloyd, um caloiro ridicularizado por todo o campus universitário, se revela um feroz avançado que ultrapassa os seus adversários com uma técnica assaz sui generis.




Excerto de "The Freshman" (1925) de Fred C. Newmeyer & Sam Taylor


O mesmo excerto de "The Freshman" remontado por Sturges em "The Sin of Harold Diddlebock" (1947). ATENÇÂO: o presente excerto está sonorizado (música e som de fundo do público), contudo, não consegui incluir a banda de som na transcrição para a Internet. Apesar disso, este mal pode ter vindo por bem, já que esta sequência é muda "de raiz". A parte falada (perto do fim) está legendada. O excerto foi extraído do DVD da BACH FILMS.

É absolutamente obrigatório ver os dois vídeos em simultâneo


Comparando a sequência de 1925 com a de 1947, constatam-se algumas diferenças curiosas: Sturges, agora com a possibilidade do som, descarta intertítulos, usando pequenos artíficios (como um insert) para conferir clareza à narrativa. Altera um ou outro gag (nomeadamente o que diz respeito a um som que a personagem de Lloyd confunde com o apito do árbitro) e, muito importante, inclui uma personagem nova, um homem forte da publicidade que entregará a Lloyd, no final do jogo, o seu cartão, prometendo-lhe trabalho.

Já estamos aqui fora do universo do filme de 1925, do cinema mudo, do tempo em que Lloyd era uma Estrela planetária. Passamos, a partir daqui, como em "Sullivan's Travells", para a realidade dura num registo desencantado: Lloyd vai ter com o dito publicitário, para lhe reclamar o emprego prometido, mas bate com a cabeça na porta ou quase... O homem diz-lhe, cinicamente, que tem reservado para si um trabalho que lhe dará a gratificação de poder progredir na empresa. Lloyd, ou melhor, Diddlebock - é esse o nome do nosso protagonista - fica numa profissão precária e pouco estimulante de secretário durante vários anos.

O seu envelhecimento, sem glamour ou delírio, longe dos tempos de "The Freshman", culmina com o despedimento. A partir daqui, este homem bondoso começa a beber, não muito, na realidade, basta-lhe um copo para soltar a fera que estava adormecida dentro de si. Uma "quarta-feira louca", à custa de um copito de um cocktail de bar, transforma Diddlebock no freshman de outros tempos. Enérgico, tempestuoso, caótico, histriónico, desastrado, mas sempre com coração quente, Diddlebock envolve-se numa série de trapalhadas à volta de um circo que adquiriu quando estava ébrio.

"Safety Last!" (1923) de Fred C. Newmeyer & Sam Taylor


"The Sin of Harold Diddlebock" (1947) de Preston Sturges


O Lloyd acrobata, na corda bamba, regressa em pleno na cena vertiginosa do edifício, citação clara a "Safety Last!", filme que, como este, ironizava muito com o mundo cínico dos negócios e do marketing. O seu jeito com animais ferozes - um leão domesticado - é proporcionalmente inverso ao seu jeito com as mulheres, sobretudo, uma das mulheres que ama - as outras eram suas irmãs, "eu amo a mesma mulher, mas em vários corpos", aponta a certa altura Diddlebock. Aqui sentimos o "Girl Shy" de 1924 a descer sobre si: uma misoginia benigna que também podemos encontrar na screwball comedy de Hawks "Bringing Up Baby", onde as feras são um tigre - aqui é o tal leão - e a personagem feminina - por intimidarem a masculina... "Mad Wednesday" é, portanto, um dos mais inspirados filmes-filmes, um olhar terno - sem mágoa, mas muita ironia - sobre um grande homem que fez rir às gargalhadas - e continua a fazer rir! - gerações e gerações de espectadores.

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