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"Suddenly, Last Summer" (1959) é uma das “peças filmadas” mais celebrizadas de Joseph L. Mankiewicz. A confluência de talentos neste filme desorienta qualquer cinéfilo: para além do posto de realizador, atribuído ao autor de clássicos como "The Ghost and Mrs. Muir" (1947) e "All About Eve" (1950), destaca-se o argumento de Tennessee Williams e Gore Vidal, com base numa peça do primeiro, e um dos melhores elencos dos anos 50 (Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor e Montgomery Clift). Tem um número limitado de actores e é filmado sobretudo em interiores, dois aspectos típicos no cinema de Mankiewicz, que, neste caso, ajudam a criar a atmosfera ideal para o pretendido anti-“conto de Verão”.
Aqui, “a estação de todos os amores” serve de pano de fundo a uma viagem mental pela história nebulosa de uma personagem-fantasma, Sebastian Venable. Conhecemo-la unicamente a partir de conversas e das marcas profundas que o seu desaparecimento deixou em familiares próximos, entre eles, a sua mãe: a senhora Violet Venable, uma “Deusa louca” incarnada por Katharine Hepburn. Quando esta pede ao doutor Cukrowicz (Montgomery Clift) para fazer uma lobotomia à sua sobrinha, Catherine Holly (Elizabeth Taylor), já nós estamos pouco certos da sua sanidade mental. A forma convulsa como profere palavras de veneração dirigidas ao seu falecido filho parecem sufocar-lhe a alma com a mesma intensidade com que a afastam da realidade.
Com efeito, o mundo de Violet ergue-se, logo no começo do filme, em altura: vemo-la a descer, majestosa, do ascensor que mandou instalar na sua mansão. Este fá-la subir ao primeiro andar (o céu) com a mesma facilidade com que a devolve ao andar zero (a terra) para mais uma incursão bigger than life pela mundanidade. A sua admiração pelo filho morto é perturbante: um misto de endeusamento com amor incestuoso. Diz que Sebastian era um grande poeta e que, um dia, este viu a face de Deus. Cukrowicz assiste a tudo isto, passivo, provavelmente, interrogando-se sobre as causas da morte de Sebastian e até que ponto estas terão alguma ligação com o (suposto) enlouquecimento de Catherine.
As dúvidas que nós sabemos que Cukrowicz tem na sua cabeça – espécie de enigma clínico, qual thriller freudiano – são as mesmas dúvidas que nos assaltam o espírito. A partir deste momento, a câmara de Mankiewicz posiciona-se ao nível dos olhos da persona de Montgomery Clift, como se estes fossem a fechadura pela qual nós, espectadores, espreitamos a realidade das (outras) personagens.
Esta omnipresença/omnisciência é tanto mais interessante quando sabemos, pelas palavras de Violet, que Cukrowicz incarna muito do que Sebastian foi. Com efeito, no momento em que Catherine acusa Sebastian de a ter usado e amado “à sua maneira”, o médico depara-se com um dilema terrível: ou aceita a chantagem de Violet e faz uma operação de alto risco, totalmente injustificada, ao cérebro de Catherine, em troca de dinheiro para a construção de um novo hospital ou rejeita o dinheiro de Violet e, preservando a sua ética profissional, não realiza a dita lobotomia.
Em certo sentido, Cukrowicz tem duas opções à sua frente: ajudar Catherine a ultrapassar, por si, o trauma que a persegue ou usá-la, tal qual como Sebastian fazia, em benefício “da sua arte”, que é como quem diz “amar ou não amar Catherine”.
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"Suddenly, Last Summer" cheira a morte, desde as primeiras imagens: Cukrowicz mostra como se faz uma lobotomia a uma assistência formada por médicos, no precário hospital estadual de Lion’s View. Quando se prepara para fazer uma incisão no cérebro da sua paciente, um som de madeira a rachar faz estremecer os presentes, sugestão enganosa de que algo possa ter corrido mal. O auditório, parcialmente construído em madeira, parece desfazer-se lentamente, à medida que o jovem médico realiza a sua intervenção de risco. As más condições não impediram que o brilhante neurocirugião conseguisse fazer, com sucesso, a lobotomia. Apesar disso, o maior desafio daquele dia estava ainda para vir: visitar a senhora Violet. Na sua sumptuosa mansão, esta convida Cukrowicz para um passeio no seu não menos majestoso jardim, uma das criações geniais de Sebastian.
A meio da conversa com Cukrowicz, Violet coloca uma mosca morta na boca de uma planta carnívora – um dos hobbies naquela casa sempre foi alimentar “a dama” com suculentos insectos cuidadosamente seleccionados. A planta funciona como aperitivo para a proposta que levou a extravagante magnata a escrever uma carta a Cukrowicz, pedindo-lhe que a visitasse: a escandalosa chantagem em torno da (suposta) doença mental de Catherine é a primeira forma de canibalismo em "Suddenly, Last Summer".
As recordações do seu filho morto invadem a alma de Violet, enquanto esta percorre os caminhos verdejantes – algo “assustadores”, murmura para si Cukrowicz – desse templo vivo consagrado à memória de Sebastian, o homem que um dia viu Deus. Não exageramos nas palavras: de acordo com a própria mãe, Sebastian um dia declarara-lhe que vira a Sua face. Numa viagem que os dois fizeram às ilhas Galápagos, no Pacífico, o filho levou a mãe para uma zona costeira, com a intenção de contemplar um cenário dantesco produzido pela natureza.
Qualquer coisa de tão terrível que abalaria a moral humana e provaria que os valores que prezamos – como o amor, a paz e a solidariedade – não passam de um engodo que o Homem colocou a si mesmo para evitar o confronto cru com a terrível Verdade. As picadas de “pássaros devoradores” que dilaceram, na praia, a carne de pequenas tartarugas-do-mar acabadas de nascer são uma visão do inferno para nós, mas “a visão de Deus” para Sebastian. Violet diz que só percebeu isso agora: todos nós (as moscas, as tartarugas-do-mar e o Homem) somos presas de uma criação devoradora (a planta carnívora, os pássaros, Deus… e o próprio Homem). Um esqueleto com asas de anjo divide o plano em que Cukrowicz, o médico, o cientista, o agnóstico, pergunta a Violet se esta acredita que Sebastian viu, de facto, Deus. Esta responde que passou a acreditar, desde o último Verão…
A cena do encontro entre Cukrowicz e Catherine, num hospital de freiras, poderia perfilar entre o melhor Bergman: a sobrinha de Violet discorre sobre as lembranças que lhe vieram ao espírito, desde que perdeu a memória naquele dia fatídico. Flashes de uma tentativa de violação de que foi vítima, numa Primavera passada, misturam-se com os factos de Cabeza de Lobo, povoação perdida onde o protagonista ausente morreu ou foi morto. Catherine está lúcida, mas perturbada. O seu estado não é tão grave como o da sua tia Violet; logo, a hipótese da lobotomia surge como um pau de dois bicos para o jovem médico.
Sem saber ao certo o que fazer, Cukrowicz transfere Catherine para o hospital de Lion’s View. Lá, a rapariga, pensando que está a ser usada, tenta o suicídio, uma espécie de mergulho num lago humano feito de doentes mentais crónicos. A morte chega pouco depois – o esqueleto com asas de anjo volta a aparecer, desta feita, à direita da imagem –, na magnificamente filmada/montada cena da epifania de Catherine. Quando a câmara penetra na sua mente, como um bisturi, o ecrã divide-se em dois: de um lado, a expressão dolorida de Catherine e, do outro, Cabeza de Lobo. Bruscamente, ficamos a saber o que aconteceu naquele Verão. Qualquer coisa de terrível, que dificilmente caberia nestas linhas...
Ler mais aqui: IMDB e Senses of Cinema.
2 comentários:
De todas as obras que levaram o génio de T.Williams ao cinema,a triologia composta por "Bruscamente no Verão Passado", "A Noite da Iguana" e "Algemas de Cristal" as que nos oferecem o retrato mais perfeito/fiel do dramaturgo. Se nas duas primeiras temos dois grandes cineastas, já na última com o Paul Newman atrás da câmara, descobrimos um cineasta no verdadeiro sentido da palavra. Uma reposição que se impõe.
Abraço cinéfilo
Paula e Rui Lima
Excelente filme! Não têm mais nada ser comentado. Parabéns!
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