quarta-feira, 13 de junho de 2012

A Torinói ló/O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (II)


(3) batatas fumegantes cozem ao lume... Depois da primeira - e única bem sucedida - viagem do filme, vemos a mulher a preparar o almoço, cozendo duas batatas em água fervente. O vento lá fora continua a soprar com violência - continuará até ao final do filme? Não, continuará bem para lá do seu final... ainda o ouço agora, depois de 24 horas passadas sobre o primeiro visionamento de "O Cavalo de Turim". As duas batatas são servidas em pratos circulares de madeira e a água que as cozinhara começa a evaporar informemente, como que rimando com a tempestade lá fora, acompanhando enfim o movimento instável da poeira e folhas que circulam sem destino pelo ar, fora daquela casa. 
Como o fotógrafo do século XIX/XX Alfred Stieglitz (conhecido pela sua obsessão pelo efeito estético dos gases e vapores, naturais e industriais, ou mesmo por nuvens...) ou como James Benning (idem, idem, aspas, aspas), o olho de Tarr é puxado para as formas informes produzidas na/pela Natureza: duas batatas apanhadas nas redondezas, cozinhadas com lenha cortada pelo único braço bom do velho, "expressam-se", "manifestam-se", na evaporação da água escaldante; a chama na lamparina também decide "desalinhar-se" com a sua função e começa, também ela, a expressar-se. Estes são exemplos de como esteticamente se faz ecoar no interior daquela casa de madeira, órgão vivo, segunda pele daquele casal forçado à reclusão pelas vicissitudes de outro organismo, o do cavalo doente, a inconstância formal do elemento mais constante de todo o filme: o vento (analisado no segundo ponto). 

Os pratos circulares, a garrafa de Pálinka - líquido tão transparente, tão informe!, quanto a água que as personagens extraem do poço "moribundo" - e os parcos utensílios de cozinha pousados naquela mesa pesada de madeira compõem algumas das naturezas mortas (still life) do filme, exemplos dessa "vida parada" que é animada - outro paradoxo belíssimo - pelas rotinas diárias de pai e filha. Tarr filma a repetição dos seus gestos sobre as coisas - e as coisas por si, repetindo o movimento "cosmológico" do primeiro plano do cavalo, indiferente, portanto, ao que é/está still e ao que é/tem life - sempre num ângulo diferente: por exemplo, primeiro vemos o pai a comer a batata, depois, no segundo dia, Tarr filma de frente a filha, para, no terceiro dia, em plano médio, captar os dois à mesa, com a janela (e a tempestade que "transmite" ininterruptamente, qual televisor sempre ligado...) em pano de fundo. O mesmo acontece com o ritual em torno da roupa - que também rima com o tirar da pele das batatas... - e a bebida de Pálinka antes do protagonista abrir a porta e enfrentar o exterior e a sua (im)previsibilidade constante: terá o vento amainado? Impossível. Terá o cavalo melhorado? Impossível. 


(4) o homem velho faz como a filha antes do almoço... Esta ideia, tão moderna, da repetição, do "não sair do mesmo sítio", atinge o seu pináculo na obra de Tarr aqui, em "O Cavalo de Turim". É verdade que o cineasta húngaro sempre preferiu o vício do círculo à progressão da linha, é também verdade que os seus travellings sempre foram falsos-travellings, porque a viagem se reproduzia em espaços familiares - quantas vezes "acabamos" no centro da aldeia, em "Werckmeister...", quantas vezes "acabamos" perto ou dentro do bar Titanic em "Damnation", etc.? Contudo, em "O Cavalo de Turim" Tarr reduz radicalmente o espaço de manobra da sua câmara ao cenário de uma casa ("cá dentro"), sendo o exterior sugerido mais a partir do seu interior ("lá dentro") do que mostrado através de incursões de câmara pelo espaço ("lá fora")... 


A janela é, contudo, o eixo fundamental nesta alternância, entre o "cá/lá dentro" e o "lá fora", tendo Tarr filmado-a em todos os ângulos imagináveis, a partir de dentro, nas costas das personagens que "assistem ao espectáculo da paisagem" (que Deus fez? que é Deus?) ou mesmo a partir de fora, sempre em travellings suaves ("planantes"), que se aproximam da janela mais vezes do que se afastam dela - mesmo quando ela é filmada por fora, como vemos naquele espantoso e terrífico plano (que trago aqui em still) perto do fim do filme. "A personagem que olha", todo um tema na obra de Tarr, e a própria figura da "janela como medium desse olhar", outro tema recorrente (veja-se o início de "Damnation" ou algumas passagens de "Sátántangó"), são reificadas em "O Cavalo de Turim" como motores espectaculares (sim, espectaculares) da acção. 

Contudo, apesar da alternância interior/exterior, estamos aqui no limite de um filme de cerco hawksiano ou, se preferirem, carpenteriano - é o vento e não o "nevoeiro" (de "The Fog" como das montanhas de "Only Angels Have Wings") ou, primeiramente, a ameaça do frio ("The Thing") que prende as suas personagens indoor... Trata-se, portanto, de uma lição de mise en scène inesgotável, feita de inúmeras variações sobre elementos fixos, que, pelos ângulos diferentes da câmara, se fazem repetir sob uma perspectiva sempre renovada. O mesmo espaço renova-se, por isso, indefinidamente, em cada ritual diário. Por isso digo - e desenvolverei mais esta ideia - que o découpage é mais temporal do que espacial: a câmara vai moldando "tempos novos" em espaços, em gestos, já por ela várias vezes percorridos e já por nós várias vezes reconhecidos. 

Eis um "filme de câmara" como poucos, exercício de mestria na sua acepção mais "escolástica". Tarr ensina: como filmar várias vezes o mesmo como se fosse sempre pela primeira vez? A pergunta parece bem formulada, mas não está: como filmar várias vezes o mesmo como se fosse sempre pela primeira e a última vez? É neste "última vez" que se parece encerrar esta "vertigem pelo fim" que antecipa cada movimento em "O Cavalo de Turim" e que, em suma, enforma fantasmaticamente o todo, já que desde o início, facto indissociável desta experiência, Béla Tarr fez associar a este título a sua despedida do cinema. 

A herança que nos deixa só podia estar num único sítio: nas suas imagens e o filme carrega-as como as personagens, a certa altura, fazem transportar todas as suas coisas - nesta altura, todas elas são tanto delas como nossas, tal o grau de familiaridade com as suas diferentes "faces" - naquela carroça que, puxada apenas por mãos humanas, com o cavalo "de fora" a acompanhar, aparece agora, também ela, debaixo de uma luz nova; dá-se a ver, pela primeira vez, como corpo pesado feito de madeira e rodas (muito diferente do primeiro "plano do cavalo mais o homem e o cavalo..." analisado no primeiro ponto). 


(continua)

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