sábado, 25 de outubro de 2008

Ace in the Hole (1951) de Billy Wilder

Publico aqui um excerto do texto publicado na Red Carpet de Novembro.

É notável a forma como Billy Wilder conseguiu construir uma carreira fazendo alternar um dos mais desassombrados e hilariantes registos cómicos de Hollywood com dramas pungentes que exploram o lado negro da condição humana. A mentira, a dissimulação e a traição são alguns temas que povoam, sobretudo, a deriva “mais séria” do seu cinema. Nesta matéria, "Ace in the Hole" (1951) estará seguramente entre os mais ácidos e duros filmes de Billy Wilder. E, para desfazer equívocos, convém dizer que não se trata apenas de uma raivosa sátira sobre o denominado “jornalismo de sarjeta”: toda a sociedade norte-americana é retratada como uma extensão acrítica da espectacularização macabra que, todos os dias, tem espaço reservado nas manchetes dos jornais.

Quase ninguém neste filme sobrevive à escrita contundente de Wilder, que é um “soco no estômago” para todos aqueles que ainda acreditam na universalidade de valores como a “boa fé”, a justiça, a verdade, a lealdade e, claro está, o amor. Tudo “isto” é mercadoria transaccionável para Charles Tatum (grande Kirk Douglas), o repórter à procura do grande “furo” que o tire de um jornal de pequena dimensão; para o xerife Gus Kretzer (Ray Teal), que está disposto a pôr em risco a vida de um inocente para assegurar a vitória nas próximas eleições; e para Lorraine Minosa (Jan Sterling), uma loira oxigenada que está à espera da altura certa para abandonar o seu marido moribundo e prosseguir a sua existência frívola e parasitária numa outra paragem. Em suma, em "Ace in the Hole", a mentira é a droga que alimenta os tablóides, a política e o amor.

Tal como qualquer outro narcótico, a mentira aqui também é uma questão de poder e status. Daí o deslumbramento que um jornalista imberbe, acabado de sair da escola, nutre por Tatum, um repórter de Nova Iorque que foi para Albuquerque com o intuito de relançar a sua carreira num periódico local e que se gaba de nunca ter entrado numa faculdade para aprender os ofícios da profissão: foi a vender jornais na rua que cedo percebeu que “as más notícias vendem melhor”, isto é, que “as boas notícias não são notícias”. A sua prepotência contrasta com a ingenuidade daqueles que trabalham para o Albuquerque Sun-Bulletin: “Mas que belo!”, diz em tom jocoso Tatum ao ver afixado na parede da redacção um bordado com a frase Tell the Truth.

A dicotomia entre o centro (Nova Iorque) e a periferia (Albuquerque) está para Ace in the Hole como o presente está para o passado em "Sunset Boulevard" (1950). O jornalismo de ontem é aquele que ainda se fia em bordados com ensinamentos éticos; o jornalismo de hoje é aquele que os tem como meras utopias (que se aprendem na escola?) ou, pior ainda, como obstáculos à sua sobrevivência (no exigente mercado publicitário). Ora, tudo chega tarde em Albuquerque, até mesmo a influência degenerativa da “grande cidade”; até mesmo o realismo desestabilizador de Tatum e a sua visão distorcida do que é a verdade. Por isso, ri-se no início e no fim do filme do tal quadro, estrategicamente posicionado ao lado da porta do escritório do director do jornal e cuja mensagem foi bordada, com todo o carinho do mundo, por uma das mais velhas redactoras – outro sinal do anacronismo da filosofia que (ainda) subsiste no seio do Sun-Bulletin.

O choque entre Tatum e aquilo que este representa e a pequena comunidade de jornalistas de Albuquerque é, desde logo, assinalada pelos maus hábitos daquele: para além da forma empertigada e ruidosa como fala e se gesticula, Tatum fuma mais do que qualquer um dos seus novos colegas e tem um grave problema com o álcool (típico num filme de Wilder) que já lhe custou alguns bons empregos. Mas, não nos iludamos, o seu maior vício – e aquele que vai transformar a vida dos que o rodeiam – é a mentira.

(...)

Depois de um ano sem notícias de jeito, Tatum encontra finalmente um acontecimento digno de nota, na esquecida localidade de Escudero. Leo Minosa (Richard Benedict), homem simples, tinha por hobby coleccionar potes índios, que encontrava numa gruta perto da estação de serviço de que é dono. Numa das suas habituais investidas na montanha índia, Leo é vítima de uma derrocada. O seu corpo fica preso nos destroços; a qualquer altura, tudo poderá desabar sobre ele. É preciso resgatar Leo, o quanto antes.

Tatum não hesita em voluntariar-se para entrar na gruta e falar com Leo. Um acto de coragem que o retira, desde logo, da pele de um mero jornalista: Tatum, a partir daquele momento, transforma-se num dos protagonistas da história que escreve – que se lixe a ética. Outro elemento importante da sua história é o xerife Gus Kretzer, a quem promete palavras elogiosas no seu artigo em troca da exclusividade no acesso ao local do acidente. Com a cobertura do poder político, Tatum consegue adiar o resgate de Leo e, dessa forma, ampliar o sucesso das suas crónicas sobre um zé-ninguém que acordou “a maldição da montanha índia”. Noutro filme sobre (maus) jornalistas, Billy Wilder filmava Walter Matthau e Jack Lemmon a esconderem, dos seus colegas e das autoridades, um assassino condenado à morte, com o fito de sacarem dele uma entrevista exclusiva que arrasaria com a concorrência. "The Front Page" (1974) foi a terceira adaptação ao cinema da peça homónima de Ben Hecht e Charles MacArthur.

O correspondente no feminino de Tatum em "Ace in the Hole" é a mulher de Leo: desde o começo indiferente ao sucedido, vai procurar explorar a situação do marido à sua maneira. Seguindo as recomendações de Tatum, Lorraine Minosa aceita encarnar o papel da mulher desesperada, ao mesmo tempo que tenta tirar proveito financeiro do circo que rapidamente se vai instalando perto da gruta onde o seu marido agoniza. Famílias inteiras vindas de todo o país começam a afluir ao local, com a ânsia voyeurística de presenciar cada instante do acontecimento que monopoliza a agenda mediática.

(...)

Nos artigos de Tatum, Lorraine chora desalmadamente pelo seu querido marido e o xerife de Escudero mostra o seu lado humano ao assegurar que tudo terminará bem. Claro que essas informações estão enviesadas, mas na cabeça do protagonista a linha ténue que separa a realidade da ficção começa a esvanecer-se... A certa altura, Tatum diz que não quer beber, talvez porque a realidade que presencia é tão ou mais artificial quanto uma alucinação provocada pela bebedeira. O efeito narcotizante da mentira alastra-se: Tatum não só mente aos seus leitores, que, por sua vez, se iludem a si mesmos (vendo num fait-divers uma experiência super-humana que lhes abrirá as portas do Céu), como também falta à verdade ao próprio Leo. Diz-lhe que é seu amigo, que a sua mulher o ama e que… irá sobreviver.

O jornalista, observador passivo que deve ir à parte mais funda da realidade, estava assim entregue a uma viagem sem retorno à mais patológica subjugação à mentira. No fim de "Ace in the Hole", Tatum volta a estar sozinho num deserto, mas desta vez a braços com uma interrogação mortificante que nunca antes lhe passara pela cabeça: quem sou eu?

Ler mais aqui: IMDB e Senses of Cinema.

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