segunda-feira, 18 de julho de 2011

Os amontoamentos de filmes: uma questão de sensibilidade


O que é chocante na forma como o cinema é tratado tem muito a ver com aquilo que, como nota Walter Benjamin em «A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica», é a sua essência automática ou mecânica, industrial e, enfim, "serial". O cinema é mercadoria. Benjamin não pôde conhecer os vários modos de comercialização que se seguiram às salas de cinema, como a difusão maciça do cinema pela televisão, muitos anos mais tarde, o VHS e depois o DVD. Não pôde conhecer, mas escreveu sobre isso. Hoje, é mais do que evidente que o cinema está, num domínio de mercado, ao mesmo nível que um shampoo ou um pacote de batatas de fritas. A imagem mais perfeita disso é os amontoamentos de DVDs em promoção que encontramos nos supermercados, a poucos metros de outro amontoamento de roupas, trapos coloridos..., em saldos. O cinema pode ser "passado" neste regime de "feira industrial", em que tudo é vendido com um certo nojo, como despojos que não fazem falta nenhuma, como algo que só se vende porque, no limite, não se pode despejar no lixo... Ver filmes, quaisquer filmes, mas sobretudo "obras do Cinema", nesses amontoamentos não pode deixar indiferente quem acarinha o cinema como uma expressão artística especial nem mesmo como um "meio de comunicação social" singular.

Estes amontoamentos têm a sua existência física mais degradante nas tais superfícies comerciais, onde DVDs são vendidos colados a refrigerantes (já vi isto) e coisas semelhantes, mas há outros modos de amontoamentos, menos chocantes, mas ainda assim diminuidores desse grau de solenidade e respeito que deve - não deve? - acompanhar as grandes descobertas "artísticas". Falo, por exemplo, dos videoclubes e a forma, por vezes, autista como os filmes estão (des)arrumados nas prateleiras. Podemos encontrar, nas secções dos clássicos, filmes como "Harry Potter" ou coisas do género. Isso choca, mas nada choca mais do que constatar a completa falta de cultura cinematográfica - é mesmo, antes disso, uma completa ausência de SENSIBILIDADE cultural - no amontoamento virtual de filmes nos videoclubes on-demand. Falarei, aqui, apenas do MEO videoclube, espaço gerido certamente por aquele tipo de gente que vende "cinema" como quem poderia estar a vender legumes ou trapos da feira.

Apresento aqui dois exemplos do "grau de desinstrução" de quem toma conta destas superfícies virtuais onde se vendem filmes; superfícies essas que, certamente, estão muito pouco preocupadas com o público que é sensível a manifestações grosseiras de ignorância e incompetência.


Vamos, então, ao primeiro exemplo. Na secção Premiados, encontramos filmes como "Camino", "Marie Antoinette", "The Assassination of Jesse James..." - até aqui, nada de muito escandaloso, mas depois... -, "Miss Congeniality 2", "A Guerra das Misses", "17 Outra Vez" e - para citar apenas mais um... - "Grande Moca, Meu". Estou certo que a rubrica "premiados" deve estar a ser levada tão à letra que, provavelmente, basta que um filme receba um MTV award ou uma Framboesa para se tornar elegível, mas a forma grosseira como são combinados filmes de natureza, objectivos, públicos vá, tão distintos parece-me não só pouco instrutivo como, na realidade, verdadeiramente equívoco - para não dizer degradante. Não estou a sugerir que se retirem filmes como "A Guerra das Misses" da oferta de videoclubes, mas é preciso colocá-los no seu devido lugar, porque ver cinema não é um acto automático como trincar uma maçã ou vestir um trapo de feira; requer uma aprendizagem, um encaminhamento informado de quem "programa".


Outro exemplo. O caso crónico de tudo o que são superfícies deste género, físicas ou virtuais: a rubrica Clássicos. Clássico, dentro da cultura cinematográfica, quer dizer o cinema que se produziu em Hollywood no período que vai de Griffith a "Rio Bravo", ou, se quiserem, o "estilo" de fazer cinema que se instituiu, depois de Griffith, com a entrada em cena do código Hays. Não quero com isto dizer que a rubrica clássicos no MEO videoclube tenha de seguir qualquer uma destas interpretações à risca e até percebo que se siga a acepção mais "popular" de clássico: não aquilo que se repete, mas aquilo que permanece, isto é, obras que resistiram ao tempo e que constituem pedras-de-toque fundamentais na compreensão da história do cinema. Ora, nem esta acepção se safa na rubrica Clássicos do referido videoclube, porque temos... "Amor em Fuga" de Truffaut ao pé de coisas como "Alex Rider Operação Stormbreaker", "Judge Dredd" (sim, aquele com Stallone), "A Espada do Rei", "Apocalypto", "O Corvo: Reencarnação"... e telefilmes de qualidade suspeita sobre os quais não me pronuncio. É preciso acrescentar uma palavra que seja ao total disparate que é esta selecção de filmes? Será que os responsáveis pelo cinema, seja nos videclubes virtuais como este, seja nas superfícies comerciais, seja mesmo nalguns canais de televisão, conseguiriam passar naqueles testes do "onde está o intruso?" da Rua Sésamo?

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