Há uma coisa, que não é bem um pormenor, que gosto muito nos filmes de Gray, especialmente nesta sua primeira obra: por regra, as suas personagens beijam mal, o que, por outro lado, é compensado por uma fisicalidade muito táctil, muito "corpo contra corpo", uma violência afectiva que tem tanto de agreste como de frágil - e comovente. "Little Odessa", especialmente, está repleto de exemplos desta "violência afectiva": a forma como os dois irmãos se amam é como ver brincar dois tigres bebés; o pai e os filhos, para além de um amor e desgosto profundos, têm um cinto lacerante a ligá-los; o pai também manieta o corpo da mãe doente de cancro numa espantosa demonstração de amor, um amor que é "potência de vida" (como diz Deleuze), um amor que se serve como remédio para a superação de uma dor física insuperável - maior do que eles... -; a personagem de Tim Roth faz amor com a personagem de Moira Kelly com as suas mãos a tapar-lhe o rosto, uma violência seca, triste, amarga, poucos são os beijos - é a cena de amor mais triste que vi...
PS: É muito barata e tal, mas evitem esta edição britânica de "Little Odessa". A imagem está encaixada num rectângulozito ridiculamente minúsculo e sem qualidade minimamente justificável para um filme recente - depois queixam-se as editoras que se saque... Parece que esta edição americana não é muito melhor... De qualquer maneira, justifica-se uma edição à medida desta obra-prima dos anos 90 por parte de uma grande editora (inter)nacional.
Penso que James Gray entende que a materialidade dos sentimentos faz-se pelo tacto, pelos encontrões, pelo soco, o empurrão, a leve festa sobre o rosto - normalmente, um rosto dolorido, lacerado, infindavelmente complexo. "Little Odessa" é o primeiro filme de Gray e já tem tudo isto lá dentro; na realidade, parece que o jovem realizador americano tem construído a sua carreira literalmente sobre ele, tendo, enfim, "Little Odessa" como grande alicerce autoral - o seu rés-do-chão metafísico. O problema do "desconforto" das emoções e da "família", as suas divisões (marcadas no tempo e no espaço), tornar-se-ia pedra de toque do seu cinema - em "Two Lovers", por exemplo, atinge nova apoteose. Aliás, é curioso ver como, na câmara de Gray, a dimensão concreta do universo das seus personagens passa da materialidade das coisas para uma imaterialidade e uma espiritualidade (no caso de "Little Odessa", uma espiritualidade nitidamente agnóstica) própria do Re-ligioso. Se no mais recente filme de Gray falámos da simbologia em torno da luva e do anel, em "Little Odessa" temos de falar do lençol branco, uma espécie de "segundo ecrã" do filme, que - com a música de capela - contribui para tornar a sub-urbanidade e materialidade de tudo em qualquer coisa próxima de um "fresco religioso".
É o lençol branco do leito da mãe doente, marcado pela dor e a doença, enfim, por uma maternidade que sangra por dentro - a magnífica Vanessa Redgrave tem espírito e presença de Madona aqui. É o lençol branco que serve para enrolar os corpos e atirá-los sem dó para a fornalha, em ritual pagão precedido de uma janela divina concedida pelo carrasco: "Hey, do you believe in God?, "Yes!", "Good. We'll wait ten seconds and see if he comes to save you" - eis a mais exasperate demonstração do agnosticismo de Roth em "Little Odessa" e, provavelmente, a primeira clara revelação do agnosticismo atormentado de Gray como autor... E, por fim, é o lençol branco, perfurado por uma bala, por trás do qual os dois únicos inocentes do filme são mortos a tiro - maior condenação para a personagem de Roth seria impossível. Os "dois únicos inocentes" não, a mãe também era inocente, mas nesta altura só lhe resta o espírito, um espírito que, com o do filho sacrificado, assombra, nos minutos finais, o rosto martirizado de Roth - ecrã final no qual, estou em crer, Deus ainda não deu provas de si. O homem está só consigo mesmo - e, por isso, já não há mais nada a contar, e, por isso, o filme tem de terminar.
PS: É muito barata e tal, mas evitem esta edição britânica de "Little Odessa". A imagem está encaixada num rectângulozito ridiculamente minúsculo e sem qualidade minimamente justificável para um filme recente - depois queixam-se as editoras que se saque... Parece que esta edição americana não é muito melhor... De qualquer maneira, justifica-se uma edição à medida desta obra-prima dos anos 90 por parte de uma grande editora (inter)nacional.
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